terça-feira, 22 de dezembro de 2009

"A bioética é o amor da vida"

Padre Luís Archer*
cientista:

“A bioética é o amor da vida e como qualquer ciência deve ser discutida e posta em causa, porque sem discussão não há bioética”. Foi desta forma que o padre Luís Archer, cientista, abordou um dos pontos da encíclica ‘Caritas in veritate’, a bioética. À VOZ DA VERDADE, este sacerdote jesuíta deixa ainda a porta aberta a um diálogo e cooperação entre a ciência e a fé.

A bioética é a disciplina que estuda as implicações morais das biotecnologias. Não sendo uma área de fácil acesso, de que forma a Igreja pode sensibilizar as pessoas para a bioética?
Suponha que a maneira mais concreta de explicar é através de casos que acontecem pela vida fora e que chocam as pessoas. Há princípios que devem ser discutidos, mas discutidos de uma forma séria… não é apenas dizer ‘isto está bem’ ou ‘isto está mal’. É procurando as razões, razoes essas que depois podem ser modificadas, calibradas e discutidas.

De que forma então definiria a bioética?
Há um livro feito por um grande biocientista japonês, Darryl R. J. Macer, que é o director do Eubios Ethics Institute e professor da Universidade de Tsukuba (Japão), intitutulado “Bioethics is Love of Live” (“A Bioética é o Amor da Vida”), onde mostra que a bioética não é um conjunto de proibições. Pelo contrário, a bioética é o amor à vida, não só do Homem, mas também dos outros seres, das outras criaturas e da natureza. A bioética ensina a amar a vida, a vida toda, a nossa e a dos outros, a dos sãos e a dos deficientes, a que nos é agradável e a que nos impõe sacrifícios, toda a vida humana, assim como a vida animal, vegetal ou microbiana. A bioética é, de facto, amor da vida!

A bioética toma como objecto primário a ciência do século XXI — a nova biologia, incluindo engenharias genéticas, células estaminais, melhoramento de genes humanos, psicocirurgia, neuroética, clonagens e todos os incontáveis progressos através dos quais o homem pretende não só conhecer-se melhor mas sobretudo elevar o seu nível de vida.

Não menos importantes são as questões decisivas da biologia do ambiente. Com estas últimas, está em jogo a própria sobrevivência da nossa espécie neste planeta.

A bioética apresenta problemas especialmente às biotecnologias aplicadas ao homem (fecundação artificial, contracepção, diagnóstico genético, aborto eugénico, transplante de órgãos, manipulação de embriões, clonagem, etc.), sendo menos problemáticas as manipulações de microrganismos, de vegetais e de animais. Afinal, até onde os cientistas poderão avançar?
Tudo aquilo que tem a ver com o Homem, com a vida e com as biotecnologias é discutível na bioética. E por vezes há problemas que parecem pequenos que podem ter consequências muito grandes. Creio que os cientistas poderão ir até onde se chegar à conclusão de que o benefício global é maior, ou seja, quando houver mais benefícios do que malefícios. Essa é que deverá ser a norma. Nesses casos complicados de embriões, clonagem, manipulação, etc., temos de ver onde é que estão salvaguardados os direitos fundamentais da pessoa, da dignidade humana. No fundo, onde estão salvaguardados os direitos do planeta. É típica esta questão do ambiente, que está a ser falada em Copenhaga, porque durante anos foram ‘esquecidas’ essas questões, quando as pessoas deviam estar conscientes dos problemas que a rodeiam.

No ponto 74 da encíclica ‘Caritas in veritate’, Bento XVI alerta: “Hoje, um campo primário e crucial da luta cultural entre o absolutismo da técnica e a responsabilidade moral do homem é o da bioética, onde se joga radicalmente a própria possibilidade de um desenvolvimento humano integral”. Como vê estas palavras do Papa?

Acho essas palavras muito verdadeiras e muito importantes porque é preciso pôr toda a força necessária para esta discussão. O que interessa é a pessoa e a pessoa ‘bem e completa’. A ideia é a mesma: a bioética é o amor à vida, e quanto mais amor à vida houver, melhor é a bioética. Acho que é muito importante que o Papa Bento XVI tenha acentuado esse aspecto, porque as pessoas parecem esquecer-se que esta questão não é uma questão secundária, mas uma coisa fundamental.

Diz ainda Bento XVI que “as descobertas científicas neste campo e as possibilidades de intervenção técnica parecem tão avançadas que impõem a escolha entre estas duas concepções: a da razão aberta à transcendência ou a da razão fechada na imanência”. Está-se perante uma opção decisiva?
Este é um diálogo entre fé/razão e ciência/teologia. Mas tanto a ciência como a teologia podem convergir num enriquecimento mútuo e esse é um ponto importante. Ou seja, não é uma discussão entre a ciência e a religião. A ciência pode libertar a teologia de uma leitura ingénua, literal e fundamentalista da escritura, assim como das atitudes de superstição e de magia que atribuem ao sobrenatural aquilo que pode ser explicado pela natureza; por outro lado, a teologia pode purificar a ciência de idolatrias e de falsos absolutos, como por exemplo, a teologia pode mostrar que certos dados científicos que são fantasmagóricos e espantosos não são verdadeiros nem correspondem à realidade, como o criar de uma nova espécie humana, superior à actual.

Mais uma vez sublinho: o importante é que as pessoas estejam abertas a conhecer e a discutir todos os aspectos da bioética, quer sejam os aspectos positivos, quer sejam os negativos. Que estejam numa atitude não de fechamento, mas de abertura. Estes são os aspectos mais importantes, porque sem eles não há discussão e sem discussão não há bioética!

A instrução “Dignitas personae. Sobre algumas questões de bioética” (2008), recorda que “a todo o ser humano, desde a concepção até à morte natural, deve reconhecer-se a dignidade de pessoa”. Este é um princípio fundamental que deve ser colocado no centro da reflexão ética sobre a investigação biomédica, concorda?
Inteiramente, a dignidade da pessoa humana é um ponto fundamental, é o grande valor, o maior valor. O maior valor nem sequer é a vida, porque por vezes pensa-se que quando há homicídios, que houve um ataque ao valor fundamental que é a vida, mas não! A vida é um valor de uma importância muito grande, mas não é o fundamental, tanto que os mártires deram a sua vida por Cristo, pela fé. De maneira que a dignidade humana tem um valor que é superior à própria existência da vida humana.

Informação complementar:

Perfil

*O padre Luís Archer, jesuíta, nasceu na Foz do Douro, Porto, em 1926. Licenciado em Ciências Biológicas, Filosofia e Teologia, tem um doutoramento em Biologia e Doutor honoris causa em Biotecnologia pela Universidade Católica Portuguesa (2007) e pela Universidade Nova de Lisboa (2009). Este sacerdote introduziu em Portugal a investigação em genética molecular microbiana tendo criado e dirigido o Laboratório de Genética Molecular do Instituto Gulbenkian de Ciência, entre 1971 e 1991, de onde saiu para coordenar o Centro de Investigação de Genética Molecular Humana, até 2000.

Depois de ter ensinado genética molecular em mais de 13 faculdades e de ter publicado centenas de artigos de investigação e revisão sobre temas de genética molecular e bioética, o padre Luís Archer recebeu algumas distinções, como por exemplo a indigitação feita pelo Presidente da República como um dos quatro “pioneiros” da Bioética em Portugal (Novembro de 2008) e, um mês mais tarde, o Prémio Nacional de Bioética 2008.

Bioética
A bioética é a disciplina que estuda as implicações morais das biotecnologias e apresenta problemas especialmente delicados quando aplicadas ao homem como a fecundação artificial, a contracepção, o diagnóstico genético, o aborto eugénico, o transplante de órgãos, a manipulação de embriões, a clonagem, etc. Menos problemáticas são as manipulações de microrganismos, de vegetais e de animais, tendo em vista maiores e melhores produções alimentares, e a obtenção de produtos para tratamento de doenças, embora também nestes casos se possam levantar questões de ordem ética. Estas referências negativas não devem fazer esquecer o real interesse das novas biotecnologias, sempre que respeitem os valores da vida e da dignidade humana, o direito dos povos e o respeito pela natureza.

Por Diogo Paiva Brandão
FONTE: Agência Ecclesia, Portugal

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