sábado, 19 de dezembro de 2009

Veríssimo ivestiga a condição literária


 “É o esqueleto que nos traz de pé, certo, mas ele não informa nada, como a gramática é a estrutura da língua mas sozinha não diz nada, não tem futuro. As múmias conversam entre si em gramática pura.” “Sou um gigolô das palavras.” “A gramática precisa apanhar todos os dias para saber quem é que manda.”
Os espiões, de Luis Fernando Verissimo, narra a história de um homem formado em letras, funcionário de uma editora, fadado, como ele mesmo afirma, a transformar-se em um camaleão. Por que camaleão? Porque, ao que a narrativa indica, esta é uma escolha profética para o profissional de letras que “se adapta a qualquer circunstância e desaparece contra o fundo”, guarda seu romance na gaveta e lê originais de péssima qualidade. Enquanto isso, o livro Astrologia e amor : um guia sideral para namorados, de Fulvio Edmar (um dos personagens), faz sucesso.

O narrador-personagem passa os fins de semana tentando esquecer-se no fundo da garrafa. Ainda de ressaca, costuma jogar vários originais no lixo sem lê-los. Eis que numa terça-feira recebe um envelope branco. Endereçado com letras trêmulas, chama sua atenção. O título do texto é um nome: Ariadne. Algo que poderia ser autobiográfico ou confessional. Uma mulher diz querer se vingar do que tinham feito com ela e seu amante para, posteriormente, cometer suicídio. E assim começa a trajetória de espionagem inspirada em John Le Carré.
Ariadne afirma no texto ter o nome inspirado no quadro de Giorgio De Chirico, alvo da paixão obsessiva de seu pai. O que o próprio pintor qualifica de pintura metafísica trará também para esta personagem o mistério e a impulsão para o sonho. Além disso, na mitologia grega, Ariadne ajuda Teseu a sair do labirinto após a morte do Minotauro. Em Os espiões, Verissimo joga esse fio onírico para o narrador-personagem como forma possível de recuperá-lo da paradoxal estagnação camaleônica na qual se encontrava. O que não se esperava era que no fim deste labirinto romanesco a palavra grega para seduzir tomaria o sentido de destruir.
Como um bom gigolô, Verissimo transforma esse jogo de espionagem não só num suspense sobre o futuro de Ariadne, mas também em vestígios teóricos sobre a condição da literatura. A ansiedade do leitor, sobre o mistério da mulher, funde-se ao desejo de descobrir no fim do labirinto o futuro literário do narrador-personagem.
Aqui, mais uma vez, as palavras apanham: “A má literatura é a literatura em estado puro, intocada por distrações como estilo, invenção, graça ou significado, reduzida apenas ao ímpeto de escrever, à compulsão”, como afirma Dubin, um dos espiões, amigo do editor. Reparemos a ironia e humor, típicos de Verissimo, na escolha da palavra “distrações”. O narrador-personagem e editor confessa que quase se deixa sucumbir pelo encantamento de Ariadne: “Todos nós merecíamos pertencer à irmandade dos que escrevem só por querer (...) com ou sem talento”. No entanto, o que sabemos é que, nas palavras do nosso gigolô ou de Dubin: a literatura ou gramática pura não dizem nada, não têm futuro.
Mitologia grega, De Chirico, Le Carré e ainda Sylvia Plath são visitados de forma particularmente encantadora. O olhar para o passado artístico traz um novo sabor às pistas do romance de Veríssimo. Sylvia Plath, poeta americana, que se suicida aos 30 anos, revela-se uma das chaves principais para o enigma a ser decifrado.
Logo no início do romance, o narrador-personagem organiza-se com seus colegas de trabalho e de bar para o resgate de Ariadne. O processo cômico de investigação começa com a viagem dos “homens de dentro” – primeiro Dubin e depois o professor Fortuna – para Frondosa, onde mora a potencial escritora. Enquanto esses homens apreendiam informações e vivenciavam as mais loucas e misteriosas situações na pequena cidade, o editor recebia capítulo por capítulo o romance de Ariadne. Imaginava-se como Dionísio indo resgatar a triste mulher de pedra do quadro de De Chirico.
Com a chegada do quinto capítulo, o narrador finalmente tem acesso ao possível mistério da morte do amante secreto. “Tudo convergia para o final dramático”, mas faltava o suicídio. “Morrer é uma arte como qualquer outra, e um bilhete de suicida sem suicídio é um prólogo sem livro, um exemplo extremo de literatura imprestável. Mero halterofilismo mental, que é como o professor Fortuna descreve toda a literatura moderna. O livro só ficaria 'pronto' com o suicídio”. Tal perspectiva, muito além de impulsionar a ida do editor a Frondosa, faz refletir sobre o próprio fazer literário contemporâneo que, por vezes, torna-se uma ginástica cerebral, vazia de uma história bem contada ou que, em contrapartida, abandona o estilo impulsionado por um narcisismo feroz e sem cabimento.
A narrativa de Os espiões revela uma complexidade literária cheia de personagens alegóricos da atual condição da literatura e dos profissionais de letras. Um editor amargurado que tenta se metamorfosear, metaforicamente, em camaleão. Um escritor de um livro sobre astrologia de grande sucesso. Uma autora de livros de pensamentos também tem um grande sucesso. Um professor de letras diz ter lido os gênios da literatura e da filosofia e constrói teorias das mais loucas – “Tanto Dostoievski quanto Machado de Assis tinham inclinações tântricas” – para despertar o interesse da plateia. Dentre outros personagens, inclusive Ariadne, que direcionam o leitor por um caminho labiríntico de humor. Na saída ou final, há um tom um tanto negro e irreverente. O que pode se dizer é: aqui os espiões acabam por colocar, literalmente, no caixão, as múmias escritoras. Tudo numa linguagem na qual o esqueleto de maneira nenhuma pode nos informar.
A epígrafe de Os espiões: “O que amarei se não for o enigma?”, Giorgio De Chirico. Pergunta que deveria pairar sobre todos os profissionais de letras. Não só aos críticos, mas aos escritores preocupados com o excesso de apreensão do presente, ou com o umbiguismo claustrofóbico que só pode levar ao “desaparecimento contra o fundo”

Fonte: Jornal do Brasil - 18/12/2009 - Reportagem de Carina Lessa

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