Enzo Bianchi*
"A tradição cristã não pode e não sabe separar justiça e ecologia, partilha da Terra e respeito pela Terra, atenção à vida da natureza e cuidado da boa qualidade da vida humana: são dois aspectos de uma única urgência: combater a desordem, a vontade de poder, fazer reinar a justiça, a paz, a harmonia."
Enquanto a atenção mundial estava dirigida às discussões de Copenhague sobre o clima da Terra e a italiana, às consequências do gesto de uma pessoa com problemas psicológicos sobre o clima da convivência civil, a mensagem de Bento XVI para o Dia Mundial da Paz do próximo dia 1º de janeiro passou praticamente despercebida.
Porém, a temática escolhida para esse ano é de ardente atualidade ao indicar o nexo profundo entre a paz e a proteção da criação. Paz, de fato, não é só ausência de guerras – mesmo que isso é o que tantos homens e mulheres nas mais diversas regiões do globo esperam há muito tempo –, mas também uma vida plena, em harmonia com a criação, habitada pela memória reconciliada com o passado, da justiça pelo presente, da esperança pelo futuro.
Assim, retomando e desenvolvendo algumas temáticas já presentes na encíclica "Caritas in Veritate", Bento XVI destaca alguns elementos irrenunciáveis na reflexão contemporânea sobre os problemas que afligem o mundo. Sobretudo a consciência da responsabilidade que nós, seres humanos, temos com relação ao ambiente natural e aos mais fracos dentre nós, particularmente "os pobres e as gerações futuras". Depois, a capacidade que a Igreja, "perita em humanidade", tem de reforçar "a urgente necessidade moral de uma nova solidariedade" – intergeracional e intrageracional, isto é, capaz de projetar-se "no espaço e no tempo" – que, na situação atual, só pode se conjugar com uma "revisão profunda e clarividente do modelo de desenvolvimento" e com a "sobriedade".
Mas há também a percepção de uma dicotomia sempre mais pronunciada entre os raros "projetos políticos clarividentes" e os sempre mais frequentes "míopes interesses econômicos": dicotomia particularmente preocupante hoje que a política, também mundial, parece submeter-se à economia, quase resignada a se tornar sua serva impotente.
O texto do Papa nos lembra com eficácia que o interesse pela criação, e portanto pela relação da humanidade com ela, é uma instância da fé bíblica: existem "razões cristãs" absolutas e precisas para a ecologia, razões nunca separáveis, justamente, da questão da justiça e da paz. A tradição cristã, de fato, não pode e não sabe separar justiça e ecologia, partilha da Terra e respeito pela Terra, atenção à vida da natureza e cuidado da boa qualidade da vida humana: são dois aspectos de uma única urgência: combater a desordem, a vontade de poder, fazer reinar a justiça, a paz, a harmonia.
A terra é desolada quando menosprezamos a qualidade da vida do homem e da vida do cosmos, e a qualidade da vida humana depende também da vida do cosmos do qual o homem faz parte e que é o seu lar.
Assim, ao enfrentar a questão ecológica, Bento XVI mostra ter no coração que esse anúncio cristão seja proclamado com uma linguagem antropologicamente compreensível por todos e capazes, ao mesmo tempo, de remarcar as peculiaridades que o impedem de ceder "a um novo panteísmo com acentos neopagãos".
Os profetas do Antigo Testamento já haviam procurado anunciar o futuro que espera pela criação com imagens poéticas, pastorais – o cordeiro e o lobo que pastam juntos, a criança de peito e a serpente que brincam juntos, o deserto florido... - mas com o objetivo de despertar nos homens uma atração não por aquilo que se perdeu, mas sim por aquilo que está na frente, como uma vocação e uma promessa.
Essas imagens que chegaram até nós não pretendem inculcar uma nostalgia por culturas não mais atuais ou pedir uma conservação virginal da natureza: ela não é um patrimônio original inviolável e imaculado, e é preciso vigiar mais do que nunca para que não acabe sendo divinizada ou sacralizada como "Gaia", divina mãe virgem e imaculada que pede para ser preservada de toda intervenção humana.
Por isso, a mensagem do Papa exorta a vigiar também sobre um outro perigo: na crise de relação entre o homem e a alteridade da criação – alteridade que o homem hoje não sabe respeita, tentado como é para absorver em si mesmo tudo o que está diante de si – aparece a tentação de eliminar "a diferença ontológica e axiológica entre a pessoa humana e os outros seres vivos".
Não se deve esquecer que a nossa geração é talvez a primeira na história a ser consciente de que das suas próprias escolhas dependem a vida ou a morte dos seres, do planeta, e essa consciência, infelizmente, deriva de evidências que se impõem: do ar viciado, das águas envenenadas, do solo mortificado e explorado, do deserto que avança. A verdade é que vivemos uma relação errada com a matéria do mundo, não sabendo reconhecer nela a obra vivificante do Espírito Santo que nos requereria uma relação de respeito e de amor. As criaturas são para nós um objeto neutro de consumo, objeto que servem para satisfazer os nossos desejos, instrumentos para o nosso bem-estar sem limites e sem lei.
Porém, também nesse exigente discernimento, os cristãos teriam diante de si o caminho traçado por Jesus, o "homem segundo Deus", que soube viver com a criação de modo exemplar. O seu agir messiânico não se referia só à relação com os seres humanos, mas também com a criação: Jesus amou a Terra, permaneceu fiel a ela, mostrou-se um contemplativo da criação, capaz de ver nela "um dom de Deus para todos" – como lembra Bento XVI – e uma responsabilidade para o homem.
Reconciliado com a natureza, com os animais, com as fadigas humanas, com a realidade cotidiana, pela contemplação da natureza, Jesus soube tirar lições e consolação, soube responder ao gemido presente em todas as coisas. Os cristãos, seguindo-o, diante do "deserto que avança" anunciado por Nietzsche, diante da Terra sempre mais desolada, deveriam aprender a reconhecer, na profundida da criação, da "signatura rerum", da escritura das coisas, as suas lágrimas e os seus louvores.
Então, talvez saberíamos dirigir de modo confiável aos nossos irmãos e irmãs de humanidade o urgente apelo que Bento XVI quis dar voz: "Se quiseres cultivar a paz, preserva a criação".
A tradução é de Moisés Sbardelotto para o IHU online, 21/12/2009
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