sábado, 13 de julho de 2013

O Diabo Irônico



O DIABO IRÔNICO DE FLUSSER 


- Gustavo Bernardo -
(Doutor em Letras e em Filosofia; Professor da UERJ) 


A torre de marfim, na qual o espectro da mente habita, 
consiste de degraus da lógica,
ricamente ornamentados e cobertos de sininhos de prata 
que badalam eticamente. 
O espectro sorridente sobe, 
serenamente indutivo, 
os degraus da lógica, 
para descê-los, 
serenamente dedutivo, 
quando o ritual o exige. 
Nessa passagem graciosa agita levemente os sinos 
do ensinamento ético, 
e a turba dos leigos ao pé da torre recebe, 
respeitosa, 
a mensagem. 
Cansado, as pálpebras semicerradas, 
espia o espectro filosófico essa turba informe, 
e eis que ela desaparece ante o seu olhar vago. 
E quando o filósofo dirige o seu olhar para a torre que habita, 
dissolve-se essa torre na névoa do nada. 
E o espectro paira por cima das nuvens 
como o sábio nas gravuras chinesas. 
Estende o braço cansado para dentro das nuvens, 
e estas se formam de acordo com o movimento do braço. 
E, quando olha para si, ele próprio se transforma em nuvem, 
e paira por entre as nuvens, 
e é por elas formado.
(Vilém Flusser)


"Desde minha primeira infância, uma flecha de dor plantou-se em meu coração. Enquanto nele permanecer, sou irônico – se a arrancarem, morro". 1 Essas palavras de Sören Kierkegaard são suficientes para dimensionarem a ironia

Vizinha da comédia, começa e termina na tragédia. Sabendo-se que por trás da realidade, como do espelho, não há nada, resta o exercício melancólico da ironia. 

Suspeitar, principalmente de si mesmo, é preciso – mas dói. A ironia se define pela formulação do dever ser como se já o fosse quando o interlocutor sabe que não o é. Ao se afirmar uma falsidade que o interlocutor sabe que é uma falsidade, o contexto e suas pressuposições desfazem a falsidade e a transformam em uma verdade – irônica. 

Como na melhor ficção, o interlocutor e o leitor sabem que se diz “metáfora” querendo dizer “coisa”, dentro de um jogo de faz-de-conta-que-eu-não-sei-o-que-eu-sei que por sua vez é não apenas intelectualmente estimulante como epistemicamente necessário. 

Merleau-Ponty enfatiza: “o sentido está para além da letra, o sentido é sempre irônico”. 2 

Levar esta formulação ao pé da letra supõe relações lúdicas com a filosofia – por isso Nietzsche terá sugerido com mordacidade que se tentassem classificar os filósofos de acordo com a qualidade do seu riso, o que aproxima a ironia do ceticismo: “o cético inquieto é um humorista em potencial; e o humorista em ato é um praticante lúdico do ceticismo”3 

O filósofo tcheco-brasileiro Vilém Flusser distingue a ironia barata, quando se disfarça sem necessidade, da ironia que deve “custar os olhos da cara”. 

A ironia exige ouvido atento porque é empregada numa batalha chamada “agonia”, como o prova a auto-ironia. O fraco para defender-se do forte corta-se ironicamente em pedaços, terminando por mostrar ao forte o quanto ele é fraco ao oprimir o fraco. Quando um judeu, à época do nazismo, brincava noticiando que um pastor alemão havia sido mordido por um agiota judeu, a ironia era a arma da sua agonia, atingindo a si mesmo como ao outro. A ironia quando sabe voltar-se sobre si mesma mostra não apenas o quanto é fraco o forte, mas também o quanto é forte o fraco. 4 

O Anjo Que Ri
Escultura medieval/Catedral de Reims 

A ironia é arma lingüística contra o nada: ficção contra ficção. A vida “é a ficção não há morte, e o pensamento é a ficção não há vida”. 5 

Vivemos negando a morte e construímos a civilização, a família, o futebol e a cerveja aos domingos. Pensamos negando a negação anterior, tentando frear o fluxo do sempre diferente num quadro de categorias compreensíveis. 

Quando nos definimos como os únicos seres vivos que se sabem mortais (os elefantes que caminham à beira da morte para o mesmo lugar obrigam a duvidar também disso) nos distinguimos como seres irônicos. 

Nessa perspectiva a vida não deixa de ser um teatro triste que todavia pode ser superado quando se assume a ironia como atitude existencial

Dentre os muitos livros de Flusser, aquele desde o título irônico é A história do diabo – para Mílton Vargas, trata-se da sua obra-prima. É o primeiro livro que escreveu, em alemão, traduzindo-o mais tarde para o português, mas o publicou depois de Língua e realidade (Herder, 1963; Annablume, 2004). 

A história do diabo foi publicada pela Martins Editora em 1965 e é finalmente reeditada agora, quarenta anos depois, pela Annablume. Tem tradução alemã (Die Geschichte des Teufels. Göttingen: European Photography, 1993) e tcheca (Pribek dabla. Praga: GemaArte-OSVU, 1997). 

Parodiando textos sagrados, Vilém faz um longo elogio do Diabo, “príncipe tão glorioso” que a tantos entusiasmou no decorrer da história humana, em louvor do qual tantos enfrentaram as chamas “com dedicação ardente”. 

Procura suspender os nossos preconceitos a respeito do Diabo para tentar conhecer esse personagem que identificará com a própria História: “é possível a afirmativa de que o tempo começou com o diabo, que o seu surgir ou a sua queda representam o início do drama do tempo, e que diabo e história sejam dois aspectos do mesmo processo”. 6 

Chama de “influência divina” tudo o que procure superar ou negar o tempo, e chama de “influência diabólica” tudo o que procure preservar o mundo no tempo. Concebe o Divino como aquilo que age dentro do mundo para dissolvê-lo e transformá-lo em puro Ser, logo, em intemporalidade. Por oposição, concebe o Diabólico como aquilo que age dentro do mundo para preservá-lo, evitando que seja dissolvido. Do ponto de vista de Deus, o Divino é o criador enquanto o Diabólico é o aniquilador – mas do ponto de vista do homem no mundo o Diabo é o princípio conservador e Deus é o princípio destruidor. Cabe ao Diabo manter o mundo no tempo, o que nos força a simpatizarmos com ele: reconhecemos no Diabo espírito semelhante ao nosso, e talvez tão infeliz quanto nós. 7 

Flusser estuda o Diabo seguindo a trilha da Igreja Católica, a partir dos sete pecados capitais – soberba, avareza, luxúria, inveja, gula, ira e preguiça – aos quais o Diabo recorreria para seduzir e aniquilar as nossas almas. Só que subverte a definição de cada um dos pecados, encarando a soberba como a consciência de si mesmo e campo das artes, a avareza como a própria economia, a luxúria como o instinto e a afirmação da vida, a gula como a luta pela melhoria da vida humana e campo da tecnologia, a inveja como a luta pela justiça social e pela liberdade política, a ira como a recusa às limitações impostas à vontade, portanto, como dignidade e campo das ciências, e a preguiça, ou tristeza, como o estágio superior alcançado pela meditação calma da filosofia. 8 

A Igreja evita uma hierarquização dos pecados: todo pecado inclui os demais, todos juntos formando uma torrente que conhecemos como civilização ocidental cristã. Mas o filósofo faz a sua hierarquização considerando a luxúria o primeiro pecado, por ter sido graças a ela que o Diabo se teria encarnado na matéria morta para negar a divindade

A preguiça, melhor dizendo, a tristeza, é considerada como o último e o maior dos pecados: nela, o homem se supera a si mesmo, fundindo-se com o Diabo graças à distância filosófica. 

A tristeza se sucederia à soberba, campo das artes, desenhando a quintessência do Diabo: a beleza. Então, qual seria a quintessência de Deus? Parece, pelo desdobrar do argumento, que se trata do próprio Diabo: “devemos levar resignada ou desesperadamente a nossa própria cruz, que no fim das contas é para todos a mesma: não podemos evitar que o onipotente seja sempre o Outro”. 9 

Quando Deus criou céus e terra, arrancou um pedaço do puro ser para mergulhá-lo na correnteza do tempo. Sim, porque o que Deus criou primeiro, no início, foi o início, isto é, o Tempo“o que não havia, acontecia”, como diz Guimarães Rosa na bíblica terceira margem do rio

A correnteza do tempo altera o ser tornando-o fenômeno. Ora, se o Tempo se apresenta como princípio da modificação, do progresso, da transformação de realidade em imaginação, então o Tempo é o próprio Diabo


Se o Senhor criou as formas de ver, terá criado junto o mundo fenomenal e o Diabo: deve-se “desconfiar de que o Diabo é mais que emanação de Deus, sendo instrumento d’Ele, uma de Suas táticas prediletas, uma convenção dramática Sua”. 10 

Não à toa Freud chamara a religião de inimiga: “dos três poderes [arte, filosofia e religião] que podem contestar o território da ciência, somente a religião representa um inimigo real”. 11 Não sendo marxista, concordava com o jovem Marx que a crítica da religião fosse a premissa de toda crítica. Para Peter Gay, a psicanálise não poderia ter sido fundada por um crente. Que Freud fosse judeu é menos relevante do que o fato de ser ateu. Ele não podia conceber um cientista crente, ou pior, reverente; enquanto as idéias científicas são por definição corrigíveis, as idéias religiosas, também por definição, seriam incorrigíveis. “Nem em minha vida privada nem em meus escritos”, disse Freud  um ano antes de morrer, “jamais fiz segredo de minha absoluta falta de fé”. Para fazer par com Flusser, observou: “a dúvida de fato é inseparável da pesquisa e, com certeza, ainda não nos foi dado conquistar mais que um pequeno fragmento da verdade”. 12 

Vilém, entretanto, não encetou combate tão frontal contra a religião. Seu recurso constante à ironia deixava-o no mesmo campo daqueles escritores criativos que tanta inveja provocavam em Freud, por atingirem com golpes de imaginação as verdades psicológicas que o psicanalista lograria alcançar apenas através de muitas horas de paciente escuta dos analisandos. Por isso mesmo o filósofo não escreve contra Deus mas sobre o Diabo: um Diabo perigoso que se faz criminoso para ser artista, torna-se artista para ser criminoso, cria leis para poder infringi-las e infringe leis para poder criar novas leis. 

O Diabo seria o responsável por tornar a vida líquida, não nos permitindo defini-la. Sua correnteza nos arrasta para longe da Divindade, liquidificando os conceitos e borrando os limites das definições. Forjou uma arena para procriar vida, colocando em um canto a luxúria e no outro a inibição. A sexualidade humana, porque é disso que se trata, não é luxúria livre – se fosse livre, não seria luxúria, mas apenas cio. A liberdade reside ela mesma no pecar e na possibilidade de pecar: a tensão entre a luxúria e a inibição é, stricto sensu, o amor. Por isso, a expressão “amor livre” contém uma contradição em termos: o amor nunca pode ser livre, como pontua o narrador do romance A doença da morte, de Marguerite Duras: “Você pergunta como o sentimento de amar poderia sobrevir. Ela lhe responde: talvez de uma falha súbita na lógica do universo. Ela diz: por exemplo de um erro. Ela diz: jamais de um querer”. 13 

A liberdade, como tudo o que o Diabo cria, é paradoxo: a liberdade realizada transtorna-se em escravidão porque elimina a margem de escolha e a possibilidade de pecar. 14 

A liberdade é o apanágio de seu avesso, isto é, do nacionalismo. O nacionalismo, ou o amor à nação, é um substitutivo ao amor à mulher – não à toa os nacionalismos forjam-se a partir do romantismo. Para o cristão medieval a mulher é o próprio pecado, metonímia da carne fraca. Para Flusser, entretanto, podemos reconhecer por detrás do rosto da mulher amada o fundamento intemporal: é como se as portas do céu se entreabrissem junto com os olhos dela. O instante em que isso acontece é fugaz mas precioso, ameaçando o próprio Diabo – e então Flusser começa a voltar a ironia contra o seu príncipe, puxando o tapete sob os seus cascos. 15 

O nacionalismo é a máscara romântica e diabólica da luxúria. A mente nacionalista comporta-se como se não fosse pecaminosa, enchendo o ar com exclamações altissonantes como se fosse a própria voz da consciência tranqüila. Cantam-se hinos militares a plenos e emocionados pulmões enquanto se mata quem nunca se tinha visto antes, ou enquanto se morre nas mãos de quem não nos conhece. Por isso, pode-se afirmar que “o nacionalismo é uma das vitórias mais impressionantes do diabo”: Comparemos o amor ao povo e à nação com o amor à mulher, para podermos admirar o progresso do diabo. Reencontramos intacta a languidez, o êxtase orgiástico, os gestos românticos, a conversa fiada, e o gosto do teatral e da inautenticidade. Mas faltam todos os traços que fazem periclitar a posição do diabo no campo do amor à mulher, por uma razão muito simples. O novo objeto do amor, o “povo”, ou a “nação”, é um objeto inteiramente fictício. O problema ontológico do amor à mulher é um problema de reconhecimento. Se não reconheço a mulher que amo ela é, para mim, uma ficção pecaminosa. Se a reconheço, torna-se caminho rumo ao transcendente. Mas o “povo” é um conceito sem fundamento (bodenlos), e nada posso reconhecer nessa ficção deliberada. Tentativas de fundamentar o “povo”, empreendidas por diversas ciências, e pela vivência romanticamente poética, são todas tentativas ad hoc construídas. O “povo” não passa de um chavão barato. Não é portanto possível uma autêntica dedicação e um autêntico sacrifício no amor a ele. O diabo não corre riscos no nacionalismo. Os gestos patrióticos que copiam dedicação e sacrifício são inócuos e não representam perigo. O nacionalismo é uma secreção sublimada de testículos estancados, e mesmo assim consegue, periodicamente, insuflar orgasmo extremo. 16 

O nacionalismo é fenômeno recente pelo qual Flusser responsabiliza, além do Diabo, os pensadores românticos alemães. Se até certo momento a divisão da humanidade em “povos” era fato aceito como castigo pela construção da Torre de Babel, a partir dos românticos alemães se teria operado o milagre às avessas de rechear de luxúria um conceito vazio. A praga transforma-se em motivo de orgulho. A ironia do filósofo contabiliza: “é enormemente fecunda essa inovação introduzida pelo idealismo: já produziu pelo menos quatro guerras, incontáveis fornos de incineração, e revoluções sangrentas”. Alerta: “como continuam acesas as chamas do amor patriótico em incontáveis corações, é impossível prever futuros resultados”. Prevê pela ironia os massacres hediondos que se dariam ao final do século, próximo à sua terra natal. 

Edgar Morin constata que, apesar de todos os grandes problemas atuais transcenderem a competência dos Estados-nações, multiplicam-se e miniaturizam-se os Estados-nações – por quê? Porque a idéia de nação carrega conteúdo ao mesmo tempo moderno e arcaico. A pátria tem substância materno-paternal: simboliza o envolver da mãe, ligado à terra e ao lar, e a autoridade protetora do pai, encarnada pelo Estado. Perante a decadência da tribo, a pátria ressuscita complexo mitológico familiar que une os filhos da pátria em torno das armas e contra o inimigo da fronteira. A decadência da tribo é o desmoronamento simultâneo das promessas, de um futuro radioso pelo lado comunista, de uma sociedade industrial democrática pelo lado capitalista: por todo o lado em que se desmorona esse futuro o presente torna-se angustiado e doentio, facilitando o regresso às raízes étnicas, religiosas e nacionais. 

Na histeria da guerra que começa e termina o século em Sarajevo, odeia-se um povo em vez de se combater um sistema ou um regime. A irrupção do etno-nacionalismo é demencial e deve ser combatida pela universidade, recuperando o valor da problematização renascentista, do diálogo entre os pares opostos, da racionalidade crítica e autocrítica, da resistência ao anátema, à intimidação e ao juízo de autoridade, da tolerância que concede o direito de expressão a idéias que julgamos erradas e encontra-se consciente de que o contrário de nossas verdades profundas são outras verdades profundas. 17 

O nacionalismo é a contraparte política da episteme moderna. O esforço analítico da ciência por dividir os objetos para melhor dominá-los encontra sua manifestação política no esforço dos aparelhos estatais por dividir os povos em nações. 

Seguindo a trilha aberta pela ironia diabólica, a ira é a contraparte da luxúria. A ira seria o primeiro estágio de uma espécie de esquizofrenia, a ciência a forma histórica dessa doença, Descartes seu primeiro formulador teórico, e a vacuidade da ciência atual manifestação clínica palpável. 

O projeto da ira realizado nos últimos 400 anos é o de tornar a natureza objeto da mente, obrigando esta natureza a se comportar como um conjunto ordenado de coisas, causas e efeitos. A escola ensina o mundo assim, professores pensamos acreditar que o mundo é assim, mas a vivência nos ensina que o mundo é diferente. A vivência “ensina o mundo como amontoado de acasos pelo qual se acotovelam as vontades dos seres vivos para penetrá-lo por seu esforço, e se tiverem sorte”. 

Esse é o nosso mundo duplicado: o mundo irado da escola, o mundo luxurioso da vida. 

Do lado irado, do lado do Doutor Jekill, estão as equações matemáticas e as relações necessárias; do lado luxurioso, do lado do Senhor Hyde, estão a sorte e o mérito, a vingança e o castigo, a luta e a vitória transitória, bem como a derrota definitiva na morte. É estranho, mas Hyde não é o irado; a ira é a prerrogativa do Doutor – que no limite revela a sua contraparte de acaso, instinto e fúria. A ira divide, cataloga, engaveta, entuba, arruma, analisa, separa e assim inventa o Eu. 18 

A ira precisa de leis que tomem conta dos fenômenos. As leis podem ser encaradas como pontes “construídas de símbolos e ancoradas no caos” visando a transportar os acontecimentos por sobre o caos líquido na direção do futuro. Algumas dessas pontes, como as da Física, pareciam muito sólidas, mas se descobriram fendas graves na infra-estrutura. Outras pontes, como as das ciências sociais, antes se assemelham àquelas de corda, dos índios peruanos: tremem entre estatísticas. “A única ponte ontologicamente válida”, para Flusser, “seria aquela que unisse fenômeno e símbolo, vivência e palavra” – mas essa ponte a ciência se confessa incompetente até de considerar, quanto mais de construir. 19 

Por essa ponte inexistente vem passando dragão bastante perigoso e tão inexistente quanto. Termos perturbadores, como indeterminação e indecidibilidade, começam a solapar a ciência por dentro. O matemático Kurt Gödel demonstrou que a verdade nem sempre é demonstrável. As leis que nos deveriam reger e à natureza ora parecem efeitos ocasionais e não fundamentos, ora se mostram como subjetividade in extremis – organizam a organização do mundo mas não o mundo. 

Nossa mente treinada nas aulas de biologia e ecologia admira a perfeição da tal da natureza, porque todo passarinho tem a sua minhoca e todo gatinho tem o seu ratinho. Chamamos a isso “providência divina” – mas desconsideramos o ponto de vista da minhoca e do ratinho. A tal da natureza é brutal: todos os seres cantam e chilram, rosnam e grunhem, zunem e grasnam, mas não em louvor do Senhor: fazem-no em louvor da fome. 

Comparando a ciência às artes plásticas, Flusser dirá que aos poucos e com dificuldade os cientistas vêm saindo do estágio da pintura ingênua para o estágio da pintura abstrata. Muito da obra do gravador holandês Mauritius Escher deriva das fórmulas de matemáticos como Roger Penrose. A declaração de outro matemático, Alan Turing, é emblemática: “se se espera que uma máquina seja infalível, ela não pode ser também inteligente”. 20 

As ciências começam a descrer da realidade e a acreditar mais um pouco na própria vontade criadora. As ciências naturais começam não a conhecer a natureza mas a se auto-reconhecerem na natureza. Nesse caminho, a Física toma a frente ao abdicar de se definir verdadeira ou falsa, antes, consistente; o critério de avaliação passa a ser estético. 21 

N’A história do diabo Flusser lembra a mesa dos físicos modernos, demonstrando a sua inexistência concreta: a ciência já prova que “a mesa não é preta, nem dura, nem qualquer coisa, porque ela não é coisa”. A mesa não é cópia de um original platônico nem manifestação de fenômeno mental, a mesa não existe – o que existem são campos, um eletromagnético e outro gravitacional, logo, apenas estruturas complexas de virtualidades, estas sim, simples. Campos são estruturas imaginárias nas quais algo pode dar-se; é portanto em termos de potencial e probabilidade que devemos falar do mundo das aparências. O mundo dos fenômenos, levado à última equação, não existe: existe tal ou qual conjunto de regras. 22 

O probabilismo é o eixo da teoria e da tecnologia quânticas de maneira mais radical do que supõem nossas idéias a respeito de como o mundo funciona. Postula-se um mundo “onde os computadores operam sem ser ligados e onde os objetos podem ser achados sem que se procure por eles. Onde um computador de potência inimaginável pode ser construído a partir de uma só molécula. Onde as informações se deslocam instantaneamente entre dois pontos, sem fios nem redes. Onde objetos distantes são examinados sem contato algum. Onde os computadores fazem seus cálculos em outros universos. E onde o teletransporte – me manda de volta Scotty – é algo prosaico, usado de várias formas diferentes”. 23 

Em 1995, em Los Alamos, os físicos mediram a espessura de um cabelo humano usando laser que nunca chegou a ser lançado de fato sobre o cabelo – que apenas poderia ter sido. Esse resultado é bizarro porque parece contrário aos fatos, mas abriu novo campo: o da detecção sem interferência, quando se encontra sem procurar. É como se aquela situação de jamais encontrar uma chave quando se procura, para descobri-la logo depois de se desistir, se tornasse não uma curiosidade mas método científico. 


A vontade criadora teria feito surgir a ilusão do Bem e do Mal, da Verdade e da Mentira, e portanto da Ilusão ela mesma, para tornar consistente o mundo ilusório. Para se permitir descansar no sétimo dia, a vontade criadora teria criado, na véspera, Deus e o Diabo. Deus e o Diabo são obras primas e complementares: emprestam a aparência de objetividade ao mundo. Sem eles, o mundo impõe-se obscuro, subjetivo e absurdo: “sem Deus e sem o Diabo seria o mundo uma representação tediosa. Seria obviamente um idem per idem”. 24 

Nietzsche pretendeu decretar a morte de Deus. Tudo seria permitido, porque o Diabo teria morrido ao mesmo tempo. Mas, em todos os instantes em que jogamos fora, com a água do banho, as duas ilusões soberanas, a vontade não encontra resistência e se precipita no abismo. O dilema se configura porque o pensamento se depara com duas alternativas, ambas desagradáveis: ou articula equívocos, quais sejam, estruturas gramaticais ambíguas, e então produz ruído e não comunicação nem obra, ou articula universos, quais sejam, estruturas gramaticais precisas, e então produz o nada – silêncio. 

Flusser relembra Wittgenstein: a língua é uma escada para alcançar a meta do silêncio, escada essa que precisa ser derrubada uma vez alcançada a meta. Se reconhecemos que, quanto mais falamos, menos dizemos, logo, mais diremos quanto menos falarmos – no limite, quando falarmos o nada. Quando tivermos aprendido o silêncio. Mas o silêncio, esse nirvana lingüístico, é perigosa soberba: aniquila o pensamento, ao desvelar a ilusão dos limites do mundo. 25 

Toda a filosofia deseja o silêncio, que coroa a dissolução do Eu. Ainda que se fale na primeira pessoa do singular, deseja-se a dissolução do Eu na verdade perseguida. 

Os gregos antigos comparavam música a matemática, com o que a nossa sensibilidade grosseira não concorda: um campo pouco teria a ver com o outro, se música implica sons enquanto matemática implica silêncio. Todavia, quando conseguimos solucionar problema matemático intrincado ou quando certa vivência musical nos arrebata, percebemos a força mística das duas disciplinas: são ambas métodos de dissolução do Eu no Logos, suspendendo-nos aonde nenhum Eu jamais esteve: Sabemos que somos um nó criado pelo espasmo da língua, um erro da gramática, um mero ruído que empana a harmonia da língua. Somos uma dissonância que surgiu porque os aspectos lógico e musical da palavra foram dissociados. Somos um Eu, porque somos o ponto no tecido da língua no qual o aspecto lógico e estético da língua se chocam. Somos um Eu, porque interrompemos o fluxo da língua em sua procura pelo zero. 

Somos um distúrbio na pura estrutura, e é por isso que somos um Eu. É por isso que pensamos e é por isso que vivemos. Pensar é sinal de um erro lógico no tecido da língua. Viver é sinal de um erro estético no tecido da língua. Pensar e viver é sofrimento. Sofremos, e é por isto que somos um Eu. No nosso Eu a língua é sedenta por paz e por calma. Em nós a língua procura restabelecer o equilíbrio entre matemática e música, entre pensamento e vida. Somos um Eu, porque em nós a sede da língua por paz e por calma se manifesta. O nosso Eu é manifestação de sede. 

Gustavo Bernardo,
nosso misterioso e fantástico professor na UERJ,
que sempre chora em suas palestras,
que faz de Deus o tema central de todas as suas palestras,
e que é ateu,
- um místico ateu

O nosso Eu é uma deficiência, o nosso Eu é doença. Pensar é doença e viver é doença. Aflitos por essa sede, por essa deficiência, por essa doença que é o Eu, sofremos. É devido a esse sofrimento que acreditamos poder pensar e poder viver, é por isso que queremos. Querer é sinônimo de sofrer, e vontade é sinônimo de Eu. Mas quando os dois aspectos da língua se reúnem, quando o logos se restabelece em sua plenitude, o sofrimento acaba. Somos salvos. O nosso Eu desaparece. 26 

Por isso a salvação é tão desejada quanto postergada. Por isso as representações vulgares do céu e do inferno são tão semelhantes e tão tristes. Não queremos sofrer, mas sem o sofrimento não se pode sequer querer. Uroboricamente, perseguimos pelo pensamento o fim do pensamento, pelo desejo o fim do desejo, pela escrita e pela ficção o fim da palavra. Talvez por isso Camus precise considerar Sísifo feliz: a cada vez deve deixar cair a pedra de volta ao vale, para descer e recomeçar sem que os deuses percebam que foram enganados

Para Flusser não devemos filosofar com sede de iluminação, conhecimento ou felicidade; devemos fazê-lo ironicamente resignados. Não interessa tanto o que filósofos dizem mas como o dizem; a essência da filosofia reside não nos enunciados mas no seu clima. Captar leve aroma desse clima é o que se precisa. 

“Se incomodamos a filosofia com perguntas impetuosas, como o faz a ira, ou se pedimos que ela nos liberte da ilusão, como o faz a soberba, seremos soterrados pela avalanche de respostas contraditórias, ou seremos congelados pelo hálito frio e cortante do seu silêncio desinteressado”. 27 

Não podemos considerar a filosofia como mestra, mãe ou provedora. A filosofia ou é amiga do de tudo diferente ou é nada. A filosofia é a ficção de si, expressa na alegoria flusseriana da torre de marfim: A torre de marfim, na qual o espectro da mente habita, consiste de degraus da lógica, ricamente ornamentados e cobertos de sininhos de prata que badalam eticamente. O espectro sorridente sobe, serenamente indutivo, os degraus da lógica, para descê-los, serenamente dedutivo, quando o ritual o exige. Nessa passagem graciosa agita levemente os sinos do ensinamento ético, e a turba dos leigos ao pé da torre recebe, respeitosa, a mensagem. Cansado, as pálpebras semicerradas, espia o espectro filosófico essa turba informe, e eis que ela desaparece ante o seu olhar vago. E quando o filósofo dirige o seu olhar para a torre que habita, dissolve-se essa torre na névoa do nada. E o espectro paira por cima das nuvens como o sábio nas gravuras chinesas. Estende o braço cansado para dentro das nuvens, e estas se formam de acordo com o movimento do braço. E, quando olha para si, ele próprio se transforma em nuvem, e paira por entre as nuvens, e é por elas formado. 28 

A beleza dessa descrição da torre filosófica persiste irônica. Ortega Y Gasset afirmava que todo conceito está montado em sua própria ironia. Dizemos seriamente que “esta coisa é A e esta outra é B”, mas a seriedade só se pode quedar instável. Nem esta coisa é A de maneira absoluta nem a outra pode ser B sem reservas: “o que o conceito pensa a rigor é sempre uma coisa um pouco diferente do que diz, e é nessa duplicidade que consiste a ironia”. Falando com rigor, esta coisa não é A nem aquela é B; só que, admitindo que são A e B, sabemos o que fazer. 29 

A forma primitiva do conceito seria o gesto que se executa com o dedo indicador. A criança começa por querer agarrar todas as coisas, supondo-as a seu lado. Depois de muitos fracassos renuncia a colher as coisas mesmas e se contenta com o mero gesto de estender a mão na direção do objeto. É nesse sentido que “conceito” seria não mais do que assinalar ou apontar, no desenvolvimento do substitutivo infantil que, mais tarde, se chamará “ciência”, para a qual não importam verdadeiramente as coisas, mas apenas o sistema de signos que pode substituí-las

A arte teria missão oposta, movendo-se do signo habitual para a coisa mesma de modo a emprestar-nos visão dos objetos que, no trato cotidiano, nos escapariam. 30 

No mundo se passa a todo instante uma infinidade de eventos. Logo, a pretensão de dizer o que se passa agora no mundo pode ser entendida apenas como ironia. A despeito, precisamos supor que as coisas são de uma certa maneira, o que nos proporciona pelo menos um mapa. Com o mapa, como através de um postigo, “olhamos” a realidade efetiva e só então formulamos uma visão aproximada. Nisso consiste o método científico: um exercício de ironia que às vezes não se reconhece

Flusser, porém, reconhece a ironia – através, por exemplo, dos unicórnios: Embora não sejam, a rigor, animais domésticos, são, no entanto, extremamente úteis ao homem. A sua utilidade varia com o tempo. Na antigüidade o seu chifre servia, apropriadamente moído, como remédio contra todos os venenos. Na Idade Média o unicórnio servia como atributo da virgindade, portanto tinha utilidade pública incontestável. No romantismo e pós-romantismo foi amplamente utilizado como tema de poesias, (embora a palavra “unicórnio” não tenha muitas rimas nas línguas latinas). E atualmente é indispensável para livros de lógica e teoria do conhecimento. Com efeito: tais livros não poderiam existir, se o unicórnio não existisse, e nem, se existisse

Para prová-lo, tomemos as seguintes sentenças: “A maçã é verde. O sangue é verde. Deus é verde. A liberdade é verde. O presente rei da França é verde. O unicórnio é verde.” A primeira sentença pode ou não ser verdadeira. A segunda é falsa. Ambas têm sentido. As demais sentenças não têm sentido. Pois isto é fácil dizer-se, e fácil verificar-se, já que, ao dizermos tais sentenças, estamos segurando a risada. Por não terem sentido tais sentenças, são ridículas e divertidas. Difícil é dizer por que tais sentenças não têm sentido. Seria fácil se pudéssemos dizer que tais sentenças não têm sentido, porque os seus sujeitos, a saber: Deus, a liberdade, o presente rei da França e o unicórnio, não existem. Mas não podemos dizê-lo. Não se pode dizer que Deus não existe, porque seria primeiro necessário definir o termo “Deus”. Coisa impossível. Não se pode dizer que a liberdade não existe, porque a sua presença ou ausência são nitidamente constatáveis. A sentença “a liberdade é verde” não tem sentido, embora a liberdade exista. Não se pode dizer que o presente rei da França não existe, sem dizer-se, também, quando se está falando. Por exemplo: no século xvii existia um rei da França que estava presente, e a sentença era então provavelmente falsa, e tinha portanto sentido. Mas, quanto ao unicórnio, todos estão de acordo que não existe. Portanto podemos dizer claramente porque a sentença “o unicórnio é verde” não tem sentido. O único caso nítido entre os exemplos fornecidos. 

Não fosse o unicórnio, e os livros de lógica e teoria de conhecimento não teriam sentido. Não teriam sentido, porque não poderiam exemplificar o que quer dizer: “não ter sentido”. Isto seria uma pena, especialmente para professores de lógica e teoria do conhecimento. Mas, felizmente, há unicórnio, e Sócrates é seu fiel companheiro. Assim: Sócrates é mortal, e o unicórnio é verde. Viva a cultura.

O artigo de Flusser sobre os unicórnios foi publicado pela Folha de São Paulo em 1972. Coerente com o seu projeto irônico de demolir as torres acadêmicas de marfim, o filósofo teve longa participação nos jornais de São Paulo, tanto na Folha quanto n'O Estadão. Sua ironia, nos artigos de jornal, voltava o rigor do método contra ele mesmo e, por extensão, contra a filosofia. Os unicórnios demonstravam a necessidade de demolir as premissas dos manuais de lógica, porque “a filosofia é constitutivamente um paradoxo”. 32 

Filosofar é suspender a crença para inventar a quimera. Durante milênios, o Universo não se compôs de gigantes e quimeras? O que nos garante que a mecânica quântica não seja gigante fingindo que é um moinho de vento? O que nos garante que a lingüística não seja uma quimera envelhecida? O fundamento da ironia de Flusser abeira-se perigosamente do niilismo: “A grande conversação da qual participamos e que é toda a realidade vem do nada e trata do nada”. 33 

O nada, sinônimo do indizível, nessa formulação é paradoxo e tautologia. Paradoxo, porque parece dizer que a conversação discute o indiscutível. Tautologia, porque parece dizer que a conversação significa algo além de si, a saber, o significado. Mas é desta maneira que a língua caminha, oscilando entre os dois pólos, vibrando entre os dois horizontes. No processo da oscilação, progride. O estilo errático – a oscilação forçada entre o paradoxo e a tautologia, que faz expandir o pensamento – contém a ironia: o movimento da escrita analisa-se ao mesmo tempo em que se desenvolve. Aceita-se o limite do círculo hermenêutico para torcê-lo em uma espiral que nos leva de volta ao campo da arte. 

No Ocidente, entretanto, a arte se converteu em trabalho que aponta para uma obra final. Esta conversão faz da arte o tipo supremo de trabalho, porque dele se espera que seja criativo e produza obras novas e originais. Estas funções, para o filósofo secundárias, dificultam perceber a essência do gesto artístico, qual seja, apurar a sensibilidade. O gesto de fumar cachimbo, por exemplo, revelaria melhor a condição artística, implicando possibilidade de ritual na medida da gratuidade que devolve a fumante, artista e sacerdote a vivência íntima de si mesmo. 

A arte se apresenta com finalidades nobres – “criar” e “comunicar” – que escondem sua essência gratuita e absurda. De modo equivalente, as diferentes ideologias religiosas explicam os seus ritos ocultando sua essência gratuita (e igualmente absurda). Apenas o gesto de fumar cachimbo pode mostrar às claras a absurdidade “precisamente porque segue sendo profano e permite por isso reconhecer o absurdo como a essência do sagrado”. 


É necessário ainda distinguir, por prosaico que pareça, fumar cachimbo de fumar cigarro. Fumar cachimbo implica preparação do fumo e do cachimbo da qual se segue limpeza do cachimbo da qual se segue nova preparação do cachimbo e do fumo. Fumar cigarro implica tirar um cigarro do maço, acendê-lo e fazer uma pose; não há rito, apenas compulsão.

O essencial da vida ritual, sagrada ou mágica é o abrir-se à vivência religiosa através de gestos estéticos e portanto absurdos. Entendendo esta dimensão através de ato tão vulgar e profano como o de fumar um cachimbo se percebe como cada um de nós é um artista, um monge e um profeta. Dizendo de outro modo, a entrega sem reservas, pelo gesto, ao gesto mesmo, constitui a essência do artista, do monge, do profeta e do filósofo. 34 

A ironia do conceito não é risonha: ela estabelece dialética perversa entre falta e excesso. O que marca a ironia e funda a pós-história, para Flusser como para muitos outros, é Auschwitz

Auschwitz terá realizado uma das virtualidades inerentes à cultura ocidental; por Auschwitz a humanidade se reconhece como capaz do pior (por Hiroshima, se reconhecerá como capaz do nada). O inaudito em Auschwitz “não é o assassinato em massa, não é o crime. É a reificação derradeira de pessoas em objetos informes, em cinza. A tendência ocidental rumo à objetivação foi finalmente realizada, e o foi em forma de aparelho”. 35 

Os SS eram funcionários de um aparelho de extermínio; as suas vítimas funcionavam em função do seu próprio aniquilamento. Os SS e os judeus funcionavam uns em função dos outros, em engrenagem impessoal que até contribuiu para a derrota do nazismo – não importa. Como lembra Anatol Rosenfeld, que como Flusser fugira da Guerra para o Brasil, “o nazismo é apenas a expressão política e militante de uma atitude espiritual que não se derrota nos campos de batalha”. 36 

O modelo, portanto, se realizou. O modelo, a partir daí, se reproduziu. Para Lyotard, Auschwitz configurou terremoto tão poderoso que foi capaz de destruir os instrumentos de medida. A Solução Final – Endlösung – representou o limite do evento. Extrapolando as expectativas da sociedade que se queria civilizada e longe da irracionalidade, gerou tal acontecimento excessivo precisamente pelo abuso da racionalidade ocidental. A razão técnica quis vencer a qualquer preço e de certa forma o conseguiu, pagando o preço do horror. Flusser diz: nos resta “analisarmos o evento Auschwitz em todos os detalhes para descobrirmos o projeto fundamental que lá se realizou pela primeira vez, para podermos nutrir a esperança de nos projetarmos fora do projeto. Fora da história do Ocidente. Tal o clima pós-histórico no qual somos condenados a viver doravante”. 37 

Auschwitz funda a pós-história porque “história”, para Flusser, é um conceito: ocidental. Implica as noções articuladas de linearidade e progresso. A escola e a academia ainda fingem que têm fé na história, isto é, no progresso linear. Mas os modelos que informam a sociedade não são mais lineares nem se apóiam em vetores de mão única. Se o século XVIII via o seu ambiente como contexto de mecanismos, se o século XIX percebia o seu ambiente como contexto de organismos, nós tendemos a enxergar o nosso ambiente como contexto de jogos

Semelhante tendência para a ludicidade não é necessariamente divertida, pois deriva da práxis simbólica que constitui o programa: vivemos programados, e programas são jogos. Nos jogos em que nos encontramos imersos captamos a nossa existência social não como se fôssemos rodas de uma engrenagem nem como se fôssemos órgãos, mas já como peças de um jogo. 

Não se pergunta mais: quais as forças que movem a sociedade? Não se pergunta mais: que propósitos motivam a sociedade? A pergunta passa a ser: quais as estratégias que estão em jogo? Embaralham-se as fronteiras entre ficção e realidade, se tudo faz parte de um jogo. Os jogos se tornam o nosso terreno ontológico; logo, a futura ontologia é necessariamente game theory

Os jogos se regulam e reproduzem a partir dos aparelhos, cumprindo função divergente que termina por despolitizar a sociedade. Despolitiza objetivamente, ao convencer a sociedade da futilidade de toda ação política; despolitiza subjetivamente, ao entorpecer a faculdade crítica da sociedade. 

O problema da droga, contraparte lógica e sintomática das funções do aparelho, se situa do lado subjetivo. Podem colocar o Exército na rua, podem lançar campanhas de esclarecimento dos malefícios da droga, que o “problema” apenas recrudesce – porque não é o problema, mas sim semblante da verdadeira questão

A pós-história está raiando, diz Flusser, e sob duas formas de estupidez: dos aparelhos programadores e dos bárbaros destruidores de aparelhos (que não percebem que os games têm por objetivo final serem “zerados”). 

Não se luta contra a estupidez do progresso chamando a si mesmo de “progressista”, como faz a esquerda. Luta-se contra a estupidez do progresso retardando-o ou trocando a solidão na massa pela solidão do guarda de um farol. Não se trata de apenas cultivar samambaias na varanda, mas sim daquela solidão privada em que Deus aparecia aos profetas. É apenas de dentro dessa solidão que se pode diagnosticar a loucura e a estupidez que assolam o nosso tempo: um tempo que combina maior democracia com muito mais ignorância: combinação explosiva. 

Tal diagnóstico “exige ironia crítica quanto a nós mesmos, distanciamento de si próprio que cada qual é obrigado a efetuar por si próprio, na solidão de um ensimesmamento que perfura o si-mesmo”. 38 

Ironia e auto-ironia crítica lembram o distanciamento brechtiano porque tomam a si mesmas pelo espetáculo e dependem da suspensão das crenças, o que equivale a não acreditar piamente nos conceitos. Por isso, “pós-história” é um conceito irônico, em contraposição à seriedade patética que cerca o chamado “pós-moderno”. A sua pós-história remete ao fim da história, que por sua vez remete a Hegel. Entretanto, quando Fukuyama, em 1992, recunha a expressão “fim da história” de forma neo-liberalista, prejudica toda a discussão. Depois de Fukuyama, parece não ficar pedra sobre pedra no terreno da história. 

A concepção de história, e em conseqüência de pós-história, para Flusser, é diferente. A história, para Flusser, é produto e ferramenta de e para uma explicação abstrata e uni-dimensional do mundo. Andreas Ströhl esclarece que o conceito flusseriano de pós-história parte de uma mudança básica de paradigmas nos códigos com os quais nos comunicamos: enquanto outros teóricos contemporâneos usam métodos indutivos, acumulando dados para explicar os fenômenos da cultura que entendem pós-moderna, Flusser argumenta por abstração dedutiva, assumindo o risco de formular hipóteses através das suas fabulações filosóficas

Enquanto para eles um dos efeitos da pós-modernidade seria também uma mudança nas formas de comunicação, para Flusser o surgimento da imagem técnica é a causa central de todos os efeitos descritos como pós-históricos por ele e como pós-modernos pelos outros. 39Esses outros perceberam mutações gigantescas na organização das sociedades ocidentais e anunciaram então o advento de uma nova formação social que batizaram de pós-moderna, na qual a comunicação eletrônica se tornaria a forma predominante de interação social. No lugar de explorar o potencial oferecido por este mundo governado pelos media, os teóricos da pós-modernidade dedicam-se a lamentar a decadência dos valores tradicionais ou, ao contrário, dedicam-se a lamentar o colapso da síntese modernista que tentava conter a decadência por meio de equilíbrio incerto ou através de estabilidade paradoxal. 

Se, como é menos típico, esses teóricos conseguem evitar a nostalgia, terminam por cair na tentação de fazer predições otimistas sobre a liberação do ser humano pela maravilha da tecnologia. Entretanto, essas predições logo se revelam pueris, em face da multiplicação das guerras e do espetáculo midiático das guerras “limpas” e on line. 

Flusser recusa tanto a nostalgia simples quanto o elogio oportunista, à la Bill Gates, da “estrada do futuro”. Esse caminho, nem lá nem cá, dificulta a sua recepção: os acadêmicos europeus, como já acontecera no Brasil, se irritaram com aquele estilo provocativo de filosofar

Andreas recorda a lei não escrita dos anos oitenta que obrigava os intelectuais a serem pessimistas, se possível apocalípticos. A geração sem futuro do fim dos anos 70 teria sido seguida pela geração Null Bock (sem vontade, sem tesão) na Alemanha dos anos 80. 40 Ambas se relacionavam de forma muito próxima com um Zeitgeist (espírito de época) intelectual que era já um Endzeitgeist (fim do espírito de época). À náusea da sociedade de consumo sucedia-se a convicção de que o fim estava próximo: aniquilação total por guerra nuclear ou catástrofe ecológica. 

Neste quadro, Flusser ficou conhecido na Alemanha. À frente do pano de fundo negro, sua figura e seu pensamento pareciam irradiar luz benevolente e radical ao mesmo tempo, fascinando e afastando: os otimistas achavam-no ou muito pessimista ou otimista demais, enquanto os pessimistas não o entendiam. Ele contradizia o humanismo tradicional. Definir os seres humanos como meras protuberâncias de um aparato para a criação de informação chocava-se não só com as noções usuais a respeito da natureza dos seres humanos como também com noções correntes acerca da natureza da informação. Sua análise sobre o processo da desmaterialização foi mal-entendida e criticada como cínica pelos próprios cínicos. Suas visões se baseavam na suposição de que o apocalipse, a grande catástrofe da história, já tinha acontecido. 

Como Jean Baudrillard e Paul Virilio, Flusser desprezava os limites estreitos das disciplinas tradicionais, supondo-as distinções artificiais criadas pelo pensamento linear. Tentou tanto quanto possível não registrar distinções sujeito-objeto em seu trabalho; argumentava que a realidade e a ficção só diferem no grau de probabilidade, não em essência, nesse ponto estabelecendo a sua diferença com Baudrillard. 

Enquanto o filósofo francês afirmava que a realidade propriamente dita está sendo confundida com sua própria imagem, corroborando a concepção da sociedade do espetáculo, de Guy Debord, Flusser não reconhecia diferença significativa entre imagem e realidade. Ele tinha aversão ao termo simulação, porque entendia implicar uma idéia do real teoricamente insustentável. Em toda a história o homem pôde supor o acesso ao real tão-somente através de simulações; o que chamamos de realidade é desde sempre um simulacro

Na sua concepção tanto da realidade quanto do imaginário, portanto, a ironia tinha de ser parte constitutiva. 

Entretanto, a ironia maior é a do destino. 

Na República Tcheca onde nascera, Vilém Flusser permanecia desconhecido antes de o Instituto Goethe de Praga, dirigido por Andreas Ströhl, o convidar em novembro de 1991. Desde 1939, quando fugira da barbárie, Flusser não voltava à sua cidade natal. 

Naquele ano, improvisou pequena palestra na Dum fotografie – Casa da Fotografia – e fez uma conferência sobre a mudança de paradigmas no Instituto Goethe para um auditório abarrotado, que logo questionava tudo aquilo em que a sociedade tcheca pós-totalitária acreditava. 

Flusser descortinou os fracassos intelectuais de cinqüenta anos, empolgando-se a tal ponto que de repente começou a falar português sem perceber. Quando discorreu sobre seu sonho de seres humanos como projetos de programação, como seres sem teto e errantes, que têm de aprender a conquistar as máquinas, entender e dominar seus novos códigos digitais, a audiência protestou, assustada: “mas só agora começamos a usar o telefone…”. 

Suas idéias pareciam absurdas e ininteligíveis àqueles acostumados a pensar com base em categorias políticas e morais. Ali estava algo novo, alguém que defendia que só o pensamento formal levaria a uma existência mais humana, enquanto que as revoluções seriam esforços tão inúteis quanto o próprio comunismo, porque presas em um paradigma linear e histórico. 

Depois da conferência e seu sucesso atordoante, Vilém e Edith, sua mulher, junto com Andreas Ströhl, Michael Bielicky e Petr Rezek, passaram longa e alegre noite no Café Slavia. 

Seria a última noite de Vilém Flusser. 

No dia seguinte, depois de fazer um piquenique com Edith nos arredores de Praga, pegaram o carro para retornar à França – quando um caminhão branco apareceu de repente de dentro da neblina. 

O filósofo, nascido tcheco, naturalizado brasileiro, que escreveu vários livros em quatro línguas (alemão, português, inglês e francês), morreu na mesma cidade em que nasceu, no dia 21 de novembro de 1991. 


............................................................................................................

Publicado na Revista Trópico em 21/04/2005. 
http://www.dubitoergosum.xpg.com.br/flusser65.htm [Acesso: 17/02/2010)
* O site Dubito Ergo Sum foi retirado do ar depois de o prof. Gustavo Bernardo ter a passado a receber sérias ameaças por causa do mesmo... 

NOTAS

1 Em LAMBOTTE, Marie-Claude. Estética da melancolia. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2000: 51.  

2 Em NUNES, Benedito. No tempo do niilismo. São Paulo: Ática, 1993: 65. 

3 NUNES, Benedito. No tempo do niilismo: 138. 

4 FLUSSER, Vilém. “Ironia”. Folha de São Paulo, 26/02/1972. 

5 FLUSSER, Vilém. Da religiosidade. São Paulo: Comissão Estadual de Cultura, 1967: 88. 

6 FLUSSER, Vilém. A história do Diabo. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1965: 15. 

7 FLUSSER, Vilém. A história do Diabo: 17. 

8 FLUSSER, Vilém. A história do Diabo: 19. 

9 SAVATER, Fernando. Criaturas del aire. Barcelona: Ediciones Destino, 1989: 61. 

10 HANSEN, João Adolfo. A ficção da literatura em Grande sertão: veredas. São Paulo: Hedra, 2000: 93. 

11 Em GAY, Peter. Um judeu sem Deus. Rio de Janeiro: Imago, 1992: 60. 

12 Em GAY, Peter. Um judeu sem Deus: 52, 71. 

13 DURAS, Marguerite. A doença da morte. Rio de Janeiro: Taurus, 1984: 52. 

14 FLUSSER, Vilém. A história do Diabo: 75. 

15 FLUSSER, Vilém. A história do Diabo: 79. 

16 FLUSSER, Vilém. A história do Diabo: 81. 

17 Discurso pronunciado na Universidade de Sarajevo, a 11/09/1993. 

18 FLUSSER, Vilém. A história do Diabo: 105. 

19 FLUSSER, Vilém. A história do Diabo: 110. 

20 Em PENROSE, Roger. O grande, o pequeno e a mente humana. São Paulo: Editora da UNESP, 1998: 123. 

21 FLUSSER, Vilém. A história do Diabo: 169. 

22 FLUSSER, Vilém. A história do Diabo: 175. 

23 CRICHTON, Michael. Linha do tempo. Rio de Janeiro: Rocco, 2000: 11. 

24 FLUSSER, Vilém. A história do Diabo: 181. 

25 FLUSSER, Vilém. A história do Diabo: 196. 

26 FLUSSER, Vilém. A história do Diabo: 199. 

27 FLUSSER, Vilém. A história do Diabo: 202. 

28 FLUSSER, Vilém. A história do Diabo: 205. 

29 ORTEGA Y GASSET, José. A rebelião das massas. São Paulo: Martins Fontes, 1987: 144. 

30 ORTEGA Y GASSET, José. Ideas sobre el teatro y la novela. Madrid: Alianza Editorial, 1999: 21.

31 FLUSSER, Vilém. “Unicórnios”. Folha de São Paulo, 24/03/1972. 

32 ORTEGA Y GASSET, José. O que é a filosofia? Lisboa: Edições Cotovia, 1994: 109. 

33 FLUSSER, Vilém. Língua e realidade. São Paulo: Herder, 1963: 142. 

34 FLUSSER, Vilém. Os gestos. Manuscrito inédito – versão em português de: Gesten. Düsseldorf: Bollmann, 1991: 177. 

35 FLUSSER, Vilém. Pós-história. São Paulo: Duas Cidades, 1983: 11. 

36 ROSENFELD, Anatol. Texto/contexto II. São Paulo: Perspectiva; EdUSP; EdUNICAMP, 1993: 165. 

37 FLUSSER, Vilém. Pós-história: 15. 

38 FLUSSER, Vilém. Pós-história: 167. 

39 Em KRAUSE, Gustavo Bernardo & MENDES, Ricardo (orgs). Vilém Flusser no Brasil: 49. 

40 Em KRAUSE, Gustavo Bernardo & MENDES, Ricardo (orgs). Vilém Flusser no Brasil: 52.
-------------
Fonte:  http://luzecalor.blogspot.fr/12/07/2013

Nenhum comentário:

Postar um comentário