sábado, 19 de dezembro de 2009

Ruy Castro

Considerado um dos principais escritores do país,
o jornalista, autor de ´O anjo pornográfico´,
diz não saber se vai lançar outras biografias e
que seu próximo projeto
é mais um romance histórico.


O escritor que conjuga como poucos a precisão jornalística com a leveza literária odeia quando classificam seus livros como jornalismo literário, estilo que ficou famoso com a turma de Truman Capote e Gay Talese. “Jornalismo é jornalismo e ponto!”, diz, com certo mau humor, o homem que investigou a fundo as vidas de Nelson Rodrigues, Carmen Miranda e Garrincha.
Ainda que desdenhe o estilo que une os preceitos do bom jornalismo à “pegada” literária, Ruy Castro admite que não consegue se descolar do jornalismo – e, sobretudo, da pesquisa – mesmo em seus projetos literários. “Não tenho muita imaginação e não consigo me libertar da dependência à informação e ao fato”, diz.
O leitor apaixonado, seu mais recente livro, traz o jornalismo novamente ao primeiro plano de um projeto literário. A obra reúne textos de Castro, publicados originalmente em jornais e revistas, sobre livros e escritores. Espécie de declaração de amor à literatura, o título revela algumas das preferências literárias de Castro (com destaque para a literatura norte-americana), mas também abre espaço para textos mais intimistas, que revisitam passagens de sua trajetória profissional, como os dois textos dedicados a Paulo Francis.
Instigado por editores e fãs a escrever a biografia de Tom Jobim, o escritor diz que isso, por enquanto, não faz parte de seus planos. Seu próximo projeto será outro livro de ficção e, como ocorreu com Era no tempo do rei, sua estreia no romance, terá como fio condutor um fato histórico “que aconteceu por volta de 1880”, explica. Cronista da Folha de S. Paulo, onde divide espaço com Carlos Heitor Cony na página 2, Castro, um leitor apaixonado de jornal, diz que nunca temeu pela vida dos diários, ameaçados pela influência, cada vez maior, da internet. Porém, quando o assunto é a morte do livro, é taxativo: "O Kindle é uma porcaria”.

Você conseguiu aquilo que nove entre dez jornalistas com alguma veleidade literária querem: sair da redação e se dedicar apenas a projetos pessoais ligados aos livros. No entanto, O leitor apaixonado é uma compilação de textos escritos originalmente em jornais. No seu caso, o jornalista ainda está muito presente no trabalho do escritor?
Eu não saí da redação para me tornar escritor; saí da redação para continuar jornalista, só que fora da redação. Já estava com 20 anos de redação nas costas, bem rodado, e queria trabalhar em casa. Achei que já poderia me dar a esse luxo. Uma atitude, diga-se de passagem, pioneira em relação ao que viria depois, porque hoje a quantidade de jornalistas que trabalham em casa, com computador e internet, é enorme. Quando decidi sair da redação, não tinha isso. As matérias ainda eram datilografadas e levadas por alguém até as redações de que era colaborador. Nunca achei que ser jornalista fosse pobre e que ser escritor fosse nobre. Sempre fui jornalista, sempre adorei ser jornalista e nunca pensei em ser outra coisa.

O jornalismo parece não querer te largar, mesmo em seus projetos editoriais, não?
Acontece que, por conta do tipo de livro que eu passei a fazer, principalmente as biografias de reconstituição histórica, tive que exercitar outros macetes que não o do jornalismo. Porque não acredito que um jornalista, usando simplesmente a tarimba de jornalista, possa escrever biografias. É preciso realmente ter uma veleidade literária, conhecimentos de história, etc. Se houvesse, por exemplo, um curso de biografia na universidade brasileira, na grade curricular precisaria haver aulas de jornalismo, história e de letras.

Sendo você um leitor apaixonado, hoje, com tantos compromissos profissionais, consegue achar tempo para suas paixões literárias?
Ah, sim! Ao ir de noite para a cama, só levo livros queridos, nada de trabalho. Neste momento, estou lendo a biografia do meu amigo José Carlos Araújo, o popular Garotinho, locutor esportivo da Rádio Globo, e a do Merian C. Cooper, produtor do King Kong original, um homem impressionante.

Você traduziu e apresentou ao leitor brasileiro os textos ácidos de H. L. Mencken. Em O leitor apaixonado, há dois textos sobre Paulo Francis, outro implacável crítico cultural. Você vê alguma semelhança entre os dois jornalistas?
Sim. Ambos eram doentiamente independentes e dedicados a demonstrar que o maior bem cultural é a liberdade.

Apesar de já existirem livros sobre a vida (Helena Jobim) e a obra (Sérgio Cabral) de Tom Jobim, e você mesmo ter falado bastante dele em Chega de saudade, sempre é cobrado pelo público a escrever uma nova biografia do músico. Isso faz parte de seus planos?
 Por enquanto, não. Além do Chega de saudade, escrevi extensamente sobre o Tom em A onda que se ergueu no mar e, depois, no alentado verbete sobre ele em Ela é carioca. Para me animar a biografá-lo, eu teria de descobrir um fato novo ou um ângulo diferente.

Na Bienal do Livro de Curitiba, ao comentar a relação entre biógrafo e biografado, você disse que Nelson Rodrigues o deixou “mais brasileiro”. Por quê?
Foi ao constatar a falta de cerimônia dele ao chamar os ingleses de ladrões – e acrescentar que, justamente por isso, eles eram do Primeiro Mundo, porque não se envergonhavam de ser historicamente ladrões [risos] – e ao vê-lo proclamar a necessidade de lutarmos contra o nosso complexo de vira-lata. Enfim, eu também tinha o complexo de vira-lata e não sabia. Aliás, tenho o prazer de informar que essa expressão, completamente desconhecida do público enquanto Nelson foi vivo, só ficou famosa a partir de 1993, depois que a reabilitei numa das crônicas do livro À sombra das chuteiras imortais (esgotado). Hoje, faz parte da língua.

Depois de trabalhar muito tempo com biografias, você se lançou na ficção com Era no tempo do rei. Sentiu-se como um estreante, apesar da longa experiência como escritor?
De certa forma. Mas a principal diferença é que o biógrafo não tem o direito de inventar, imaginar ou supor fatos. Porque a graça da biografia está em descobrir. Se fosse possível ao biógrafo misturar ficção no meio da biografia, seria muito fácil, pois o biógrafo não precisaria perder anos de trabalho atrás de fontes e relatos. Nesse caso, é melhor que o autor opte pela ficção de uma vez. Em Era no tempo do rei, eu me senti com uma enorme liberdade para criar. Mas, como não tenho muita imaginação e não consigo me libertar da dependência à informação e ao fato, passei um ano estudando o Rio de 1810, época em que se passa o romance.

Isso fica visível também na escolha dos personagens?
As figuras principais – príncipe D. Pedro I e Leonardo, este do livro Memórias de um sargento de milícias – são meninos com a mesma idade, com o mesmo temperamento, no mesmo cenário, em uma época espetacular da história brasileira, dois anos depois da chegada da corte portuguesa ao Rio de Janeiro. Então, tudo o que acontece ali, que não seja aventura, é verdade. Se a biografia não pode ser contaminada pela ficção, o romance, por outro lado, pode ser enriquecido pelo documental.

Veremos mais romances do Ruy Castro nas prateleiras?
Sim, tenho sido sondado novamente pela editora Alfaguara, que quer mais um livro de ficção. Já tenho uma ideia na cabeça. Posso adiantar que vai ter esse viés histórico: é um fato que aconteceu por volta de 1880. Falta começar a estudar, o que deve me tomar pelo menos um ano, pois preciso mergulhar no assunto. Mas já tenho a ideia.

Carnaval no fogo, lançado anos antes, também fala da história do Rio de Janeiro. Esse trabalho te deu uma base para Era no tempo do rei?
 É, eu vi que era possível. Mas meu primeiro livro do gênero, que saiu em 2000, foi Bilac vê estrelas, que é uma novela da coleção Literatura e morte, da Companhia das Letras, em que os personagens são o Bilac e o José do Patrocínio. Ali, eu comecei a experimentar base documentária com ficção, que depois desenvolvi em Era no tempo do rei. Já Carnaval no fogo é uma coisa mais híbrida. Ali, você tem história, mas também tem muito comentário, é quase um livro de sociólogo.

Algumas faculdades de jornalismo adotaram Carnaval de fogo como exemplo de jornalismo literário no Brasil. Concorda com a classificação?
Tenho certa alergia a essa expressão. Jornalismo é jornalismo e ponto! O que tem ali é uma narrativa, ou melhor, uma crônica de 200 páginas. Por isso que se chama “crônica de uma cidade excitante demais”. Uma longa crônica em que um assunto vai passando para outro, sem você perceber. Inclusive, eu nem deveria ter dividido em capítulos, só o fiz para ficar mais fácil para a leitura. Mas, na verdade, é uma narrativa que sai de dentro de outra e vai te levando por 500 anos da história do Rio – de 1502 a 2002, quando escrevi o livro.

Como leitor compulsivo de jornal, acha mesmo que a mídia impressa vai sucumbir ao avanço e à influência da internet?
Leio jornal desde os 4 anos de idade e nunca acreditei que ele, um dia, poderia acabar. Nem o rádio e nem a TV tiveram condições de competir com o jornal. Mas a internet é uma séria concorrente, porque tem palavra, tem imagem, tem áudio e tem infográficos. Sou leitor do papel e já fui cooptado. Porém, com relação ao livro, nunca serei cooptado. Estou plenamente convencido de que o Kindle é uma grande porcaria.

Há algum tempo você vem dividindo, com Carlos Heitor Cony, o espaço dedicado à crônica na página 2 da Folha. Sente alguma dificuldade em escrever aqueles textos curtos? Como costuma selecionar os assuntos? São exatamente 1.777 caracteres. Adapteime ao formato desde o começo e me sinto à vontade nele. Tenho também certo orgulho de saber que posso escrever em 1.777 caracteres na página 2, em dez mil caracteres numa matéria de página inteira de jornal, ou em dois milhões de caracteres, que é o que tem no Carmen – Uma biografia. Acho que quem escreve precisa dominar as diversas metragens – quem é craque nisso é a Heloisa Seixas. Os assuntos quase sempre são tirados do noticiário – não por outro motivo, leio três jornais por dia. Aliás, aos 61 anos, posso garantir que nunca passei um dia nos últimos 55 anos sem ler jornal – e, tendo morado fora por 19 anos (três em Portugal e 16 em São Paulo), também nunca fiquei um único dia sem ler um jornal do Rio.

Você tem acompanhado o debate sobre a Lei das Biografias?
O projeto está para ser votado no Congresso. O Roberto Faith [editor da Objetiva], que está a par do assunto, já me telefonou para ir a Brasília há alguns meses. Mas estou acompanhando meio de longe a discussão. Esse assunto me desgosta muito, gostaria que isso se resolvesse sem eu precisar me contaminar muito com ele. Claro que poucas pessoas se preocupam mais do que eu com a liberdade de expressão do biógrafo. E, quando digo isso, não estou nem pensando em mim, porque nem sei se vou fazer outras biografias, mas as próximas gerações de biógrafos que vêm por aí.

Você acha que, depois da censura a diversas biografias, as editoras ficaram temerosas de lançar novos livros do gênero?
Ficaram, claro. É uma questão de risco para as editoras, pois investem dinheiro em livros que podem ser tirados de circulação por um herdeiro qualquer que, muitas vezes, nem mesmo gostava do parente ilustre ou se relacionava com ele – o que tem sido muito comum. Então, é natural que as editoras tenham certo receio. Hoje em dia, inclusive, algumas editoras obrigam o autor a assinar um documento se comprometendo a assumir todos os riscos e custos de um possível processo. Isso é uma violência. Eu, por exemplo, sempre me senti responsável pelo que publiquei em minhas biografias. Em um livro, ouço 200 pessoas, mas o leitor nunca vai saber quem me disse o quê. Porque, quando tenho certeza de que uma informação é verdadeira, eu assumo a responsabilidade. Então, no caso de um processo, a responsabilidade deve ser dividida entre o autor e a editora. O que não aconteceu no caso da biografia do Roberto Carlos, pois o autor foi abandonado pela editora.

Antes do caso da biografia escrita pelo Paulo César Araújo, você, com o livro sobre o Garrincha, e o Fernando Morais, com Na toca dos leões, já haviam sido censurados. Por que só agora está se falando no assunto de modo mais incisivo?
Porque o caso do Roberto Carlos foi o mais violento. Os livros do Paulo César foram efetivamente retirados de circulação. E não se sabe nem o que foi feito deles. Parece que há suspeita de que tenham sido queimados. Mas, na minha opinião, o caso era previsível. Tava na cara que isso ia acontecer; eu até falei para o Paulo César antes. Mesmo sendo a biografia totalmente a favor do Roberto Carlos, pois, no livro, o personagem é o filho perfeito, o namorado perfeito, o marido perfeito, o amante perfeito e o cretino perfeito. Mas, ainda assim, o escritor foi processado. ©

FONTE: Revista da Cultura online, dezembro/2009 - Reportagem de LUIZ REBINSKI JUNIOR
http://www2.livrariacultura.com.br/culturanews/rc29/index2.asp?page=entrevista

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