O cineasta Alain Resnais conta, em entrevista exclusiva ao Estado,
como consegue promover o encontro de imagens,
sons e diálogos que se transformam em uma obra de arte
Foi há exatamente 50 anos, no Festival de Cannes de 1959. François Truffaut recebeu o prêmio de direção, por Os Incompreendidos, e Alain Resnais, o de melhor filme da crítica, por Hiroshima, Meu Amor. A consagração de ambos selou o reconhecimento internacional da nouvelle vague, o movimento que revolucionava o cinema francês da época. Resnais, em relação a Truffaut e a Jean Luc Godard, já era um veterano, de reputação formada no curta, mas ele é o primeiro a reconhecer a importância que a nouvelle vague teve no desenvolvimento de sua carreira.
Nos anos e décadas seguintes, Resnais continuou fazendo filmes faróis. Você pode preferir este ou aquele, mas muitos - quase todos - são marcos inovadores do cinema, além de sucessos no circuito de arte (como Medos Privados em Lugares Públicos, que permanece, ininterruptamente em cartaz na cidade, há mais de dois anos). Resnais voltou à competição de Cannes, em maio, com Ervas Daninhas. O júri presidido por Isabelle Huppert lhe outorgou um prêmio de carreira, por sua extraordinária contribuição ao cinema. O novo Resnais estreia hoje, como presente de Natal da distribuidora Imovision aos cinéfilos. O presente do Caderno 2 é a entrevista com o autor. Resnais fala com exclusividade, mas a entrevista, a seu pedido, foi feita por e-mail. Ele gravou suas respostas e elas foram transcritas por Catherine Aymar, da Unifrance.
Seu novo filme é um presente, uma espécie de comédia romântica não muito fácil de explicar e mesmo um pouco enigmática. O que o atraiu no livro de Gailly (que não é conhecido dos brasileiros)?
Até agora, eu me recusava a adaptar romances porque achava que o diálogo de um livro não se podia colocar facilmente num filme e, portanto, seria preciso reescrever tudo. Mas quando descobri o romance de Gailly, comecei a ler algumas páginas e as li de um jato. Fiquei tão seduzido por seu diálogo que li correndo seus outros 12 romances, que não conhecia. Acionei meu produtor, pedindo-lhe que verificasse a possibilidade de adquirirmos os direitos da obra completa de Gailly, porque eu não conseguia me decidir por um, entre seus 13 livros. O que me atraía era uma sonoridade, uma voz, e Jean-Louis Livi, que havia lido alguns, me encorajou a seguir nessa direção. Jean-Louis me havia pedido, para acelerar o processo, que procurasse o tema do filme numa peça de teatro, para ganhar tempo. Quando se escreve um roteiro pode-se demorar muito, nove a dez meses, enquanto uma peça fornece um roteiro sobre o qual se pode trabalhar imediatamente. Montar uma produção é complicado, corre-se contra o tempo, é preciso programar o estúdio e os atores, o que pode demorar bastante. Sou a prova viva disso, pois é raro que um filme meu não consuma um mínimo de dois anos. Não é que eu vá trabalhar durante todo esse tempo, o problema é reunir todas as circunstâncias até chegar ao momento em que o filme realmente começa, quando se grita pela primeira vez no set "Moteur!" (Ação!).
Em Cannes, Gailly disse: "Resnais não filma a literatura. Ele compõe imagens que nos falam de uma coisa inteiramente, do quê eu não estou seguro de entender, mas, na minha maneira de ver, é o que o cinema deveria fazer". O senhor acredita que o importante, num filme, é compreendê-lo ou vivê-lo, emocionalmente?
Para mim, o cinema e não apenas ele, a pintura, a música etc. devem ser uma fonte de emoção, mesmo quando se pretendem didáticos. Já falei dos diálogos de Gailly, mas é preciso encarar também o estilo como ele escreve seus livros, cheio de surpresas e de frases enigmáticas, que ele interrompe de repente, dando a impressão de que tudo é improvisado, quando, pelo contrário, tudo é muito elaborado e possui um charme violento, emprego "charme" no sentido mágico do termo, mas o que eu penso e que nem Gailly poderia prever, é que suas palavras tenham estimulado um certo tipo de imagens. Reivindico que meu desejo era de fidelidade em relação à totalidade de sua obra. Procurei atores que os fotógrafos, assistentes e técnicos, todos, como eu, apaixonados pela escrita de Gailly, considerávamos ideais. A ideia sempre foi encontrar o equivalente do estilo de Gailly, não somente nos diálogos. Para mim, o que há de interessante no filme é a parte de mistério que ele contém e quando esse mistério provoca emoção, esta é a regra do jogo. Se fosse para ser enigmático por nada, não teria o mínimo interesse.
O senhor não tem medo de ser ridículo, porque o comportamento de Michel Dussolier e Sabine Azéma, em cena, toca tanto o ridículo como o sublime. É como se o senhor quisesse nos mostrar a infinita gama das afirmações e incertezas de que homens e mulheres são capazes. O senhor pensa muito na psicologia dos personagens?
Não sei se é o termo, mas a maior parte de nossas ações são intuitivas (não reflexivas) e só depois é que a gente tenta dar uma ordem ou encontrar um sentido nas decisões que tomou. O momento da decisão, em si, depende de uma mistura química que envolve o cérebro e o corpo, como com todos os animais. Não sei se o termo ''psicologia'' se aplica, mas quando filmamos uma cena creio que todos, atores, técnicos e o diretor, devemos nos perguntar: "De onde vem esse personagem, o que ele pretende? E o que fará depois?"
Isso não precisa necessariamente fazer parte da trama, mas é mais agradável para trabalhar e nos permite discutir num terreno mais sólido, ao invés de dizer "Eu leio o texto sem tentar interpretar o que poderia haver entre o que o roteirista escreveu e o espectador", o que seria uma outra coisa. Com toda humildade, acho que partimos de Stanislavsky, cujas reflexões já tem 100 anos. Será isso a psicologia? Mas é verdade que sempre peço ao roteirista que me faça uma biografia do personagem. Quero saber tudo - seus gostos, doenças, relações familiares, o que gostaria de ter feito na vida, o que não chegou a concretizar e isso, em geral, desencadeia conversas muito ricas entre os atores e os técnicos, que eu, aliás, não gosto de separar durante o processo de feitura do filme.
Dussolier dá a impressão de haver criado para seu personagem uma espécie de outra vida. É isso que o impulsiona em direção à mulher. O que o senhor pensa?
Pensei os atores em várias interpretações possíveis, partindo do princípio de que as pessoas que encontramos na vida são sempre um mistério para nós. Nunca se sabe o que se passa na cabeça dos outros, mesmo as palavras da linguagem podem adquirir um significado diferente, segundo a época em que foram pronunciadas e, por isso, tenho a impressão de que vivemos num mundo de incertezas. Tentamos sempre ser razoáveis, mas nossas ações nem sempre seguem as intenções nem os propósitos que temos. E, às vezes, lamentamos de certas decisões que tomamos, mas que no momento nos pareceram de primeira necessidade. Os personagens, claro, têm contradições, mas isso me parece natural. É como ser fiel à vida cotidiana. Mas, atenção, não digo isso de maneira pedagógica nem pretensiosa. Jamais cometo o equívoco de me sentir superior aos personagens nem me sinto responsável pelo que eles fazem. Tento ser fiel ao roteiro que filmo e me condiciono à mise-en-scène (direção), que não é outra coisa senão a colocação desses personagens em seu espaço, mantendo um tom coerente, não digo justo (quem pode saber?). Esse tom é que garante a unidade do filme, não importa a diversidade de suas partes.
Na saída do cinema, Dussolier encontra Sabine e lhe diz: "Então, você me ama". Parece uma homenagem a Um Corpo Quer Cai, quando James Stewart encontra Kim Novak e materializa Madeleine por meio de Judy. Ao mesmo tempo pode-se pensar em Hiroshima e Marienbad, em que os homens são sempre persuasivos e querem penetrar/possuir o imaginário das mulheres. A observação procede?
Fico muito feliz e honrado que a cena lhe tenha feito pensar em Um Corpo Que Cai, que é um dos meus filmes preferidos, um daqueles que eu admiro enorme e intensamente, mas tenho de admitir que essa influência nunca foi discutida, embora muito me agrade. Pura e simplesmente, o que temos ali é a velha questão das relações entre homens e mulheres, que vem sendo debatida, há pelo menos 6 mil anos, por todos os escritores. Sempre foi uma vontade de dominação da parte da mulher como do homem. E esse combate pode se manifestar no charme, no amor, na ternura, no ódio e é isso que me faz percorrer caminhos tão diferentes.
"Voler" é um verbo com duplo sentido em francês. Significa roubar e voar. O roubo da carteira de Sabine e o fato de ela ser aviadora indicam, talvez, uma duplicidade. As pessoas não parecem satisfeitas consigo mesmas. Dussolier quer um amor, Sabine quer voar. Vai nisso um comentário social sobre a insatisfação no mundo?
Como se trata de um livro de Christian Gailly, não vou fazer uma interpretação muito pessoal da coisa. Para mim, tanto o personagem de Georges Palet como os outros são sonhadores que possuem fantasmas e não passam necessariamente pela ação direta. O espectador, neste momento preciso, em relação ao que vem sentindo durante o desenrolar do filme, pode pensar que talvez seja o que ele sinta ou então que não sente nada. Tínhamos, por sinal, várias soluções para evocar o passado a que você se refere, e tanto poderíamos acreditar em Georges como um homem extremamente violento, talvez um assassino, como em alguém que sofreu uma falsa acusação. Ou seja, tanto um inocente total quanto um culpado possível. Mas isso não é o que se poderia dizer de cada um de nós? Eis que eu me ponho pretensioso e afirmo - queria que o filme, apesar de tudo, permanecesse leve.
O filme conta uma história de amor louco, mas é principalmente uma declaração de amor ao cinema.
Fico muito contente que você pense que eu amo o cinema, mas quando trabalho eu gosto de me guiar pelo instinto, não fico refletindo o tempo todo. Existem cenas que visualizo ou não e, sim, vou voltar ao conceito da fidelidade "intuitiva", que não é em absoluto racionalizada. Sou influenciado pelo cinema como posso ser por pessoas que conheço na vida, nos restaurantes que frequento, amigos que visito. Pode não ser provável, mas acontece e com certeza não é intencional, sejamos simples ao reconhecê-lo.
O senhor não escreve seus roteiros, mas possui uma assinatura de cena muito forte? Qual é a importância que atribui ao roteiro?
Vou lhe dizer mais uma vez que me sinto envaidecido pela importância que você me confere. O que me interessa, ao fazer um filme, é a mise-em-scène, o encontro de imagens, sons e diálogos que sejam coerentes a ponto de formar uma obra de arte, uma escultura. Parece-me que a emoção nasce, no cinema, quando existe uma forma precisa, logo minha participação... Você sabe delas melhor que eu, fico constrangido. Claro que quando um roteirista me envia, semana após semana, dia após dia, as folhas que escreve, nós ficamos conversando, avaliando, até mesmo de forma a nos convencer que o material que temos é o melhor. Mas eu não tenho consciência de possuir um estilo e tento simplesmente ser fiel ao roteiro, ao filme. É o filme, no limite, que tem de me carregar, é a única influência que reivindico. Digo, às vezes, rindo, com melancolia: "Ah, gostaria de poder ver meus filmes com olhos de espectador", mas não vejo como isso possa ocorrer. Não consigo me desligar de uma certa consciência que carrego pela vida.
Coeurs recebeu no Brasil o título da peça de Alan Ayckbourn, Medos Privados em Lugares Públicos. É um pouco o tema de Ervas Daninhas (Les Herbes Folles).
Sim, muitas vezes ocorrem estranhos encontros nos sets de filmagem. Podem ser autores diversos, como Christian Gailly e Marguerite Duras, que não pertencem ao mesmo universo estético. Creio que, na base, o que ajuda a explicar tudo isso é meu imenso amor por Samuel Beckett. Em todo caso, as coisas são sempre impressões, nunca mais do que isso.
O que mais impressiona em Ervas Daninhas é a leveza do relato. Dussolier e Sabine dão a impressão de serem completamente livres. Hitchcock comparava os atores a gado. E o senhor? Como trabalhou com eles?
Tenho um grande respeito pelos atores e até gosto de retomar uma frase de Alfred Hitchcock, que dizia: "Quando se escolhe o elenco, é aí que se roda o filme." Penso que a contribuição do ator é fundamental, mas o que me interessa é levar o ator a um estado de hipnose, e nunca despertá-lo. É por isso que filmo muito, repito demais, para ver até onde o ator consegue ir. Jamais escolho automaticamente a primeira tomada. Hitchcock não dizia que seus atores eram gado ou dizia só brincando. Não creio que se possa ver na frase uma opinião séria de Hitchcock, basta ver a contribuição dos atores nos filmes dele e a forma como muitos voltaram a trabalhar com ele. Por que voltariam, se ele não os amasse? Dito isso, "gado" pode conter muitos sentidos.
Por que mudou o título do livro?
A razão é simples. Eu estava no balcão de um café parisiense e o barman me perguntou: "Você prepara um novo filme? Como vai se chamar?" "O Incidente." "Quê?" "O Incidente." "Como?" "O Incidente. L"Incident." "Ah... O acidente." "Não O Acidente, O Incidente." "Vai ser um remake?" Me parecia que, a cada vez que me colocavam a questão, não conseguia fazer compreender o título. Procuramos outro e, entre 50 proposições, surgiu Les Herbes Folles (Ervas Daninhas). Me parece que define muito bem nossas ações humanas e também os personagens. Ficou perfeito.
O que tem a dizer sobre os 50 anos da nouvelle vague? O senhor sempre foi um tanto marginal ao movimento, mas com Godard e Truffaut mudou o cinema. Qual era sua relação com eles?
Pela diferença de idade não cheguei a pertencer ao movimento, mas sempre tive boas relações com o que mais tarde ficou conhecido como nouvelle vague. Na época não percebíamos, mas a grande diferença é que os autores da nouvelle vague, os maiores, queriam mudar as condições técnicas e os temas e a própria realização. Eu vinha de uma escola mais tradicional. Nunca pensei, rodando meu primeiro filme, que eu pudesse estar mudando alguma coisa no cinema. Me atraía a ideia de rodar um filme cuja cronologia não fosse respeitada porque achava que seria mais forte se conhecêssemos as coisas que aconteciam, com os personagens, mas não na ordem. Tinha relações particularmente calorosas com François Truffaut. Estávamos de acordo que não era preciso passar pelos nove estágios que os produtores e sindicatos exigiam antes de conceder a permissão de dirigir. Se você tem um produtor, isso é o que importa. Tenho de acrescentar que muito me beneficiei do aporte da nouvelle vague porque me permitiu mostrar aos produtores que era possível filmar sem a experiência que era exigida e, principalmente, que eu podia fazer longas. Havia na França, pelo menos em Paris, a crença de que bons diretores de curtas não sabiam fazer longas. Havia até um sindicato de técnicos de filmes curtos que não se encontrava com seus colegas do sindicato de longas. Poderíamos ficar a vida toda condenados a fazer curtas, se a nouvelle vague não tivesse fraturado esse sistema. Graças a Chabrol, Truffaut e Rohmer, os produtores de Argos Filmes me abriram as portas do longa. Devo isso aos jovens da nova onda.
"Voler" é um verbo com duplo sentido em francês. Significa roubar e voar. O roubo da carteira de Sabine e o fato de ela ser aviadora indicam, talvez, uma duplicidade. As pessoas não parecem satisfeitas consigo mesmas. Dussolier quer um amor, Sabine quer voar. Vai nisso um comentário social sobre a insatisfação no mundo?
Como se trata de um livro de Christian Gailly, não vou fazer uma interpretação muito pessoal da coisa. Para mim, tanto o personagem de Georges Palet como os outros são sonhadores que possuem fantasmas e não passam necessariamente pela ação direta. O espectador, neste momento preciso, em relação ao que vem sentindo durante o desenrolar do filme, pode pensar que talvez seja o que ele sinta ou então que não sente nada. Tínhamos, por sinal, várias soluções para evocar o passado a que você se refere, e tanto poderíamos acreditar em Georges como um homem extremamente violento, talvez um assassino, como em alguém que sofreu uma falsa acusação. Ou seja, tanto um inocente total quanto um culpado possível. Mas isso não é o que se poderia dizer de cada um de nós? Eis que eu me ponho pretensioso e afirmo - queria que o filme, apesar de tudo, permanecesse leve.
O filme conta uma história de amor louco, mas é principalmente uma declaração de amor ao cinema.
Fico muito contente que você pense que eu amo o cinema, mas quando trabalho eu gosto de me guiar pelo instinto, não fico refletindo o tempo todo. Existem cenas que visualizo ou não e, sim, vou voltar ao conceito da fidelidade "intuitiva", que não é em absoluto racionalizada. Sou influenciado pelo cinema como posso ser por pessoas que conheço na vida, nos restaurantes que frequento, amigos que visito. Pode não ser provável, mas acontece e com certeza não é intencional, sejamos simples ao reconhecê-lo.
O senhor não escreve seus roteiros, mas possui uma assinatura de cena muito forte? Qual é a importância que atribui ao roteiro?
Vou lhe dizer mais uma vez que me sinto envaidecido pela importância que você me confere. O que me interessa, ao fazer um filme, é a mise-em-scène, o encontro de imagens, sons e diálogos que sejam coerentes a ponto de formar uma obra de arte, uma escultura. Parece-me que a emoção nasce, no cinema, quando existe uma forma precisa, logo minha participação... Você sabe delas melhor que eu, fico constrangido. Claro que quando um roteirista me envia, semana após semana, dia após dia, as folhas que escreve, nós ficamos conversando, avaliando, até mesmo de forma a nos convencer que o material que temos é o melhor. Mas eu não tenho consciência de possuir um estilo e tento simplesmente ser fiel ao roteiro, ao filme. É o filme, no limite, que tem de me carregar, é a única influência que reivindico. Digo, às vezes, rindo, com melancolia: "Ah, gostaria de poder ver meus filmes com olhos de espectador", mas não vejo como isso possa ocorrer. Não consigo me desligar de uma certa consciência que carrego pela vida.
Coeurs recebeu no Brasil o título da peça de Alan Ayckbourn, Medos Privados em Lugares Públicos. É um pouco o tema de Ervas Daninhas (Les Herbes Folles).
Sim, muitas vezes ocorrem estranhos encontros nos sets de filmagem. Podem ser autores diversos, como Christian Gailly e Marguerite Duras, que não pertencem ao mesmo universo estético. Creio que, na base, o que ajuda a explicar tudo isso é meu imenso amor por Samuel Beckett. Em todo caso, as coisas são sempre impressões, nunca mais do que isso.
O que mais impressiona em Ervas Daninhas é a leveza do relato. Dussolier e Sabine dão a impressão de serem completamente livres. Hitchcock comparava os atores a gado. E o senhor? Como trabalhou com eles?
Tenho um grande respeito pelos atores e até gosto de retomar uma frase de Alfred Hitchcock, que dizia: "Quando se escolhe o elenco, é aí que se roda o filme." Penso que a contribuição do ator é fundamental, mas o que me interessa é levar o ator a um estado de hipnose, e nunca despertá-lo. É por isso que filmo muito, repito demais, para ver até onde o ator consegue ir. Jamais escolho automaticamente a primeira tomada. Hitchcock não dizia que seus atores eram gado ou dizia só brincando. Não creio que se possa ver na frase uma opinião séria de Hitchcock, basta ver a contribuição dos atores nos filmes dele e a forma como muitos voltaram a trabalhar com ele. Por que voltariam, se ele não os amasse? Dito isso, "gado" pode conter muitos sentidos.
Por que mudou o título do livro?
A razão é simples. Eu estava no balcão de um café parisiense e o barman me perguntou: "Você prepara um novo filme? Como vai se chamar?" "O Incidente." "Quê?" "O Incidente." "Como?" "O Incidente. L"Incident." "Ah... O acidente." "Não O Acidente, O Incidente." "Vai ser um remake?" Me parecia que, a cada vez que me colocavam a questão, não conseguia fazer compreender o título. Procuramos outro e, entre 50 proposições, surgiu Les Herbes Folles (Ervas Daninhas). Me parece que define muito bem nossas ações humanas e também os personagens. Ficou perfeito.
O que tem a dizer sobre os 50 anos da nouvelle vague? O senhor sempre foi um tanto marginal ao movimento, mas com Godard e Truffaut mudou o cinema. Qual era sua relação com eles?
Pela diferença de idade não cheguei a pertencer ao movimento, mas sempre tive boas relações com o que mais tarde ficou conhecido como nouvelle vague. Na época não percebíamos, mas a grande diferença é que os autores da nouvelle vague, os maiores, queriam mudar as condições técnicas e os temas e a própria realização. Eu vinha de uma escola mais tradicional. Nunca pensei, rodando meu primeiro filme, que eu pudesse estar mudando alguma coisa no cinema. Me atraía a ideia de rodar um filme cuja cronologia não fosse respeitada porque achava que seria mais forte se conhecêssemos as coisas que aconteciam, com os personagens, mas não na ordem. Tinha relações particularmente calorosas com François Truffaut. Estávamos de acordo que não era preciso passar pelos nove estágios que os produtores e sindicatos exigiam antes de conceder a permissão de dirigir. Se você tem um produtor, isso é o que importa. Tenho de acrescentar que muito me beneficiei do aporte da nouvelle vague porque me permitiu mostrar aos produtores que era possível filmar sem a experiência que era exigida e, principalmente, que eu podia fazer longas. Havia na França, pelo menos em Paris, a crença de que bons diretores de curtas não sabiam fazer longas. Havia até um sindicato de técnicos de filmes curtos que não se encontrava com seus colegas do sindicato de longas. Poderíamos ficar a vida toda condenados a fazer curtas, se a nouvelle vague não tivesse fraturado esse sistema. Graças a Chabrol, Truffaut e Rohmer, os produtores de Argos Filmes me abriram as portas do longa. Devo isso aos jovens da nova onda.
Reportagem de Luiz Carlos Merten
FONTE: Estadão online, 25/12/2009
Nenhum comentário:
Postar um comentário