sábado, 12 de dezembro de 2009

José Maria Castillo- Deus se experessa na perfeita humanidade de Jesus.


‘O poder da Igreja de hoje me dá pena e coragem’, diz teólogo espanhol

José María Castillo é um dos grandes da Teologia na Espanha e no mundo. É um teólogo de fibra, que sabe combinar perfeitamente o ensaio profundo, o livro sério, com a divulgação. Por isso, se converteu em um teólogo de referência, tanto a nível clerical como a nível das bases. Há alguns anos deixou a Companhia de Jesus. Dizia, naquela época, que para se sentir mais livre. É um teólogo, como todos os que estão em campos de fronteira, perseguidos pela Congregação para a Doutrina da Fé (com vários monitums [advertências] contra ele), mas que segue na luta. Não se queimou. É daqueles que seguem dando o pão de seus livros às pessoas. Por exemplo, seu novo ensaio editado pela Trota: La humanización de Dios.

A entrevista é de José Manuel Vidal e está publicada no sítio espanhol Religión Digital, 09-12-2009.
A tradução é do Cepat.

Eis a entrevista.

José María, bom-dia. É um prazer que estejas conosco.
Muito prazer, obrigado.

É um duplo prazer, porque contamos também com teu blog, que dignifica ainda mais a nossa página.
Isso para mim também é um presente. Me sinto bem à vontade, e o considero uma generosidade da parte de vocês.

Qual é a tese fundamental do teu novo livro?
Creio que a tese está suficientemente indicada no título. Deus, na história das religiões, é considerado como um ser transcendente e, portanto, distante e inalcançável. Em uma ordem completamente diferente e inacessível ao ser humano. Portanto, as religiões ao máximo que chegam é falar da relação do homem com Deus. A originalidade do cristianismo está em que fala da união do homem com Deus. E a partir desse momento é preciso se perguntar se é o homem que deve ser elevado à condição divina, ou se Deus desce e se identifica com a condição humana.

Como o texto dos Filipenses?
Claro, porque não há um termo médio. É preciso optar por um ou outro. É verdade que a definição dogmática do Concílio de Calcedônia, no século V, optou por uma solução que parecia intermediária: dizer que Deus é verdadeiro Deus e verdadeiro homem, mas que Nele há uma única pessoa que é divina. Dessa maneira, sem dizê-lo, está dizendo que é mais Deus que homem.

E pretendes dar a volta?
Pretendo simplesmente tomar como ponto de partida um mistério central do cristianismo: a Encarnação. Que Deus se faz carne, como diz o Novo Testamento. E fazer-se carne é descer e identificar-se com o mais profundamente humano. Deste ponto de vista, temos todo o direito do mundo para dizer que Deus, em Jesus, se humanizou. E, portanto, se identifica com tudo o que é humano. Ao extremo de poder dizer, no famoso texto do Juízo Final: “O que fizestes a um destes pequeninos foi a mim que fizestes”.

Mas isso também é doutrina da Igreja?
Isso está no Evangelho, e por isso a Igreja tem o dever sagrado de ensiná-lo, defendê-lo e explicá-lo.

E no Credo.
Sim, mas acontece que o Credo, tanto em sua fórmula curta (do Concílio de Nicéia) como na mais longa (do I Concílio de Constantinopla) foi redigido em condições marcadas por uma forte influência política. Dos imperadores. Não esqueçamos que os quatro primeiros Concílios da Igreja não foram convocados pelos Papas, mas pelos imperadores. Foram pagos, aprovados e promulgados por eles. E que até Teodósio I (final do século IV) utilizavam o título de Sumo Pontífice.

Ou seja, que a nossa fé descansa sobre os imperadores romanos?
Não diria tanto, mas que os imperadores tiveram uma influência determinante na formulação daqueles Concílios. A ponto de que um dos grandes temas que se estuda sobre aqueles tempos é o cesaropapismo, que foi o fato da intervenção dos imperadores na teologia, impondo seus critérios e seus pontos de vista. Eu, no livro, dou o exemplo muito eloquente e atual: imaginemos que Obama convoque um concílio ecumênico na Casa Branca. Que reúna ali todos os bispos do mundo, custeie sua estadia, aprove os documentos e os promulgue. Muita gente ficaria com reservas.

Evidentemente.
É verdade que não se pode transpor o século IV ou V para o século XXI, porque seria uma injustiça histórica e uma ingenuidade pedagógica. Mas não esqueçamos que há grandes paralelismos entre uma coisa e outra.

Então, esse cesaropapismo arrastou a definição de Cristo mais para o divino, em detrimento da parte humana.
Efetivamente. O empenho de Nicéia contra o imperador Constantino foi afirmar como dogma a identidade de substância, de ser, de Jesus Cristo com Deus, com o Pai. Nesse sentido, se salvou a divindade de Cristo, ao afirmar que a sua natureza era a mesma que a do Pai. Mas se carregou tanto a mão nos séculos seguintes no aspecto da divindade (e aqui aparecem os Padres da Igreja), que aquilo terminou em que no Concílio de Calcedônia o que se teve que defender foi a humanidade. Porque o que o monofisismo do monge Êutiques defendia era que Jesus não era um ser humano como os outros. Divino, mas não humano. E isso a Igreja também condenou.
Acontece que a Igreja segue tendo um monofisismo eterno oculto, dissimulado. Há muitas pessoas que estão convencidas de que Jesus Cristo é Deus. Santo Tomás, na Suma Teológica, se pergunta se Jesus fazia as necessidades humanas.

Se ia ao banheiro como qualquer ser humano.
Claro. Um velho professor meu dizia que isso que Santo Tomás disse é uma estupidez, porque Jesus era um ser humano, e tudo o que é humano é próprio de Jesus.

Dá a sensação de que a Igreja tem certa vergonha dessa realidade. Não só esse tema, mas o do desejo sexual de Cristo. Teve ou não desejos sexuais?
Se isso é humano, teve que tê-los.

E por que esse medo de reconhecê-lo?
Porque há certas constantes na experiência humana. Nos séculos I, II e III era o agnosticismo, que antepunha o divino ao humano. Espírito-matéria, sobrenatural-natural. Depois, essa tendência foi reaparecendo de diferentes formas. No fundamentalismo e nas tendências mais liberais.

A Igreja continua tendo medo da humanização de Cristo?
E não apenas de Cristo, que era plenamente humano, mas de Deus. A chave está na pergunta de Felipe na Última Ceia, quando disse a Jesus: “Senhor, mostra-nos o Pai”. Jesus lhe responde: “Felipe, ainda não me conheces?”. Se eu fosse Felipe lhe teria dito: “Sim, eu te conheço. O que quero é conhecer Deus”. Mas é que Jesus acrescentou, sem que esta intervenção fizesse falta: “Aquele que me vê, vê o Pai”.

Ver Jesus era ver Deus. Ouvi-lo era ouvir Deus. Tocar Jesus era tocar Deus. Portanto, desde o momento em que Deus se humaniza, se funde com a carne. Com o mais frágil da condição humana.

Assumindo todas as consequências.
Toda a fraqueza, menos o pecado. Menos a maldade, que é desumana, desumanização. Assume tudo o que é plenamente humano.

Mas também teve que se zangar.
Claro que sim. Na sinagoga, no episódio do coxo, perguntou se a religião permitia salvar ou condenar uma vida. Aqueles que queriam colocá-lo à prova se calaram, e o Evangelho de Marcos diz que Jesus lhes dirigiu um olhar de ira. Ira, não indignação!

Na famosa cena do Templo, que se coloca às vezes como exemplo disso, quando pega o chicote, sentiu indignação ou também ira?
Provavelmente as duas coisas, porque haviam convertido o Templo em uma cova de ladrões.

A humanização segue trazendo problemas? José Antonio Pagola é um exemplo atual claro disso.
Evidentemente. Há uma resistência não confessada, mas muito forte. Porque o humano é a coisa mais básica da nossa condição, anterior ao cultural, ao religioso, etc. E Deus se identifica com isso. Deus se encontra sobretudo no laico, no comum a todos os seres humanos. Estas foram as grandes preocupações de Jesus. E para isso apelava a Deus. Porque Jesus sabia muito bem que sem fé, sem profundas convicções, a condição humana não é capaz de nada. Porque o desumano predomina em nós. O Pecado Original. Então, me parece que a originalidade do meu livro está em dizer que devemos buscar a Deus, sobretudo, no humano. E que o cristianismo existe para nos humanizarmos.

Isso não quer dizer que negues que Deus era também perfeito?
Não, de jeito nenhum. Estou afirmando: o perfeito Deus se expressa, se revela, na perfeita humanidade. Este é o grande mistério de Jesus.

E uma das questões pendentes da teologia é a perfeita humanidade. Por que se pesquisou pouco nessa área?
É que os teólogos muitas vezes dão a impressão de que conhecem mais a Deus do que o homem. Prova disso é que se perguntam: “Jesus é Deus?”. Se analisam essa pergunta, te dás conta de que no fundo estão dizendo que sabem o que é Deus. E perguntam se isso se pode aplicar a Jesus. Eu perguntaria a quem faz essa pergunta: “Você sabem quem é Deus? O viu, o conhece?”.

Conhecemos Jesus pela história evangélica. Pode-se discutir sobre o valor histórico, mas aí há a realidade de um galileu, trabalhador do século I, que viveu de determinada forma, teve tais convicções, fez tais coisas e morreu de tal maneira; sabemos disso com muita segurança. A partir daí temos que conhecer a Deus.

Seria mais fácil conhecer o Jesus homem do que o Jesus deus?
Claro. A partir do Jesus homem podemos começar a conhecer o Jesus deus. Porque se eu vou diretamente ao deus em si, o que posso saber? Disse-o Aristóteles, é a metafísica dos gregos. A especulação dos intelectuais merece respeito, mas o Evangelho tem mais credibilidade.

Ou seja, o que sabemos de Deus sabemo-lo porque Jesus o disse?
Evidentemente. Por isso, ele é revelador e revelação de Deus. É a imagem de Deus invisível. Ou, como diz a Carta aos Hebreus, “Deus finalmente nos falou em seu Filho”. Por meio de seu filho, que é Jesus.

Uma lacuna que assinalas na cristologia é a cristologia política da Igreja antiga. O que queres dizer com isso?
Me refiro ao cesaropapismo, à influência dos interesses políticos na teologia. Compreende-se que isto tenha acontecido, porque era o tempo da decadência do Império. Aquilo estava naufragando e se agarraram ao que era possível. Como viram que o cristianismo estava crescendo, se agarraram a ele. Mas, claro, não lhes interessava um Deus crucificado. E o problema com o qual se defrontaram foi que o cristianismo pregava que o deus no qual acreditavam era um crucificado. E isso significava um escravo, ou um estrangeiro, ou um subversivo. Como resolveram isso? Criando um deus Todo Poderoso. Um pantocrator, que era um título imperial, que colocaram em Jesus Cristo. Mas o Deus que emerge dos Evangelhos é um Deus misericordioso.

“Todo Poderoso”.
É isso. As pessoas não necessitam de poderes que as dominem, mas compreensão, misericórdia, respeito, tolerância, ajuda para a nossa debilidade. Este seria o melhor serviço que a Igreja poderia prestar.

E isso a igreja do poder, identificada com o Vaticano, pode cumprir? Olhando para o Vaticano dá a sensação de que estamos diante de um grande poder.

Não é apenas uma sensação, é uma realidade. A cúpula da Praça de São Pedro, a imponência de um cardeal revestido com todos os seus ornamentos, são uma expressão simbólica de uma realidade. A Igreja prega constantemente o Evangelho. Há muitas pessoas na Igreja que pregam e vivem e sofrem por causa do Evangelho. Há bispos e sacerdotes e religiosos e religiosas em lugares onde não vai ninguém. Por exemplo, na América Latina. Padres que estão nos piores lugares. Mas isso não é notícia em nenhuma parte. O que é notícia são as grandes reuniões na Praça de São Pedro ou em qualquer lugar para onde o Papa vai para ser recebido como um grande deste mundo, como um chefe de estado.

E as pessoas não são esclarecidas. Porque, como juntar essas imagens com o que se lê no Evangelho? Jesus também deu muita importância a isto. E quando mandou os apóstolos a evangelizar, lhes disse: “Não levem dinheiro, nem bastão, nem sandálias; não levem duas túnicas”. Porque assim se evangeliza. Eu creio que São Francisco de Assis evangelizou mais na sua humildade e na sua simplicidade – ou a boa gente por aí perdida, padres, freiras, leigos... – que estes personagens que aparecem com essa pompa. Muitos ficam desconcertados e a outros causa mal-estar. Mesmo que haja grupos que sentem necessidade disso.

E o pior, do meu ponto de vista, é que essa tendência está crescendo ultimamente. Vamos rumo a uma Igreja da pompa e da liturgia e nos afastamos dos pobres.
Claro, porque a Igreja, à medida que vai perdendo poder no tecido social, se aferra a essas coisas.

Pela perda de influência?
Sim. Já está perdendo influência por toda a Europa; em todas as partes do mundo, à medida que a cultura vai avançando. Por isso, a Igreja se agarra ao integrismo dogmático, à política, etc., pensando que com isso vai compensar as carências em outros âmbitos. Que são os decisivos. Decisivo é o Sermão da Montanha, que determina a convivência entre as pessoas. Por isso, não se transmite, não se contagia a opinião pública, o povo.

FONTE: Entrevista completa se encontra no IHU/Unisinos:
http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=28275  - 12/12/2009 

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