Em agosto de 2005, iniciou-se um ano estranho para o nova-iorquino A.J. Jacobs. O escritor e jornalista decidiu que, nos quase 400 dias seguintes, viveria estritamente de acordo com os ditames da Bíblia, dos mais conhecidos aos mais obscuros. Jacobs enfrentou questões imensas, como não mentir nem uma mentirinha, por mais social que fosse, ou não cobiçar mulheres que não a dele, nem mesmo as hipotéticas (o que o levou a cobrir com fita-crepe a figura sedutora de uma gueixa em um rótulo de chá).
E enfrentou também questões bizarras, como não semear dois tipos de grão no mesmo campo (fácil de seguir, já que em Nova York áreas de plantio são mesmo artigo incomum), ou como decidir onde se sentar no metrô ou numa lanchonete, já que assentos que tenham sido ocupados por mulheres no período menstrual ficam impuros (por via das dúvidas, ele às vezes carregava um banquinho). Jacobs narrou esses e outros episódios vividos no período em que circulou barbudo e de túnica branca por Manhattan no livro The Year of Living Biblically (O Ano de Viver Biblicamente), que lançou em 2007.
A seguir, ele faz um balanço da sua experiência ao correspondente de VEJA em Nova York, André Petry.
Qual foi a situação mais extraordinária daqueles 387 dias?
Foi cumprir o mandamento bíblico de apedrejar os adúlteros. Você há de entender que isso não combina muito com a Manhattan dos dias de hoje. Acabei usando seixos, aquelas pedrinhas de cascalho, bem miudinhas, de modo que ninguém saísse ferido.
Das 700 orientações que o senhor extraiu da Bíblia, qual lhe pareceu a mais inexplicável?
A que proíbe o uso de roupas com mistura de fibras. As roupas devem ser feitas de um único tipo de fibra, sem combinações. Isso exige uma administração microscópica. Que diferença faz para Deus se estou usando camisa só de algodão ou se tem algodão e poliéster?
O que é mais fácil de seguir: o Velho ou o Novo Testamento?
Essa é uma pergunta complicada. Há mais regras no Velho Testamento, mas no Novo Testamento Jesus fala em perdoar e amar seu inimigo. Isso é dureza.
O senhor acha que alguém na história seguiu os mandamentos bíblicos literalmente, incluindo Jesus Cristo?
As pessoas pegam umas partes para seguir ao pé da letra e excluem outras. Todos nós praticamos uma religião de padaria, incluindo e excluindo elementos.
É possível identificar na Bíblia o que deve ser tomado como literal e o que é apenas metafórico?
Acredito que sempre haverá uma discussão sobre isso e nunca chegaremos a uma conclusão inequívoca.
Como não se pode falar o nome de outros deuses (êxodo, 23:13), então é proibido torcer para a tenista Venus Williams?
No Velho Testamento, de fato, não se pode dizer o nome de deuses pagãos, como Vênus. Acredito que você possa torcer pela Venus Williams, mas não deve ficar berrando o nome dela. Ou, melhor ainda, torça pela Serena.
Pelas suas contas, a Bíblia faz quarenta referências negativas ao uso de bebidas alcoólicas, 62 neutras e 145 positivas. Afinal, como um respeitador da Bíblia deve encarar a bebida?
No geral, o vinho é um exemplo da bênção de Deus, mas só quando bebido com moderação. A Bíblia tem muitas histórias de gente que bebeu demais e acabou se encrencando. Noé se embebedou uma vez e terminou desmaiando, só que desmaiou pelado, o que causou todos os problemas possíveis.
O valor da Bíblia certamente não está em seguir seus ensinamentos ao pé da letra. Onde está?
A Bíblia é cheia de sabedoria, cheia de compaixão, e o fato de tê-la vivido por mais de um ano mudou minha vida para sempre. Essa experiência mudou minha vida de uma forma muito profunda.
O senhor acredita em Deus?
Depois de um ano, eu comecei a frequentar uma sinagoga e matriculei meus filhos numa escola judaica. Continuo agnóstico, pois não sei se Deus existe. Mas tenho profundo respeito pelo conceito do sagrado
Reportagem de Isabela Boscov
Fonte: Revista VEJA onlie, Ed. 2144/ 23 de dezembro de 2009
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