LUIZ FELIPE PONDÉ*
________________________________________
A ciência da natureza cala o universo, a ciência da grana devasta as relações humanas
_______________________________________
UM SINTOMA típico da modernidade é o sentimento de orfandade: o universo não é um útero, mas um deserto. Depois de Newton e sua mecânica, o universo deixou de ser o espaço da "assinatura de Deus" para se transformar numa espécie de lego vazio de sentido. Pedras e inércia.
A ciência moderna abriu o caminho para o darwinismo, que transmitiu aos seres vivos a mesma "assinatura do vazio" que Newton tinha dado aos seres inanimados. Entre Newton e Darwin, as pedras, os animais e você, todos, estão imersos no mesmo mar de silêncio, de inércia e de movimento cego. Enfim, um nada de significado. Qualquer "voz" vinda desse universo é apenas fruto de seu cérebro doente.
Por exemplo, se seu filho de 15 anos tem um câncer, e você pergunta para o médico "mas por quê?", tudo que ele pode responder é "fator genético, processos celulares, azar atômico". Não é isso que você quer ouvir, mas é tudo que a medicina cientifica pode dizer.
Você quer ouvir coisas como: "Ele escolheu ter câncer aos 15 anos nesta vida para aprender algo necessário para seu desenvolvimento espiritual", ou "ele sofre porque foi escolhido por Deus para isso".
Mas não é só a ciência da natureza cega que nos assusta. Outra ciência nos atormenta: a ciência do dinheiro e de sua vida calculada. O capitalismo implica virtudes econômicas e contábeis que devem resolver não só sua conta bancária, mas também suas relações pessoais, suas decisões existenciais, suas escolhas profissionais, enfim, a totalidade da sua vida.
A ciência da natureza cala o universo, a ciência da grana devasta as relações humanas. Essa ciência do dinheiro acaba por desmantelar qualquer mistério. E pior: joga sobre o lamento romântico a suspeita da pura e simples incompetência como causa escondida do próprio lamento. Quer um exemplo?
Goethe (séculos 18 e 19), romântico alemão, em seu maravilhoso romance "Anos de Formação de Wilhelm Meister", nos conta o processo de formação do jovem Meister: de adolescente passará a homem.
Nosso jovem Meister é um artista que sofre pressões de seu pai burguês para se tornar o futuro administrador dos negócios da família. Nada mais chato para um jovem que, além de sonhar o tempo todo com sua amada Marianne, uma atriz (que na realidade é amante de um burguês), alimenta projetos teatrais e poéticos. O jovem Meister é um exemplo claro da personalidade artística romântica: tem náuseas diante das demandas banais de uma vida do dinheiro.
Ele tem um amigo que, esse sim, se vira bem no mundo onde os jovens devem se preparar para serem futuros homens de negócios.
Numa cena memorável, nossos dois jovens conversam sobre uma decisão tomada pelo jovem Meister. Depois de sofrer muito com um mundo onde não há confiança nem amor verdadeiro, nosso herói decide queimar todos os seus "poemas e projetos" e se tornar definitivamente um homem maduro e seguir os desejos de seu pai.
Mas o importante aqui não é propriamente a decisão, mas a explicação que nosso herói dá para o amigo (bem resolvido) como causa de sua mudança de vida.
O jovem Meister diz que "sentiu" que todo o universo lhe mostrou que era hora de mudar. Uma experiência de "parceira cósmica" lhe mostrara o caminho. Então, num "acesso de verdade", nosso romântico queimou tudo que significa "seu velho eu".
A resposta de seu amigo representará a voz da maturidade moderna humilhando a reação do ainda infantil Meister: "O universo nada tem a ver com nossas decisões". E mais: pensar que o universo seja "responsável" de algum modo pelo que nos acontece ou por nossas decisões, erra acerca da natureza do universo (mudo), mas fala muito acerca da nossa covardia e da incapacidade de assumir a "solidão desse silêncio", na qual apenas nós e outros homens e mulheres como nós mesmos são responsáveis pelo que acontece. A virtude burguesa por excelência é a capacidade de sermos agentes de nosso sucesso e de nosso fracasso sem responsabilizarmos ninguém nem nada por eles. Uma espécie de "virtú maquiaveliana" vista pelos olhos de um banqueiro e vivida pela alma de um caixa de banco.
Não se trata da morte de um "velho eu" e do nascimento de um "novo eu" pelas mãos de um universo "parteiro" que fala conosco de um modo misterioso, mas simplesmente da agonia infantil do jovem Meister que ainda não percebeu que a batalha contra o mundo das pedras, da inércia e do dinheiro é uma batalha perdida.
______________________________________
*Luiz Felipe Pondé é filósofo, doutor pela Universidade de São Paulo e Université de Paris VIII e professor do Programa de Estudos Pós-graduados em Ciências da Religião da PUC-SP. Colunita da Folha. Fonte: Folha online, 08/02/2010
Nenhum comentário:
Postar um comentário