domingo, 13 de dezembro de 2009

Ferreira Gullar, a poesia que nasce do espanto

Por Ramon Mello

Durante um encontro com a poeta e atriz Elisa Lucinda, na Casa Poema, no Rio de Janeiro, o poeta Ferreira Gullar, nos concedeu uma descontraída entrevista, onde falou, entre outras coisas sobre arte, e a sua arte específica , a poesia, que passou por mudanças notáveis ao longo do anos. “Porque você vai descobrindo outras coisas, indagando outras coisas, e isso se reflete no modo de fazer poesia.”

Uma das vozes mais importantes da arte brasileira, Ferreira Gullar é um exemplo de vigor intelectual – é crítico de arte, poeta, tradutor, biógrafo, memorialista e ensaísta. Aos 79 anos, numa trajetória que atravessa momentos decisivos da formação da nossa cultura, Gullar ainda permite se espantar com o dia-a-dia. A gênese da obra do poeta está nas surpresas que a vida reserva.

“A minha poesia, costumo dizer, nasce no espanto. Precisa de alguma coisa que me surpreenda – que eu não tenha descoberto ainda na vida, com minha experiência de vida.”, confessa Gullar, defensor da prática da simplicidade na escrita do poema.

“Eu só, realmente, não gosto de uma certa tendência, que às vezes se manifesta, de uma poesia hermética, uma poesia incompreensível. Acho que isso não é um caminho certo. Poesia não é “vou ao mercado comprar banana”. Não é isso. Não é o óbvio. Mas não deve ser uma coisa que a pessoa lê e não compreende.”

Nascido em São Luís do Maranhão, e radicado no Rio de Janeiro desde 1951, José Ribamar Ferreira é um cidadão atuante, político. Atento à educação e à arte, consciente da força de suas palavras, o poeta não poupa críticas ao governo Lula.

“O Brasil corre um risco grave. O Lula, que é um sindicalista, junto com os companheiros de sindicato, está ocupando setores importantes da sociedade – fundos de pensão, as grandes empresas estatais. Eles pretendem ficar no governo para sempre, fazendo uma política de caráter sindicalista, oportunista e demagógica”, afirma.

Antes do término da entrevista, Elisa Lucinda é convidada a ler alguns versos para Ferreira Gullar. O poema escolhido é "Ao rés do chão", escrito durante o exílio em Buenos Aires, nos anos 1970.

O motivo do encontro? Entre sorrisos, Elisa justifica: “A Escola [Lucinda de Poesia Viva] sempre teve o Gullar como referência. Ferreira é um poeta afinado com o seu tempo. O poeta é o tradutor dos sentimentos humanos, dá testemunho. Gullar é receitado e recitado”.

No dia 10 de setembro você completou 79 anos. Está escrevendo um novo livro?
Ferreira Gullar – Vou escrevendo ao longo dos anos. Quer dizer, escrevo um poema hoje, daqui a seis meses escrevo outro, daqui a um mês escrevo outro...

Seu primeiro livro, Um pouco acima do chão (1949) foi publicado aos 23 anos. Desde então, o que mudou no seu processo de criação até hoje?
Gullar – No meu caso mudou muito, há poetas que são mais constantes. No meu primeiro livro, que eu ainda estava em São Luís [do Maranhão], Um pouco acima do chão, é um livro imaturo que botei fora, tirei do conjunto da minha [obra]... Eu escrevi com 18, 19 anos. O livro que considero a minha estréia chama-se A luta corporal [1954], que escrevi dos 20 aos 23 anos, é um livro que termina com a implosão da linguagem. O livro seguinte já é bastante diferente d’ A luta corporal, um desdobramento em outro nível. Depois vem a poesia concreta, os poemas neoconcretos, poemas espaciais... Depois abandono toda vanguarda, entro para o CPC da UNE, vou fazer poesia política. Então, minha poesia mudou muito ao longo dos anos, de acordo com determinadas perspectivas e atitudes diante do processo social, político e cultural. O último livro, Muitas vozes, publicado em 1999, já é diferente do anterior. Não é uma diferença enorme, mas há diferença de tom, da colocação temática... Sempre tem diferença. Esse último é sempre um desdobramento do outro... Porque você vai descobrindo outras coisas, indagando outras coisas, e isso se reflete no modo de fazer poesia.

Hoje em dia, o que te motiva a escrever poemas?
Gullar – No fundo, a motivação não é constante. Tanto que escrevo muito pouco. Escrevo muito pouco. A minha poesia, costumo dizer, ela nasce no espanto. Precisa de alguma coisa que me surpreenda – que eu não tenha descoberto ainda na vida, com minha experiência de vida. Entendeu? Nasce, assim, de uma coisa que não controlo. Não posso dizer: “vou escrever dez poemas esse mês”. “Vou escrever um poema amanhã”. Não posso. Está inteiramente fora do meu controle. Tanto que posso passar um ano sem escrever nada... Eu estava oito meses sem escrever, fui fazer uma viagem para Nova York, no hotel... Cheguei lá, de repente, e aconteceu que escrevi cinco poemas numa tarde. É uma coisa nasce de descobertas da vida.

Você acompanha a produção de poesia contemporânea?
Gullar – Não vou dizer que acompanho porque é muita gente publicando, pelo Brasil inteiro. Eu leio os livros que me mandam e algumas coisas que aparecem em revistas. Mas é difícil fixar os nomes das pessoas, são muitos. [risos] Rio [de Janeiro], São Paulo, Maranhão... É uma quantidade enorme de poetas. Tem bons poetas jovens escrevendo. E tem maus poetas, que não têm a mesma qualidade dos outros. Eu só, realmente, não gosto de uma certa tendência, que às vezes se manifesta, de uma poesia hermética, uma poesia incompreensível. Acho que isso não é um caminho certo. Poesia não é “vou ao mercado comprar banana”. Não é o óbvio. Mas não deve ser uma coisa que a pessoa lê e não compreende. Se eu, com a experiência que tenho, leio e não entendo, então imagina o leitor comum. Tem que buscar uma maneira de – aquilo que ele descobriu que é misterioso e difícil – encontrar a forma de dizer, mesmo sem trair o mistério que a poesia tem que ter. Dizer de uma maneira que o outro compreenda, não pode ficar uma coisa hermética. Acho que muitos bons poetas enveredaram por esse caminho. Deve dar uma “meia-trava” para ver, refletir. Mas isso também muda. Termina descobrindo, buscando o caminho.

Depois de construir uma vida no Rio de Janeiro, como fica a sua relação com São Luís do Maranhão. De que forma as cidades interagem na sua produção poética, intelectual?
Gullar – São Luís, que é a minha cidade natal, é onde eu de fato me formei e vivi minha infância – algo importante para mim, essas experiências. Eu era pivete, moleque de rua, roubava coisas em botequim, jogava bilhar. Jamais imaginei que eu ia me transformar em poeta. Mas aquela vida na cidade, tropical, bonita, iluminada, cheia de ventania, as árvores, a luz azul e grossa, os prédios, tudo aquilo me constitui. Acho que eu sou isso. Como personalidade, emoção, memória, sou essa cidade. Mas São Luís, naquela época, era uma cidade pequena, com uma vida cultural limitada. Minha curiosidade, meu interesse pelas coisas, pela arte, me fizeram vir embora para o Rio [de Janeiro], que era, naquela época, a capital do país. Era onde estavam os maiores intelectuais brasileiros, livrarias, editoras. Sempre fui muito interessado por artes plásticas, pintura, escultura, e queria participar disso. Rio de Janeiro é a cidade que eu escolhi para viver, uma cidade linda. A outra cidade, eu nasci nela, sou ela. Quando eu cheguei aqui [no Rio] era uma cidade tranqüila, bastante pacífica, hoje é uma tormento com essa violência boçal. Mas, de qualquer maneira, continua sendo uma cidade muito legal, uma cidade encantadora, dá vontade de ver. E continua tendo sua atividade cultural, o eixo se deslocou para São Paulo, mas o Rio continua a ter força, prestígio e uma atividade cultural importante. Vivi a maior parte da minha vida aqui, de modo que hoje sou também essa cidade, meus poemas refletem isso. Há muitos poemas meus escritos sobre o Rio.

Você continua com uma atividade intelectual intensa: escrevendo para jornais, participando de seminários, escrevendo poesia... Como é lidar com o passar dos anos, o envelhecimento? Como é olhar para sua trajetória?
Gullar – É horrível. [risos] Só a quantidade de amigos que perdi. Sem falar filhos, companheira, irmão, irmã... É barra pesada, não é brincadeira, não. Uma coisa é você saber, como todo mundo sabe, eu tinha 15 anos: “Eu vou morrer, né? Todo mundo morre”. A consciência de que você é perecível, mortal. Isso é uma coisa. Outra coisa é a morte real, perder um filho. Não é teoria, o conceito de que se morre. Não. É perder seu filho. É diferente. Perder um amigo querido. É pesado, difícil. Mas a vida é isso.

Tem medo da morte?
Gullar – Não. Não tenho medo. A morte é boa, não é ruim.

É boa?
Gullar – É boa. A morte é boa. [risos] Primeiro, que é natural. Tem que morrer, né? Depois porque vai ficando muito caquético. Eu prefiro morrer a ficar caquético. Ficar babando na gravata? Não, não quero. Não quero, absolutamente. Viver enquanto a vida te dar algum prazer, você pode fazer as coisas, trabalhar. Viver numa cama, caído, babando na gravata não tem sentido. Tem que dar lugar para os outros, os jovens. Se todo mundo ocupasse todos os lugares, os jovens iam fazer o quê, não é verdade? Os jovens são herdeiros do país. Eles que vão dirigir, governar, fazer leis... Eles que vão fazer. A minha preocupação com a formação dos jovens é fundamental. A educação é fundamental, em todos os níveis, não só educação técnica, científica. Mas a educação literária, artística e ética para formar pessoas legais que vão ajudar aos outros. Uma sociedade solidária, fraterna, isso que tem que se construir. É difícil, complicado, sabemos que é. O sentido da vida são os outros, a vida não tem sentido a não ser esse. O sentido da vida são os outros. Você trabalha para os outros, cria para os outros... Não só para teu filho, teu amigo, mas para todos os outros. É o sentido que eu acho que a vida tem.

Em 2009, completaram-se 10 anos de morte da Dra. Nise da Silveira. Você é autor de um perfil dela...
Gullar – A Nise era uma pessoa especial, uma mulher cheia de generosidade, solidariedade e afeto pelos outros. Ela foi uma mulher que viveu pelos outros. Ela era uma mulher afetuosa, sensível. Tanto que a própria orientação, que terminou dando à vida dela como médica psiquiátrica, foi não fazer as coisas que a psiquiatria fazia: choque elétrico, camisa-de-força... Uma série de coisas que ela se negava a fazer. Então, ela buscou como alternativa a terapêutica educacional, que resultou nos ateliês de pintura, gravura, desenho, cerâmica... E em seguida, no Museu de Imagens do Inconsciente. Porque ela não agüentava o tipo de tratamento que era feito na época. As pessoas têm a mania de pintar tudo de pessimismo, maldade ou perversidade. Não se tinha conhecimento de processos outros, os remédios, não havia. O choque elétrico era uma tentativa de controlar o estado de surto em que o paciente entrava. Mas é evidente que era uma coisa violenta. Nise ficou horrorizada, buscou outro caminho, que revelou uma quantidade de artistas.

Terapia ocupacional não cura esquizofrenia, aliás, nada cura esquizofrenia. Até hoje é uma doença sem cura. Vai ter cura, mas por hora não tem. O remédio permite a pessoa ter um equilíbrio. Existe uma política que o governo adotou, chamada “psiquiatria democrática”, que é um absurdo. Impede a internação. Eles acabaram com mais de quatro mil leitos. Por que chama “psiquiatria democrática”? Porque não interna. Mas é uma bobagem, ideológica, cretina, que não tem nada a ver com essa doença real. Eu, que lidei com essa doença, sei muito bem que não tem nada disso. Quando uma médica veio com essa conversa, perguntei: “É a sociedade que adoece o doente mental? A doença mental não existe? É a sociedade que faz ficar doente? O fígado adoece e o cérebro não adoece? Por quê? É o único órgão divino?“ A Dra. Nise buscou a expressão artística. Mas ele não é artista porque é doido. Ele é artista, apesar de doido. No ateliê da Nise havia 50 doentes, só cinco viraram gênios. Não é a loucura que faz o cara ficar genial, isso é besteira. Van Gogh era gênio porque ele era gênio, não porque ele era doido. Loucura é uma doença.

Você avalia a política nacional com otimismo?
Gullar – O Brasil corre um risco grave. O Lula, que é um sindicalista, junto com os companheiros de sindicato, está ocupando setores importantes da sociedade – fundos de pensão, as grandes empresas estatais. Eles pretendem ficar no governo para sempre, fazendo uma política de caráter sindicalista, oportunista e demagógico. Isso é um perigo, as pessoas têm que pensar nisso. Porque temos que construir um país democrático. A alternância no poder é saudável para a democracia. Não basta voto. O Bolsa Família, que antigamente atingia 4 milhões de pessoas, hoje atende a 50 milhões de pessoas. Isso é comprar voto! Não tem como controlar 50 milhões de pessoas. É neto de prefeito, filho de embaixador, todo mundo recebendo o Bolsa Família. Não tem controle. É uma coisa demagógica, feita para fazer discurso. Artifícios não resolvem problemas, tem que dar trabalhos para as pessoas, e não esmolas. A ajuda tem de ser provisória – o trabalho é que dá dignidade à pessoa. A ameaça é o Brasil virar a Venezuela. As pessoas têm que ter lucidez para colocar estadistas no governo. Quem não lê não conhece o país. Ninguém pode conhecer o país sem ler. É grave.

[batem na porta, avisam que o horário da entrevista está acabando]

Você pode ler o poema?

[entrego a Gullar o livro Muitas vozes]

Gullar – “Infinito silêncio”?
Sim.

Gullar – Houve / (há) / um enorme silêncio / anterior ao nascimento das estrelas / / antes da luz / / a matéria da matéria / / de onde tudo vem incessante e onde / tudo se apaga / / eternamente / / esse silêncio / grita sob nossa vida / e de ponta a ponta / a atravessa / estridente.

[Elisa Lucinda se senta no chão da sala, ao lado da poltrona onde Gullar está sentado]

Por que convidar Ferreira Gullar para uma palestra na Casa Poema?
Elisa Lucinda –É um namoro. A Escola [Lucinda de Poesia Viva] sempre teve o Gullar como referência. É uma palavra moderna e muito fácil, embora seja um homem misterioso. É uma poesia para o esquema da Escola, que gosta de falar poesia sem aquela fleuma, cerimônia que se estabelece antes de se dizer o poema. Essa formalidade com que se trata a poesia acaba atrapalhando o sentido dela. O poema do Ferreira, brotado das profundezas do cotidiano – por isso acho que ele é misterioso –, é um verso livre que cabe na coloquialidade. Há liberdade no poema dele, embora tenha ritmo e uma musicalidade muito forte. É um poema livre. É um Maranhão que interessa muitíssimo a mim. O Maranhão é uma particularidade do Brasil, muito especial aquele lugar. Quando Ferreira falar de amor tem uma inteligência maranhense. Tenho a sensação que o maranhense, mesmo o homem comum, tem amor pelas palavras. Tenho essa sensação. E o fato de ser um poeta que tem essa transversalidade, todo mundo gosta. A durabilidade, a validade do poema dele, é como se fosse a “paudurecência” do verso. [risos] Tem muitos motivos. Ferreira é um poeta afinado com o seu tempo. O poeta é o tradutor dos sentimentos humanos, dá testemunho. Gullar é receitado e recitado. [risos]

Gullar – Cura as pessoas [risos].

Lucinda – E o fato dele ser um poeta experiente, em estado de perfeito uso.

Gullar – [risos]

Lucinda – Totalmente antenado com toda sua obra. Muito bom ter um poeta vivíssimo, discutindo toda sua obra. É um luxo, categoria luxo. Tomara que a vinda dele aqui seja como uma força atuante para que essa casa não feche. Quero ler um poema. Às vezes, não estamos à altura do poema. Não temos como entender, não temos sinapses para fazer. Tem coisas que só a experiência acorda. O sentido do poema é igual palavra nova. Aprendeu uma palavra? Vai começar a ver em todos os lugares. Ela estava lá. É igual gente, se você não conhece, é multidão sem rosto. O sentido do poema também é assim. Pode ser tudo delírio, mas em subjetividade todo mundo pode ter razão. [risos]

“Sobre a cômoda em Buenos Aires/
o espelho reflete o vidro de colônia Avant la Fête/
 (antes,/ muito antes da festa!)//
Reflete o vidro de Suprady, um tubo/
de esparadrapo,/
a parede em frente, uma parte do teto.//
Não me reflete a mim /
deitado fora de ângulo com um objeto que respira. //
Os barulhos da rua /
não penetram este universos de coisas silenciosas./
Nos quartos vazios /
na sala vazia na cozinha /
 vazia /
os objetos (que não se amam): /
uns de costas para os outros.”

É mole? [risos]
Gullar – Poema do exílio. Foi escrito em Buenos Aires, quando eu morava só. Esse poema reflete muito isso. “As coisas que não se amam” No meio de objetos, não é minha gente. Eu sou o objeto que respira. [risos]

Obrigado.

Lucinda – Uma benção. Obrigada.

Gullar – Obrigado você por ter lido esse poema.

FONTE: http://www.saraivaconteudo.com.br/Artigo.aspx?id=154

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