domingo, 4 de julho de 2010

''Risco de um duplo mergulho nos países ricos é de mais de 50%''

Para o economista americano, considerado um dos 100 mais influentes mundo,
falta de confiança na economia nos países ricos
 pode levar a um novo período recessivo


Conhecido como um dos principais estudiosos da influência da psicologia humana nos mercados, o economista americano Robert Shiller (foto) teme que a confiança abalada de trabalhadores e empresas nos Estados Unidos leve o país a um "duplo mergulho recessivo" - isto é, a mais um período de crescimento negativo, depois de o país já ter saído do pior momento da crise global de 2008 e 2009. Para Shiller, as chances do duplo mergulho, nos Estados Unidos e na Europa, estão hoje acima de 50%. Considerado um dos 100 mais influentes economistas do mundo, Shiller é professor da Universidade Yale e autor de best-sellers econômicos como Exuberância Irracional e o mais recente Espírito Animal: Como a Psicologia Humana Impulsiona a Economia e a sua Importância para o Capitalismo Global, escrito com o prêmio Nobel de Economia George Akerlof.
Para Shiller, os pacotes iniciais de estímulo fiscal (aumentos dos gastos do governo) coordenados pelos principais países, em reação à crise global, deveriam ter sido mais potentes. Por não terem tido impacto suficiente, eles permitiram que a confiança no mundo rico ficasse abalada pelo alto desemprego e pelas más perspectivas econômicas. E o risco da falta de confiança é o de levar ao "duplo mergulho". Shiller junta-se a outro prêmio Nobel de Economia, Paul Krugman, na defesa de um novo pacote de estímulo fiscal nos Estados Unidos - a maior polêmica econômica da atualidade, que coloca no campo oposto, favorável ao ajuste fiscal e à contenção dos gastos nos países ricos, vários economistas também de primeira linha, além das equipes técnicas de instituições como o Banco Central Europeu (BCE) e o Banco de Compensações Internacionais (BIS).
Diferentemente de Krugman, porém, Shiller diz que a sua defesa de mais impulso fiscal não é sustentada pela teoria econômica, já que a principal razão seria a de recuperar a confiança dos agentes econômicos, o que está mais para o imponderável da psicologia. A seguir, a entrevista, feita por telefone:

Alguns dos maiores economistas do mundo estão radicalmente divididos entre propor mais impulso fiscal, ou, pelo contrário, ajuste fiscal. Qual a sua visão?
Esse é um problema que a Economia tem sofrido durante toda a sua história: os economistas não concordam. E isso se torna impactante em momentos de crises internacionais. Aconteceu exatamente o que você mencionou na Grande Depressão, com o mesmo tipo de debate. Passaram-se 80 anos para a gente pensar sobre o assunto, e voltamos de novo à mesma divisão.

Por que isso acontece?
Nos anos 30, já diziam que a Economia não é uma ciência. E eu acho que há de fato algo inerente ao nosso objeto de estudo que torna difícil reduzi-lo a uma ciência, mesmo que, em alguns aspectos, sejamos científicos. Para mim, todo o problema atual é o de restaurar a confiança. E este é um fenômeno psicológico. É difícil para alguém dedicado a estudar mercados e preços analisar essa coisa psicológica. Torna-se uma questão de opinião. Se você está deprimido, e você conversa com dois psicoterapeutas diferentes, eles podem chegar a conclusões muito diferentes também. Isso, como a Economia, não é inteiramente uma ciência.

De que confiança o sr. está falando?
É a que faz os consumidores quererem gastar e as empresas investirem e contratarem, mas é também a confiança nos outros e no ambiente geral, que faz as pessoas tomarem decisões e confiarem em que serão bem-sucedidas. A confiança pode ser excessiva, e levar a uma bolha como a que tivemos, ou deficiente, como agora. É uma questão de fazer com que as pessoas trabalhem de forma produtiva e entusiástica. O problema é que a situação dos negócios e do emprego nos EUA não está melhorando, e isso realmente tem um efeito negativo na confiança.

Mas qual a sua posição naquele debate - o sr. defende mais estímulos fiscais?
Eu escrevi o Animal Spirits com o Akerlof em 2009, e nesse livro éramos bastante favoráveis ao estímulo, porque achávamos que a queda na confiança em função da crise global poderia ser severa e devastadora. Então, tinha de se aplicar um estímulo poderoso exatamente naquela hora, antes que as pessoas fixassem a sua atenção nos problemas, o que mina a confiança.

Isso foi feito?
Acho que os governos dos principais países andaram metade do caminho que recomendamos. Não fizeram um estímulo tão forte quanto o que pedimos, mas houve um esforço admirável, coordenado entre vários países. Ele ajudou a restaurar a confiança, mas não a tempo de evitar que o estrago econômico acontecesse. E porque o estrago aconteceu, a confiança votou a ser abalada - que é o grande problema agora. Na verdade, acho que houve restrições políticas o tempo todo a que se fizesse um estímulo fiscal ainda mais forte. Talvez mesmo quando, no governo Bush, o secretário de Tesouro ainda era o Henry Paulson, ele e o Ben Bernanke (chairman do Federal Reserve, banco central americano)quiseram fazer um forte pacote de estímulo, mas não puderam.

Mas, hoje, o sr. ainda acha que mais estímulo fiscal vai resolver?
Mantenho uma posição parecida com a do Paul Krugman. Acho que seria um bom momento para um novo e grande pacote de estímulo fiscal, porque vejo a confiança vacilando exatamente agora. Se tivermos um duplo mergulho recessivo, isso pode provocar um estrago de longa duração. Agora, essa é uma opinião que vem do meu instinto. Não estou dizendo que a teoria econômica dê sustentação a ela.

E como o sr. vê a opinião da corrente contrária de economistas, que defende o ajuste fiscal nos países ricos?
Bem, talvez seja o caso para a Grécia. O dilema inicial que você descreveu parte do fato de que as pessoas estão perdendo os seus empregos e nós temos de parar com isso. Talvez o governo possa tomar dinheiro emprestado e contratá-las, ou gastar em atividades que farão com que sejam contratadas - talvez funcione. Mas, se perdurar por muito tempo, então o governo endivida-se demais.

Os temores sobre a situação fiscal, portanto, também têm fundamento?
A crise grega causou uma comoção. A Grécia se tornou um país de falsas promessas, onde o governo dizia que todo mundo poderia se aposentar com vencimentos integrais com pouco mais de cinquenta anos - não me lembro exatamente os detalhes. E as pessoas passaram a achar que aquilo era um direito, e a não votar em ninguém que não garantisse aquele tipo de direito. O problema é que as contas não fechavam. De qualquer forma, o caso grego aumentou os temores em relação às dívidas nacionais em geral.

O que se pode fazer, então?
Talvez não haja mesmo nenhuma solução fácil, que não levante preocupações. É um pouco como um médico que trata um paciente com doença de coração. Ele usa uma droga, o estímulo fiscal, que começa a ter feitos colaterais em outro órgão, a preocupação com as dívidas. Então, escolhas têm de ser feitas. Talvez seja melhor tratar o coração e aceitar as consequências. Porque não há nenhuma outra droga. É mais ou menos esse o ponto em que estamos hoje na política fiscal.

Há esse risco de efeito colateral nos Estados Unidos?
Nesse momento, não se nota que temores sobre a capacidade do governo americano de repagar sua dívida estejam empurrando para cima as taxas de juros dos títulos do Tesouro. Na verdade, as taxas de juros estão muito baixas. Então, não acho que seja hora de nós nos preocuparmos com isso.

Na Alemanha, onde também não se nota qualquer preocupação com a solvência pública, o governo está decidido a apertar o cinto. O que o sr. acha?
Os alemães, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, têm sido muito conservadores em termos fiscais. É uma boa coisa, por um lado, que eles não sejam como a Grécia. É isso que faz com que eles estejam numa posição que lhes permite salvar a Grécia. A Alemanha tem grande respeito pela ordem e uma burocracia eficiente, como em nenhum outro país no mundo. E, como resultado, tem sido um país de baixa inflação. Então, acho que é uma espécie de hábito mental que eles têm, e que serve muito bem em diversas ocasiões, mas não exatamente agora. Eles deveriam relaxar um pouco.

O sr. mencionou o risco de um duplo mergulho na economia americana. Qual a probabilidade de que aconteça?
Acho que há uma boa chance, mas é preciso saber o que entendemos por duplo mergulho. Minha definição do conceito são duas recessões que não têm, entre elas, um período de retorno à normalidade. E uma possível definição de normalidade é a taxa de desemprego de longo prazo, por mais de 27 semanas, não ultrapassar 1%. Nesse momento, ela está em 4,4%. É uma alta recorde e está aumentando. É isso que está pesando na confiança. Há pessoas de meia-idade, com família para sustentar, perdendo seus empregos. E elas não veem nenhum perspectiva de conseguir trabalho. Se conseguirem, é com salário muito mais baixo. A preocupação é que as pessoas parem de gastar, e isso nos colocará numa situação ainda pior.

Mas que probabilidade o sr. atribui precisamente ao cenário de duplo mergulho?
Há algum tempo, eu dizia que era 50% de chances, e hoje acho que é um pouco mais do que isso. Mas prefiro não dar um número.

Como o sr. analisa a boa reação dos países emergentes à crise global, e qual o risco para eles de um eventual duplo mergulho?
O efeito da crise atingiu todas as regiões do mundo. Tipicamente, perderam-se uns dois pontos porcentuais de crescimento anual. Assim, se havia emergentes crescendo a 5%, 7%, a situação não ficou tão ruim para eles. Acho que, se EUA e Europa caírem num segundo mergulho recessivo, a história se repetirá - os emergentes continuarão crescendo, mas num ritmo menor.

O sr. é, então, relativamente otimista em relação aos emergentes?
Vivemos um notável período da história humana, no qual o iluminismo econômico parece estar conquistando a maior parte do mundo. As pessoas, em diferentes lugares, como os emergentes, estão aprendendo a respeitar os mercados. Elas não estão necessariamente a favor de livre mercado em tudo, mas parecem respeitar o bom senso empresarial. Isso também é verdadeiro no Brasil, com o Lula. Quando ele foi eleito, as pessoas estavam preocupadas, achavam que ele era esquerdista demais e que isso não seria bom para economia. Mas ele foi pragmático e deixou os negócios funcionarem.

A crise econômica não colocou em xeque esse modelo pró-mercado?
Havia sim essa preocupação de que, por causa da crise, as pessoas fossem abandonar o capitalismo. Mas eu não acho que isso esteja acontecendo. As novas regulações financeiras que estão surgindo, em função da crise, parecem causar interferências no mercado que são pequenas. Voltando aos emergentes, acho que a trilha de crescimento na qual eles engrenaram é realmente um evento histórico. É um processo que não vai ser descarrilado por essa crise, e que deve prosseguir por décadas.

E como o sr. vê as perspectivas do Brasil?
Eu tenho sido muito otimista em relação ao Brasil desde que visitei o país alguns anos atrás. Minha impressão é a de que o Lula está tendo uma boa gestão e de que há muito potencial. O Brasil é uma grande força econômica, e vive um momento positivo muito forte. Aliás, eu já investi num fundo de ações brasileiras, com bom resultado.

QUEM É

ROBERT SHILLER
ECONOMISTA
Nascido em 1946, em Detroit, Shiller é graduado em Economia pela Universidade de Michigan, com mestrado e doutorado pelo MIT. É professor da Universidade Yale desde 1982, além de fundador e principal economista da empresa de investimentos MacroMarkets LLC.
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Reportagem: Fernando Dantas - O Estado de S.Paulo
Fonte: Estadão online, 04/07/2010

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