Moacyr Scliar*
Dificilmente encontraremos, no pensamento contemporâneo, um autor mais original do que Walter Benjamin. Michael Löwy que, no Brasil e no exterior, publicou vários livros sobre a obra benjaminiana, diz que ele é “inclassificável”: um marxista, sim, mas um marxista que não recusa o misticismo, a alegoria; um marxista messiânico. Vivendo na época do nazifascismo, porém, Benjamin não podia partilhar com esquerdistas a visão de ingênuo otimismo, que quase sempre resultou em severa desilusão. E o pessimismo foi uma causa, ainda que indireta, de sua morte: fugindo da França, ele tentou entrar na Espanha. Ao saber que a fronteira estava fechada, suicidou-se (a fronteira foi aberta em seguida).
Pouco antes de morrer, Walter Benjamin concluiu uma série de textos intitulada Sobre o conceito de história e redigida sob a forma de curtos capítulos, as teses. Destas, a mais famosa é a Tese IX. Nela, Benjamin reporta-se a um famoso quadro de Paul Klee, intitulado Angelus novus. O anjo nele retratado — uma figura patética, olhos arregalados, asas abertas — é visto, na tese, como o “anjo da História”. Do paraíso, diz Benjamin, vem uma tempestade que propele inexoravelmente a estranha criatura para o futuro. Mas é para o passado que o anjo está voltado; e o que ele vê, em sua alucinante trajetória, não é nada animador: trata-se de uma “catástrofe” resultando em “escombros sobre escombros”. O anjo “bem que gostaria de demorar-se, de despertar os mortos, de juntar os destroços”; mas não pode, porque o vento furioso, soprando em suas asas, não o permite. Conclui Benjamin: “O que chamamos de progresso é esta tempestade”.
É curioso que Benjamin tenha escolhido uma metáfora climática (como alias é o dilúvio) para defender seu ponto de vista: ele parecia estar antecipando a conferência de Copenhage e a questão ambiental: o desmatamento, os buracos na camada de ozônio, o efeito estufa. Não era só isso, contudo. Para Benjamin, o progresso, em geral, resultava da exploração e do sofrimento de milhões de seres humanos. Quanto melhor para alguns, pior para muitos outros.
Mas há um problema com o anjo que só vê o passado. Um problema que o deus romano Jano (de onde vem o nome do primeiro mês do ano) não tinha. Porque esse deus, vamos recordar, era bifronte, como convém a alguém que preside a passagem do ano: ele podia olhar o passado, mas também ver o futuro. Mais que isso: as duas faces faziam parte da mesma cabeça. Seu cérebro podia, portanto, processar as imagens vistas, analisá-las e delas extrair conclusões. O futuro, diz o provérbio, a Deus pertence; a Deus ou à bola de cristal, ao tarô, aos búzios. Mas é possível introduzir um elemento de racionalidade na previsão do futuro, assim como é possível introduzir um elemento de racionalidade na análise do passado.
E essa racionalidade nos mostra que as coisas não são tão ruins assim. O Brasil melhorou, o mundo melhorou. As pessoas estão vivendo mais e em melhores condições (tanto que, em muitos lugares, a obesidade já superou a desnutrição como problema de saúde pública). A verdade é que, bem ou mal, o ser humano aprende com seus erros. Os escombros de que fala Walter Benjamin podem ser usados para novas construções, mesmo que feias, mesmo que precárias, como são as casas de favela. Walter Benjamin achava que só a revolução (socialista, bem entendido) poderia deter o desastre que angustia o anjo da história; mas o que se viu é que muitas vezes foi a revolução que resultou catastrófica. De outra parte a evolução, mesmo que lenta, dá resultados.
Vamos entrar em um novo ano. É melhor fazer isso de frente, sem olhos arregalados e sem asas abertas, sem sustos nem ilusões. Nesses momentos é bom ser otimista, mas é bom também não ser anjinho.
*Escritor. Médico. Colunista do CB, ZH...
Fonte: Correio Braziliense online, 29/12/2009
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