O DIABO IRÔNICO DE FLUSSER
- Gustavo Bernardo -
(Doutor em Letras e em Filosofia; Professor da UERJ)
A torre de marfim, na qual o espectro da mente habita,
consiste de degraus da lógica,
ricamente ornamentados e cobertos de sininhos de prata
que badalam eticamente.
O espectro sorridente sobe,
serenamente indutivo,
os degraus da lógica,
para descê-los,
serenamente dedutivo,
quando o ritual o exige.
Nessa passagem graciosa agita levemente os sinos
do ensinamento ético,
e a turba dos leigos ao pé da torre recebe,
respeitosa,
a mensagem.
Cansado, as pálpebras semicerradas,
espia o espectro filosófico essa turba informe,
e eis que ela desaparece ante o seu olhar vago.
E quando o filósofo dirige o seu olhar para a torre que habita,
dissolve-se essa torre na névoa do nada.
E o espectro paira por cima das nuvens
como o sábio nas gravuras chinesas.
Estende o braço cansado para dentro das nuvens,
e estas se formam de acordo com o movimento do braço.
E, quando olha para si, ele próprio se transforma em nuvem,
e paira por entre as nuvens,
e é por elas formado.
(Vilém Flusser)
"Desde
minha primeira infância, uma flecha de dor plantou-se em meu coração.
Enquanto nele permanecer, sou irônico – se a arrancarem, morro". 1 Essas palavras de Sören Kierkegaard são suficientes para dimensionarem a ironia.
Vizinha da comédia, começa e termina na tragédia. Sabendo-se que por trás da realidade, como do espelho, não há nada, resta o exercício melancólico da ironia.
Suspeitar,
principalmente de si mesmo, é preciso – mas dói. A ironia se define
pela formulação do dever ser como se já o fosse quando o interlocutor
sabe que não o é. Ao se afirmar uma falsidade que o interlocutor sabe
que é uma falsidade, o contexto e suas pressuposições desfazem a
falsidade e a transformam em uma verdade – irônica.
Como
na melhor ficção, o interlocutor e o leitor sabem que se diz
“metáfora” querendo dizer “coisa”, dentro de um jogo de
faz-de-conta-que-eu-não-sei-o-que-eu-sei que por sua vez é não apenas
intelectualmente estimulante como epistemicamente necessário.
Merleau-Ponty enfatiza: “o sentido está para além da letra, o sentido é sempre irônico”. 2
Levar esta formulação ao pé da letra supõe relações lúdicas com a filosofia – por isso Nietzsche terá sugerido com mordacidade que se tentassem classificar os filósofos de acordo com a qualidade do seu riso, o que aproxima a ironia do ceticismo: “o cético inquieto é um humorista em potencial; e o humorista em ato é um praticante lúdico do ceticismo”. 3
O filósofo tcheco-brasileiro Vilém Flusser distingue a ironia barata, quando se disfarça sem necessidade, da ironia que deve “custar os olhos da cara”.
A
ironia exige ouvido atento porque é empregada numa batalha chamada
“agonia”, como o prova a auto-ironia. O fraco para defender-se do forte
corta-se ironicamente em pedaços, terminando por mostrar ao forte o
quanto ele é fraco ao oprimir o fraco. Quando um judeu, à época do
nazismo, brincava noticiando que um pastor alemão havia sido mordido por
um agiota judeu, a ironia era a arma da sua agonia, atingindo a si
mesmo como ao outro. A ironia quando sabe voltar-se sobre si mesma
mostra não apenas o quanto é fraco o forte, mas também o quanto é forte
o fraco. 4
O Anjo Que Ri Escultura medieval/Catedral de Reims |
A ironia é arma lingüística contra o nada: ficção contra ficção. A vida “é a ficção não há morte, e o pensamento é a ficção não há vida”. 5
Vivemos
negando a morte e construímos a civilização, a família, o futebol e a
cerveja aos domingos. Pensamos negando a negação anterior, tentando
frear o fluxo do sempre diferente num quadro de categorias
compreensíveis.
Quando
nos definimos como os únicos seres vivos que se sabem mortais (os
elefantes que caminham à beira da morte para o mesmo lugar obrigam a
duvidar também disso) nos distinguimos como seres irônicos.
Nessa perspectiva a vida não deixa de ser um teatro triste que todavia pode ser superado quando se assume a ironia como atitude existencial.
Dentre os muitos livros de Flusser, aquele desde o título irônico é A história do diabo
– para Mílton Vargas, trata-se da sua obra-prima. É o primeiro livro
que escreveu, em alemão, traduzindo-o mais tarde para o português, mas o
publicou depois de Língua e realidade (Herder, 1963; Annablume, 2004).
A história do diabo
foi publicada pela Martins Editora em 1965 e é finalmente reeditada
agora, quarenta anos depois, pela Annablume. Tem tradução alemã (Die Geschichte des Teufels. Göttingen: European Photography, 1993) e tcheca (Pribek dabla. Praga: GemaArte-OSVU, 1997).
Parodiando textos sagrados, Vilém faz um longo elogio do Diabo,
“príncipe tão glorioso” que a tantos entusiasmou no decorrer da
história humana, em louvor do qual tantos enfrentaram as chamas “com
dedicação ardente”.
Procura suspender os nossos preconceitos a respeito do Diabo para tentar conhecer esse personagem que identificará com a própria História: “é
possível a afirmativa de que o tempo começou com o diabo, que o seu
surgir ou a sua queda representam o início do drama do tempo, e que
diabo e história sejam dois aspectos do mesmo processo”. 6
Chama
de “influência divina” tudo o que procure superar ou negar o tempo, e
chama de “influência diabólica” tudo o que procure preservar o mundo no
tempo. Concebe o Divino como aquilo que age dentro do mundo para
dissolvê-lo e transformá-lo em puro Ser, logo, em intemporalidade. Por
oposição, concebe o Diabólico como aquilo que age dentro do mundo para
preservá-lo, evitando que seja dissolvido. Do ponto de vista de Deus, o
Divino é o criador enquanto o Diabólico é o aniquilador – mas do ponto de vista do homem no mundo o Diabo é o princípio conservador e Deus é o princípio destruidor. Cabe ao Diabo manter o mundo no tempo, o que nos força a simpatizarmos com ele: reconhecemos no Diabo espírito semelhante ao nosso, e talvez tão infeliz quanto nós. 7
Flusser estuda o Diabo seguindo a trilha da Igreja Católica, a partir dos sete pecados capitais
– soberba, avareza, luxúria, inveja, gula, ira e preguiça – aos quais o
Diabo recorreria para seduzir e aniquilar as nossas almas. Só que subverte a definição de cada um dos pecados,
encarando a soberba como a consciência de si mesmo e campo das artes, a
avareza como a própria economia, a luxúria como o instinto e a
afirmação da vida, a gula como a luta pela melhoria da vida humana e
campo da tecnologia, a inveja como a luta pela justiça social e pela
liberdade política, a ira como a recusa às limitações impostas à
vontade, portanto, como dignidade e campo das ciências, e a preguiça,
ou tristeza, como o estágio superior alcançado pela meditação calma da
filosofia. 8
A
Igreja evita uma hierarquização dos pecados: todo pecado inclui os
demais, todos juntos formando uma torrente que conhecemos como
civilização ocidental cristã. Mas o filósofo faz a sua hierarquização considerando
a luxúria o primeiro pecado, por ter sido graças a ela que o Diabo se
teria encarnado na matéria morta para negar a divindade.
A
preguiça, melhor dizendo, a tristeza, é considerada como o último e o
maior dos pecados: nela, o homem se supera a si mesmo, fundindo-se com o
Diabo graças à distância filosófica.
A tristeza se sucederia à soberba, campo das artes, desenhando a quintessência do Diabo: a beleza.
Então, qual seria a quintessência de Deus? Parece, pelo desdobrar do
argumento, que se trata do próprio Diabo: “devemos levar resignada ou
desesperadamente a nossa própria cruz, que no fim das contas é para
todos a mesma: não podemos evitar que o onipotente seja sempre o Outro”.
9
Quando Deus criou céus e terra, arrancou um pedaço do puro ser para mergulhá-lo na correnteza do tempo. Sim, porque o que Deus criou primeiro, no início, foi o início, isto é, o Tempo – “o que não havia, acontecia”, como diz Guimarães Rosa na bíblica terceira margem do rio.
A correnteza do tempo altera o ser tornando-o fenômeno. Ora, se o Tempo se apresenta como princípio da modificação, do progresso, da transformação de realidade em imaginação, então o Tempo é o próprio Diabo.
Se o Senhor criou as formas de ver, terá criado junto o mundo fenomenal e o Diabo: deve-se “desconfiar de que o Diabo é mais que emanação de Deus, sendo instrumento d’Ele, uma de Suas táticas prediletas, uma convenção dramática Sua”. 10
Não à toa Freud chamara a religião de inimiga: “dos
três poderes [arte, filosofia e religião] que podem contestar o
território da ciência, somente a religião representa um inimigo real”. 11 Não sendo marxista, concordava com o jovem Marx que a crítica da religião fosse a premissa de toda crítica. Para Peter Gay,
a psicanálise não poderia ter sido fundada por um crente. Que Freud
fosse judeu é menos relevante do que o fato de ser ateu. Ele não podia
conceber um cientista crente, ou pior, reverente; enquanto as idéias
científicas são por definição corrigíveis, as idéias religiosas, também
por definição, seriam incorrigíveis. “Nem em minha vida privada nem em
meus escritos”, disse Freud um ano antes de morrer, “jamais fiz segredo
de minha absoluta falta de fé”. Para fazer par com Flusser, observou:
“a dúvida de fato é inseparável da pesquisa e, com certeza, ainda não
nos foi dado conquistar mais que um pequeno fragmento da verdade”. 12
Vilém,
entretanto, não encetou combate tão frontal contra a religião. Seu
recurso constante à ironia deixava-o no mesmo campo daqueles escritores
criativos que tanta inveja provocavam em Freud, por atingirem com
golpes de imaginação as verdades psicológicas que o psicanalista
lograria alcançar apenas através de muitas horas de paciente escuta dos
analisandos. Por isso mesmo o filósofo não escreve contra Deus mas sobre o Diabo:
um Diabo perigoso que se faz criminoso para ser artista, torna-se
artista para ser criminoso, cria leis para poder infringi-las e infringe
leis para poder criar novas leis.
O
Diabo seria o responsável por tornar a vida líquida, não nos permitindo
defini-la. Sua correnteza nos arrasta para longe da Divindade,
liquidificando os conceitos e borrando os limites das definições. Forjou
uma arena para procriar vida, colocando em um canto a luxúria e no
outro a inibição. A sexualidade humana, porque é disso que se trata,
não é luxúria livre – se fosse livre, não seria luxúria, mas apenas
cio. A liberdade reside ela mesma no pecar e na possibilidade de pecar: a tensão entre a luxúria e a inibição é, stricto sensu,
o amor. Por isso, a expressão “amor livre” contém uma contradição em
termos: o amor nunca pode ser livre, como pontua o narrador do romance A doença da morte, de Marguerite Duras:
“Você pergunta como o sentimento de amar poderia sobrevir. Ela lhe
responde: talvez de uma falha súbita na lógica do universo. Ela diz: por
exemplo de um erro. Ela diz: jamais de um querer”. 13
A liberdade, como tudo o que o Diabo cria, é paradoxo: a liberdade realizada transtorna-se em escravidão porque elimina a margem de escolha e a possibilidade de pecar. 14
A liberdade é o apanágio de seu avesso, isto é, do nacionalismo. O nacionalismo, ou o amor à nação, é um substitutivo ao amor à mulher – não à toa os nacionalismos forjam-se a partir do romantismo.
Para o cristão medieval a mulher é o próprio pecado, metonímia da
carne fraca. Para Flusser, entretanto, podemos reconhecer por detrás do
rosto da mulher amada o fundamento intemporal: é como se as portas do
céu se entreabrissem junto com os olhos dela. O instante em que isso
acontece é fugaz mas precioso, ameaçando o próprio Diabo – e então
Flusser começa a voltar a ironia contra o seu príncipe, puxando o
tapete sob os seus cascos. 15
O nacionalismo é a máscara romântica e diabólica da luxúria. A
mente nacionalista comporta-se como se não fosse pecaminosa, enchendo o
ar com exclamações altissonantes como se fosse a própria voz da
consciência tranqüila. Cantam-se hinos militares a plenos e emocionados
pulmões enquanto se mata quem nunca se tinha visto antes, ou enquanto
se morre nas mãos de quem não nos conhece. Por isso, pode-se afirmar
que “o nacionalismo é uma das vitórias mais impressionantes do diabo”:
Comparemos o amor ao povo e à nação com o amor à mulher, para podermos
admirar o progresso do diabo. Reencontramos intacta a languidez, o
êxtase orgiástico, os gestos românticos, a conversa fiada, e o gosto do
teatral e da inautenticidade. Mas faltam todos os traços que fazem
periclitar a posição do diabo no campo do amor à mulher, por uma razão
muito simples. O novo objeto do amor, o “povo”, ou a “nação”, é um
objeto inteiramente fictício. O problema ontológico do amor à mulher
é um problema de reconhecimento. Se não reconheço a mulher que amo ela
é, para mim, uma ficção pecaminosa. Se a reconheço, torna-se caminho
rumo ao transcendente. Mas o “povo” é um conceito sem fundamento
(bodenlos), e nada posso reconhecer nessa ficção deliberada. Tentativas
de fundamentar o “povo”, empreendidas por diversas ciências, e pela
vivência romanticamente poética, são todas tentativas ad hoc
construídas. O “povo” não passa de um chavão barato. Não é portanto
possível uma autêntica dedicação e um autêntico sacrifício no amor a
ele. O diabo não corre riscos no nacionalismo. Os gestos patrióticos
que copiam dedicação e sacrifício são inócuos e não representam perigo.
O nacionalismo é uma secreção sublimada
de testículos estancados, e mesmo assim consegue, periodicamente,
insuflar orgasmo extremo. 16
O
nacionalismo é fenômeno recente pelo qual Flusser responsabiliza, além
do Diabo, os pensadores românticos alemães. Se até certo momento a
divisão da humanidade em “povos” era fato aceito como castigo pela
construção da Torre de Babel, a partir dos românticos alemães se teria
operado o milagre às avessas de rechear de luxúria um conceito vazio. A
praga transforma-se em motivo de orgulho. A ironia do filósofo
contabiliza: “é enormemente fecunda essa inovação introduzida pelo
idealismo: já produziu pelo menos quatro guerras, incontáveis fornos de
incineração, e revoluções sangrentas”. Alerta: “como continuam acesas
as chamas do amor patriótico em incontáveis corações, é impossível
prever futuros resultados”. Prevê pela ironia os massacres hediondos
que se dariam ao final do século, próximo à sua terra natal.
Edgar
Morin constata que, apesar de todos os grandes problemas atuais
transcenderem a competência dos Estados-nações, multiplicam-se e
miniaturizam-se os Estados-nações – por quê? Porque a idéia de nação
carrega conteúdo ao mesmo tempo moderno e arcaico. A pátria tem
substância materno-paternal: simboliza o envolver da mãe, ligado à terra
e ao lar, e a autoridade protetora do pai, encarnada pelo Estado.
Perante a decadência da tribo, a pátria ressuscita complexo mitológico
familiar que une os filhos da pátria em torno das armas e contra o
inimigo da fronteira. A decadência da tribo é o desmoronamento
simultâneo das promessas, de um futuro radioso pelo lado comunista, de
uma sociedade industrial democrática pelo lado capitalista: por todo o
lado em que se desmorona esse futuro o presente torna-se angustiado e
doentio, facilitando o regresso às raízes étnicas, religiosas e
nacionais.
Na
histeria da guerra que começa e termina o século em Sarajevo, odeia-se
um povo em vez de se combater um sistema ou um regime. A irrupção do
etno-nacionalismo é demencial e deve ser combatida pela universidade,
recuperando o valor da problematização renascentista, do diálogo entre
os pares opostos, da racionalidade crítica e autocrítica, da resistência ao anátema, à intimidação e ao juízo de autoridade, da tolerância que concede o direito de expressão a idéias que julgamos erradas e encontra-se consciente de que o contrário de nossas verdades profundas são outras verdades profundas. 17
O
nacionalismo é a contraparte política da episteme moderna. O esforço
analítico da ciência por dividir os objetos para melhor dominá-los
encontra sua manifestação política no esforço dos aparelhos estatais
por dividir os povos em nações.
Seguindo
a trilha aberta pela ironia diabólica, a ira é a contraparte da
luxúria. A ira seria o primeiro estágio de uma espécie de esquizofrenia,
a ciência a forma histórica dessa doença, Descartes seu primeiro formulador teórico, e a vacuidade da ciência atual manifestação clínica palpável.
O
projeto da ira realizado nos últimos 400 anos é o de tornar a natureza
objeto da mente, obrigando esta natureza a se comportar como um
conjunto ordenado de coisas, causas e efeitos. A escola ensina o mundo
assim, professores pensamos acreditar que o mundo é assim, mas a
vivência nos ensina que o mundo é diferente. A vivência “ensina o mundo como amontoado de acasos pelo qual se acotovelam as vontades dos seres vivos para penetrá-lo por seu esforço, e se tiverem sorte”.
Esse é o nosso mundo duplicado: o mundo irado da escola, o mundo luxurioso da vida.
Do
lado irado, do lado do Doutor Jekill, estão as equações matemáticas e
as relações necessárias; do lado luxurioso, do lado do Senhor Hyde,
estão a sorte e o mérito, a vingança e o castigo, a luta e a vitória
transitória, bem como a derrota definitiva na morte. É estranho, mas
Hyde não é o irado; a ira é a prerrogativa do Doutor – que no limite
revela a sua contraparte de acaso, instinto e fúria. A ira divide,
cataloga, engaveta, entuba, arruma, analisa, separa e assim inventa o
Eu. 18
A
ira precisa de leis que tomem conta dos fenômenos. As leis podem ser
encaradas como pontes “construídas de símbolos e ancoradas no caos”
visando a transportar os acontecimentos por sobre o caos líquido na
direção do futuro. Algumas dessas pontes, como as da Física, pareciam
muito sólidas, mas se descobriram fendas graves na infra-estrutura.
Outras pontes, como as das ciências sociais, antes se assemelham
àquelas de corda, dos índios peruanos: tremem entre estatísticas. “A
única ponte ontologicamente válida”, para Flusser, “seria aquela que
unisse fenômeno e símbolo, vivência e palavra” – mas essa ponte a
ciência se confessa incompetente até de considerar, quanto mais de
construir. 19
Por
essa ponte inexistente vem passando dragão bastante perigoso e tão
inexistente quanto. Termos perturbadores, como indeterminação e
indecidibilidade, começam a solapar a ciência por dentro. O matemático Kurt Gödel demonstrou que a verdade nem sempre é demonstrável.
As leis que nos deveriam reger e à natureza ora parecem efeitos
ocasionais e não fundamentos, ora se mostram como subjetividade in extremis – organizam a organização do mundo mas não o mundo.
Nossa
mente treinada nas aulas de biologia e ecologia admira a perfeição da
tal da natureza, porque todo passarinho tem a sua minhoca e todo
gatinho tem o seu ratinho. Chamamos a isso “providência divina” – mas desconsideramos o ponto de vista da minhoca e do ratinho. A
tal da natureza é brutal: todos os seres cantam e chilram, rosnam e
grunhem, zunem e grasnam, mas não em louvor do Senhor: fazem-no em
louvor da fome.
Comparando
a ciência às artes plásticas, Flusser dirá que aos poucos e com
dificuldade os cientistas vêm saindo do estágio da pintura ingênua para
o estágio da pintura abstrata. Muito da obra do gravador holandês Mauritius Escher deriva das fórmulas de matemáticos como Roger Penrose. A declaração de outro matemático, Alan Turing, é emblemática: “se se espera que uma máquina seja infalível, ela não pode ser também inteligente”. 20
As
ciências começam a descrer da realidade e a acreditar mais um pouco na
própria vontade criadora. As ciências naturais começam não a conhecer a
natureza mas a se auto-reconhecerem na natureza. Nesse caminho, a
Física toma a frente ao abdicar de se definir verdadeira ou falsa,
antes, consistente; o critério de avaliação passa a ser estético. 21
N’A história do diabo
Flusser lembra a mesa dos físicos modernos, demonstrando a sua
inexistência concreta: a ciência já prova que “a mesa não é preta, nem
dura, nem qualquer coisa, porque ela não é coisa”. A mesa não é cópia
de um original platônico nem manifestação de fenômeno mental, a mesa
não existe – o que existem são campos, um eletromagnético e outro
gravitacional, logo, apenas estruturas complexas de virtualidades,
estas sim, simples. Campos são estruturas imaginárias nas quais algo
pode dar-se; é portanto em termos de potencial e probabilidade que
devemos falar do mundo das aparências. O mundo dos fenômenos, levado à última equação, não existe: existe tal ou qual conjunto de regras. 22
O probabilismo é
o eixo da teoria e da tecnologia quânticas de maneira mais radical do
que supõem nossas idéias a respeito de como o mundo funciona.
Postula-se um mundo “onde os computadores operam sem ser ligados e onde
os objetos podem ser achados sem que se procure por eles. Onde um
computador de potência inimaginável pode ser construído a partir de uma
só molécula. Onde as informações se deslocam instantaneamente entre
dois pontos, sem fios nem redes. Onde objetos distantes são examinados
sem contato algum. Onde os computadores fazem seus cálculos em outros
universos. E onde o teletransporte – me manda de volta Scotty – é algo
prosaico, usado de várias formas diferentes”. 23
Em
1995, em Los Alamos, os físicos mediram a espessura de um cabelo humano
usando laser que nunca chegou a ser lançado de fato sobre o cabelo –
que apenas poderia ter sido. Esse resultado é bizarro porque parece
contrário aos fatos, mas abriu novo campo: o da detecção sem
interferência, quando se encontra sem procurar. É como se aquela
situação de jamais encontrar uma chave quando se procura, para
descobri-la logo depois de se desistir, se tornasse não uma curiosidade
mas método científico.
A vontade criadora
teria feito surgir a ilusão do Bem e do Mal, da Verdade e da Mentira, e
portanto da Ilusão ela mesma, para tornar consistente o mundo
ilusório. Para se permitir descansar no sétimo dia, a vontade criadora
teria criado, na véspera, Deus e o Diabo. Deus e o Diabo são obras primas e complementares: emprestam a aparência de objetividade ao mundo.
Sem eles, o mundo impõe-se obscuro, subjetivo e absurdo: “sem Deus e
sem o Diabo seria o mundo uma representação tediosa. Seria obviamente
um idem per idem”. 24
Nietzsche
pretendeu decretar a morte de Deus. Tudo seria permitido, porque o
Diabo teria morrido ao mesmo tempo. Mas, em todos os instantes em que
jogamos fora, com a água do banho, as duas ilusões soberanas, a vontade
não encontra resistência e se precipita no abismo. O dilema se
configura porque o pensamento se depara com duas alternativas, ambas
desagradáveis: ou articula equívocos, quais sejam, estruturas
gramaticais ambíguas, e então produz ruído e não comunicação nem obra,
ou articula universos, quais sejam, estruturas gramaticais precisas, e
então produz o nada – silêncio.
Flusser relembra Wittgenstein: a língua é uma escada para alcançar a meta do silêncio,
escada essa que precisa ser derrubada uma vez alcançada a meta. Se
reconhecemos que, quanto mais falamos, menos dizemos, logo, mais
diremos quanto menos falarmos – no limite, quando falarmos o nada.
Quando tivermos aprendido o silêncio. Mas o silêncio, esse nirvana lingüístico, é perigosa soberba: aniquila o pensamento, ao desvelar a ilusão dos limites do mundo. 25
Toda a filosofia deseja o silêncio, que coroa a dissolução do Eu. Ainda que se fale na primeira pessoa do singular, deseja-se a dissolução do Eu na verdade perseguida.
Os gregos antigos comparavam música a matemática,
com o que a nossa sensibilidade grosseira não concorda: um campo pouco
teria a ver com o outro, se música implica sons enquanto matemática
implica silêncio. Todavia, quando conseguimos solucionar problema
matemático intrincado ou quando certa vivência musical nos arrebata,
percebemos a força mística das duas
disciplinas: são ambas métodos de dissolução do Eu no Logos,
suspendendo-nos aonde nenhum Eu jamais esteve: Sabemos que
somos um nó criado pelo espasmo da língua, um erro da gramática, um
mero ruído que empana a harmonia da língua. Somos uma dissonância que
surgiu porque os aspectos lógico e musical da palavra foram dissociados.
Somos um Eu, porque somos o ponto no tecido da língua no qual o
aspecto lógico e estético da língua se chocam. Somos um Eu, porque
interrompemos o fluxo da língua em sua procura pelo zero.
Somos um distúrbio na pura estrutura, e é por isso que somos um Eu.
É por isso que pensamos e é por isso que vivemos. Pensar é sinal de um
erro lógico no tecido da língua. Viver é sinal de um erro estético no
tecido da língua. Pensar e viver é sofrimento. Sofremos, e é por isto
que somos um Eu. No nosso Eu a língua é sedenta por paz e por calma. Em
nós a língua procura restabelecer o equilíbrio entre matemática e
música, entre pensamento e vida. Somos um Eu, porque em nós a sede da
língua por paz e por calma se manifesta. O nosso Eu é manifestação de
sede.
Gustavo Bernardo, nosso misterioso e fantástico professor na UERJ, que sempre chora em suas palestras, que faz de Deus o tema central de todas as suas palestras, e que é ateu, - um místico ateu |
O nosso Eu é uma deficiência, o nosso Eu é doença.
Pensar é doença e viver é doença. Aflitos por essa sede, por essa
deficiência, por essa doença que é o Eu, sofremos. É devido a esse
sofrimento que acreditamos poder pensar e poder viver, é por isso que
queremos. Querer é sinônimo de sofrer, e vontade é sinônimo de Eu. Mas
quando os dois aspectos da língua se reúnem, quando o logos se
restabelece em sua plenitude, o sofrimento acaba. Somos salvos. O nosso
Eu desaparece. 26
Por isso a salvação é tão desejada quanto postergada. Por isso as representações vulgares do céu e do inferno são tão semelhantes e tão tristes.
Não queremos sofrer, mas sem o sofrimento não se pode sequer querer.
Uroboricamente, perseguimos pelo pensamento o fim do pensamento, pelo
desejo o fim do desejo, pela escrita e pela ficção o fim da palavra.
Talvez por isso Camus precise considerar
Sísifo feliz: a cada vez deve deixar cair a pedra de volta ao vale,
para descer e recomeçar sem que os deuses percebam que foram enganados.
Para Flusser não devemos filosofar com sede de iluminação, conhecimento ou felicidade; devemos fazê-lo ironicamente resignados.
Não interessa tanto o que filósofos dizem mas como o dizem; a essência
da filosofia reside não nos enunciados mas no seu clima. Captar leve
aroma desse clima é o que se precisa.
“Se
incomodamos a filosofia com perguntas impetuosas, como o faz a ira, ou
se pedimos que ela nos liberte da ilusão, como o faz a soberba, seremos
soterrados pela avalanche de respostas contraditórias, ou seremos
congelados pelo hálito frio e cortante do seu silêncio desinteressado”. 27
Não podemos considerar a filosofia como mestra, mãe ou provedora. A
filosofia ou é amiga do de tudo diferente ou é nada. A filosofia é a
ficção de si, expressa na alegoria flusseriana da torre de marfim: A
torre de marfim, na qual o espectro da mente habita, consiste de
degraus da lógica, ricamente ornamentados e cobertos de sininhos de
prata que badalam eticamente. O espectro sorridente sobe, serenamente
indutivo, os degraus da lógica, para descê-los, serenamente dedutivo,
quando o ritual o exige. Nessa passagem graciosa agita levemente os
sinos do ensinamento ético, e a turba dos leigos ao pé da torre recebe,
respeitosa, a mensagem. Cansado, as pálpebras semicerradas, espia o
espectro filosófico essa turba informe, e eis que ela desaparece ante o
seu olhar vago. E quando o filósofo dirige o seu olhar para a torre
que habita, dissolve-se essa torre na névoa do nada. E o espectro paira
por cima das nuvens como o sábio nas gravuras chinesas. Estende o braço
cansado para dentro das nuvens, e estas se formam de acordo com o
movimento do braço. E, quando olha para si, ele próprio se transforma
em nuvem, e paira por entre as nuvens, e é por elas formado. 28
A beleza dessa descrição da torre filosófica persiste irônica. Ortega Y Gasset afirmava que todo conceito está montado em sua própria ironia.
Dizemos seriamente que “esta coisa é A e esta outra é B”, mas a
seriedade só se pode quedar instável. Nem esta coisa é A de maneira
absoluta nem a outra pode ser B sem reservas: “o que o conceito pensa a
rigor é sempre uma coisa um pouco diferente do que diz, e é nessa
duplicidade que consiste a ironia”. Falando com rigor, esta coisa não é
A nem aquela é B; só que, admitindo que são A e B, sabemos o que fazer.
29
A
forma primitiva do conceito seria o gesto que se executa com o dedo
indicador. A criança começa por querer agarrar todas as coisas,
supondo-as a seu lado. Depois de muitos fracassos renuncia a colher as
coisas mesmas e se contenta com o mero gesto de estender a mão na
direção do objeto. É nesse sentido que “conceito” seria não mais do que
assinalar ou apontar, no desenvolvimento do substitutivo infantil que,
mais tarde, se chamará “ciência”, para a qual não importam verdadeiramente as coisas, mas apenas o sistema de signos que pode substituí-las.
A arte teria
missão oposta, movendo-se do signo habitual para a coisa mesma de modo a
emprestar-nos visão dos objetos que, no trato cotidiano, nos
escapariam. 30
No
mundo se passa a todo instante uma infinidade de eventos. Logo, a
pretensão de dizer o que se passa agora no mundo pode ser entendida
apenas como ironia. A despeito, precisamos supor que as coisas são de
uma certa maneira, o que nos proporciona pelo menos um mapa. Com o mapa,
como através de um postigo, “olhamos” a realidade efetiva e só então
formulamos uma visão aproximada. Nisso consiste o método científico: um exercício de ironia que às vezes não se reconhece.
Flusser, porém, reconhece a ironia – através, por exemplo, dos unicórnios:
Embora não sejam, a rigor, animais domésticos, são, no entanto,
extremamente úteis ao homem. A sua utilidade varia com o tempo. Na
antigüidade o seu chifre servia, apropriadamente moído, como remédio
contra todos os venenos. Na Idade Média o unicórnio servia como atributo
da virgindade, portanto tinha utilidade pública incontestável. No
romantismo e pós-romantismo foi amplamente utilizado como tema de
poesias, (embora a palavra “unicórnio” não tenha muitas rimas nas
línguas latinas). E atualmente é indispensável para livros de lógica e
teoria do conhecimento. Com efeito: tais livros não poderiam existir, se o unicórnio não existisse, e nem, se existisse.
Para
prová-lo, tomemos as seguintes sentenças: “A maçã é verde. O sangue é
verde. Deus é verde. A liberdade é verde. O presente rei da França é
verde. O unicórnio é verde.” A primeira sentença pode ou não ser
verdadeira. A segunda é falsa. Ambas têm sentido. As demais sentenças
não têm sentido. Pois isto é fácil dizer-se, e fácil verificar-se, já
que, ao dizermos tais sentenças, estamos segurando a risada. Por não
terem sentido tais sentenças, são ridículas e divertidas. Difícil é
dizer por que tais sentenças não têm sentido. Seria fácil se
pudéssemos dizer que tais sentenças não têm sentido, porque os seus
sujeitos, a saber: Deus, a liberdade, o presente rei da França e o
unicórnio, não existem. Mas não podemos dizê-lo. Não se pode dizer que
Deus não existe, porque seria primeiro necessário definir o termo
“Deus”. Coisa impossível. Não se pode dizer que a liberdade não existe,
porque a sua presença ou ausência são nitidamente constatáveis. A
sentença “a liberdade é verde” não tem sentido, embora a liberdade
exista. Não se pode dizer que o presente rei da França não existe, sem
dizer-se, também, quando se está falando. Por exemplo: no século xvii
existia um rei da França que estava presente, e a sentença era então
provavelmente falsa, e tinha portanto sentido. Mas, quanto ao
unicórnio, todos estão de acordo que não existe. Portanto podemos dizer
claramente porque a sentença “o unicórnio é verde” não tem sentido. O
único caso nítido entre os exemplos fornecidos.
Não
fosse o unicórnio, e os livros de lógica e teoria de conhecimento não
teriam sentido. Não teriam sentido, porque não poderiam exemplificar o
que quer dizer: “não ter sentido”. Isto seria uma pena, especialmente para professores de lógica e teoria do conhecimento. Mas, felizmente, há unicórnio, e Sócrates é seu fiel companheiro. Assim: Sócrates é mortal, e o unicórnio é verde. Viva a cultura.
O
artigo de Flusser sobre os unicórnios foi publicado pela Folha de São
Paulo em 1972. Coerente com o seu projeto irônico de demolir as torres acadêmicas de marfim,
o filósofo teve longa participação nos jornais de São Paulo, tanto na
Folha quanto n'O Estadão. Sua ironia, nos artigos de jornal, voltava o
rigor do método contra ele mesmo e, por extensão, contra a filosofia. Os
unicórnios demonstravam a necessidade de demolir as premissas dos
manuais de lógica, porque “a filosofia é constitutivamente um
paradoxo”. 32
Filosofar é suspender a crença para inventar a quimera.
Durante milênios, o Universo não se compôs de gigantes e quimeras? O
que nos garante que a mecânica quântica não seja gigante fingindo que é
um moinho de vento? O que nos garante que a lingüística não seja uma
quimera envelhecida? O fundamento da ironia de Flusser abeira-se
perigosamente do niilismo: “A grande conversação da qual participamos e que é toda a realidade vem do nada e trata do nada”. 33
O nada,
sinônimo do indizível, nessa formulação é paradoxo e tautologia.
Paradoxo, porque parece dizer que a conversação discute o indiscutível.
Tautologia, porque parece dizer que a conversação significa algo além
de si, a saber, o significado. Mas é desta maneira que a língua caminha,
oscilando entre os dois pólos, vibrando entre os dois horizontes. No
processo da oscilação, progride. O estilo errático – a oscilação
forçada entre o paradoxo e a tautologia, que faz expandir o pensamento –
contém a ironia: o movimento da escrita analisa-se ao mesmo tempo em
que se desenvolve. Aceita-se o limite do círculo hermenêutico para
torcê-lo em uma espiral que nos leva de volta ao campo da arte.
No
Ocidente, entretanto, a arte se converteu em trabalho que aponta para
uma obra final. Esta conversão faz da arte o tipo supremo de trabalho,
porque dele se espera que seja criativo e produza obras novas e
originais. Estas funções, para o filósofo secundárias, dificultam
perceber a essência do gesto artístico, qual seja, apurar a sensibilidade.
O gesto de fumar cachimbo, por exemplo, revelaria melhor a condição
artística, implicando possibilidade de ritual na medida da gratuidade
que devolve a fumante, artista e sacerdote a vivência íntima de si
mesmo.
A arte se apresenta com finalidades nobres – “criar” e “comunicar” – que escondem sua essência gratuita e absurda.
De modo equivalente, as diferentes ideologias religiosas explicam os
seus ritos ocultando sua essência gratuita (e igualmente absurda).
Apenas o gesto de fumar cachimbo pode mostrar às claras a absurdidade
“precisamente porque segue sendo profano e permite por isso reconhecer o
absurdo como a essência do sagrado”.
É
necessário ainda distinguir, por prosaico que pareça, fumar cachimbo
de fumar cigarro. Fumar cachimbo implica preparação do fumo e do
cachimbo da qual se segue limpeza do cachimbo da qual se segue nova
preparação do cachimbo e do fumo. Fumar cigarro implica tirar um cigarro
do maço, acendê-lo e fazer uma pose; não há rito, apenas compulsão.
O
essencial da vida ritual, sagrada ou mágica é o abrir-se à vivência
religiosa através de gestos estéticos e portanto absurdos. Entendendo
esta dimensão através de ato tão vulgar e profano como o de fumar um
cachimbo se percebe como cada um de nós é um artista, um monge e um profeta.
Dizendo de outro modo, a entrega sem reservas, pelo gesto, ao gesto
mesmo, constitui a essência do artista, do monge, do profeta e do
filósofo. 34
A ironia do conceito não é risonha: ela estabelece dialética perversa entre falta e excesso. O que marca a ironia e funda a pós-história, para Flusser como para muitos outros, é Auschwitz.
Auschwitz
terá realizado uma das virtualidades inerentes à cultura ocidental; por
Auschwitz a humanidade se reconhece como capaz do pior (por Hiroshima,
se reconhecerá como capaz do nada). O inaudito em Auschwitz “não é o
assassinato em massa, não é o crime. É a reificação derradeira de
pessoas em objetos informes, em cinza. A tendência ocidental rumo à
objetivação foi finalmente realizada, e o foi em forma de aparelho”. 35
Os SS
eram funcionários de um aparelho de extermínio; as suas vítimas
funcionavam em função do seu próprio aniquilamento. Os SS e os judeus
funcionavam uns em função dos outros, em engrenagem impessoal que até
contribuiu para a derrota do nazismo – não importa. Como lembra Anatol Rosenfeld, que como Flusser fugira da Guerra para o Brasil, “o nazismo é apenas a expressão política e militante de uma atitude espiritual que não se derrota nos campos de batalha”. 36
O modelo, portanto, se realizou. O modelo, a partir daí, se reproduziu. Para Lyotard, Auschwitz configurou terremoto tão poderoso que foi capaz de destruir os instrumentos de medida. A Solução Final – Endlösung –
representou o limite do evento. Extrapolando as expectativas da
sociedade que se queria civilizada e longe da irracionalidade, gerou tal
acontecimento excessivo precisamente pelo abuso da racionalidade
ocidental. A razão técnica quis vencer a qualquer preço e de certa
forma o conseguiu, pagando o preço do horror. Flusser diz: nos resta
“analisarmos o evento Auschwitz em todos os detalhes para descobrirmos o
projeto fundamental que lá se realizou pela primeira vez, para
podermos nutrir a esperança de nos projetarmos fora do projeto. Fora da
história do Ocidente. Tal o clima pós-histórico no qual somos
condenados a viver doravante”. 37
Auschwitz funda a pós-história
porque “história”, para Flusser, é um conceito: ocidental. Implica as
noções articuladas de linearidade e progresso. A escola e a academia
ainda fingem que têm fé na história, isto é, no progresso linear. Mas os
modelos que informam a sociedade não são mais lineares nem se apóiam
em vetores de mão única. Se o século XVIII via o seu ambiente como
contexto de mecanismos, se o século XIX percebia o seu ambiente como
contexto de organismos, nós tendemos a enxergar o nosso ambiente como
contexto de jogos.
Semelhante tendência para a ludicidade não é necessariamente divertida, pois deriva da práxis simbólica que constitui o programa:
vivemos programados, e programas são jogos. Nos jogos em que nos
encontramos imersos captamos a nossa existência social não como se
fôssemos rodas de uma engrenagem nem como se fôssemos órgãos, mas já
como peças de um jogo.
Não
se pergunta mais: quais as forças que movem a sociedade? Não se
pergunta mais: que propósitos motivam a sociedade? A pergunta passa a
ser: quais as estratégias que estão em jogo? Embaralham-se as fronteiras entre ficção e realidade, se tudo faz parte de um jogo. Os jogos se tornam o nosso terreno ontológico; logo, a futura ontologia é necessariamente game theory.
Os
jogos se regulam e reproduzem a partir dos aparelhos, cumprindo função
divergente que termina por despolitizar a sociedade. Despolitiza
objetivamente, ao convencer a sociedade da futilidade de toda ação
política; despolitiza subjetivamente, ao entorpecer a faculdade crítica
da sociedade.
O
problema da droga, contraparte lógica e sintomática das funções do
aparelho, se situa do lado subjetivo. Podem colocar o Exército na rua,
podem lançar campanhas de esclarecimento dos malefícios da droga, que o “problema” apenas recrudesce – porque não é o problema, mas sim semblante da verdadeira questão.
A pós-história está raiando,
diz Flusser, e sob duas formas de estupidez: dos aparelhos
programadores e dos bárbaros destruidores de aparelhos (que não percebem
que os games têm por objetivo final serem “zerados”).
Não
se luta contra a estupidez do progresso chamando a si mesmo de
“progressista”, como faz a esquerda. Luta-se contra a estupidez do
progresso retardando-o ou trocando a solidão na massa pela solidão do guarda de um farol. Não se trata de apenas cultivar samambaias na varanda, mas sim daquela solidão privada em que Deus aparecia aos profetas. É
apenas de dentro dessa solidão que se pode diagnosticar a loucura e a
estupidez que assolam o nosso tempo: um tempo que combina maior
democracia com muito mais ignorância: combinação explosiva.
Tal
diagnóstico “exige ironia crítica quanto a nós mesmos, distanciamento
de si próprio que cada qual é obrigado a efetuar por si próprio, na solidão de um ensimesmamento que perfura o si-mesmo”. 38
Ironia
e auto-ironia crítica lembram o distanciamento brechtiano porque tomam a
si mesmas pelo espetáculo e dependem da suspensão das crenças, o que
equivale a não acreditar piamente nos conceitos. Por isso,
“pós-história” é um conceito irônico, em contraposição à seriedade
patética que cerca o chamado “pós-moderno”. A sua pós-história remete
ao fim da história, que por sua vez remete a Hegel. Entretanto, quando Fukuyama,
em 1992, recunha a expressão “fim da história” de forma
neo-liberalista, prejudica toda a discussão. Depois de Fukuyama, parece
não ficar pedra sobre pedra no terreno da história.
A
concepção de história, e em conseqüência de pós-história, para
Flusser, é diferente. A história, para Flusser, é produto e ferramenta
de e para uma explicação abstrata e uni-dimensional do mundo. Andreas Ströhl
esclarece que o conceito flusseriano de pós-história parte de uma
mudança básica de paradigmas nos códigos com os quais nos comunicamos:
enquanto outros teóricos contemporâneos usam métodos indutivos,
acumulando dados para explicar os fenômenos da cultura que entendem
pós-moderna, Flusser argumenta por abstração dedutiva, assumindo o risco
de formular hipóteses através das suas fabulações filosóficas.
Enquanto
para eles um dos efeitos da pós-modernidade seria também uma mudança
nas formas de comunicação, para Flusser o surgimento da imagem técnica é
a causa central de todos os efeitos descritos como pós-históricos por
ele e como pós-modernos pelos outros. 39Esses outros perceberam
mutações gigantescas na organização das sociedades ocidentais e
anunciaram então o advento de uma nova formação social que batizaram de
pós-moderna, na qual a comunicação eletrônica se tornaria a forma
predominante de interação social. No lugar de explorar o potencial
oferecido por este mundo governado pelos media, os teóricos da
pós-modernidade dedicam-se a lamentar a decadência dos valores
tradicionais ou, ao contrário, dedicam-se a lamentar o colapso da
síntese modernista que tentava conter a decadência por meio de
equilíbrio incerto ou através de estabilidade paradoxal.
Se,
como é menos típico, esses teóricos conseguem evitar a nostalgia,
terminam por cair na tentação de fazer predições otimistas sobre a
liberação do ser humano pela maravilha da tecnologia. Entretanto, essas
predições logo se revelam pueris, em face da multiplicação das guerras e
do espetáculo midiático das guerras “limpas” e on line.
Flusser recusa tanto a nostalgia simples quanto o elogio oportunista, à la Bill Gates,
da “estrada do futuro”. Esse caminho, nem lá nem cá, dificulta a sua
recepção: os acadêmicos europeus, como já acontecera no Brasil, se
irritaram com aquele estilo provocativo de filosofar.
Andreas
recorda a lei não escrita dos anos oitenta que obrigava os
intelectuais a serem pessimistas, se possível apocalípticos. A geração
sem futuro do fim dos anos 70 teria sido seguida pela geração Null Bock
(sem vontade, sem tesão) na Alemanha dos anos 80. 40 Ambas se relacionavam de forma muito próxima com um Zeitgeist (espírito de época) intelectual que era já um Endzeitgeist (fim
do espírito de época). À náusea da sociedade de consumo sucedia-se a
convicção de que o fim estava próximo: aniquilação total por guerra
nuclear ou catástrofe ecológica.
Neste
quadro, Flusser ficou conhecido na Alemanha. À frente do pano de fundo
negro, sua figura e seu pensamento pareciam irradiar luz benevolente e
radical ao mesmo tempo, fascinando e afastando: os otimistas achavam-no
ou muito pessimista ou otimista demais, enquanto os pessimistas não o
entendiam. Ele contradizia o humanismo tradicional. Definir
os seres humanos como meras protuberâncias de um aparato para a criação
de informação chocava-se não só com as noções usuais a respeito da
natureza dos seres humanos como também com noções correntes acerca da
natureza da informação. Sua análise sobre o processo da
desmaterialização foi mal-entendida e criticada como cínica pelos
próprios cínicos. Suas visões se baseavam na suposição de que o apocalipse, a grande catástrofe da história, já tinha acontecido.
Como Jean Baudrillard e Paul Virilio,
Flusser desprezava os limites estreitos das disciplinas tradicionais,
supondo-as distinções artificiais criadas pelo pensamento linear. Tentou
tanto quanto possível não registrar distinções sujeito-objeto em seu
trabalho; argumentava que a realidade e a ficção só diferem no grau de probabilidade, não em essência, nesse ponto estabelecendo a sua diferença com Baudrillard.
Enquanto
o filósofo francês afirmava que a realidade propriamente dita está
sendo confundida com sua própria imagem, corroborando a concepção da
sociedade do espetáculo, de Guy Debord, Flusser não reconhecia diferença significativa entre imagem e realidade. Ele tinha aversão ao termo simulação,
porque entendia implicar uma idéia do real teoricamente insustentável.
Em toda a história o homem pôde supor o acesso ao real tão-somente
através de simulações; o que chamamos de realidade é desde sempre um simulacro.
Na sua concepção tanto da realidade quanto do imaginário, portanto, a ironia tinha de ser parte constitutiva.
Entretanto, a ironia maior é a do destino.
Na República Tcheca onde nascera, Vilém Flusser permanecia desconhecido antes de o Instituto Goethe de
Praga, dirigido por Andreas Ströhl, o convidar em novembro de 1991.
Desde 1939, quando fugira da barbárie, Flusser não voltava à sua cidade
natal.
Naquele ano, improvisou pequena palestra na Dum fotografie –
Casa da Fotografia – e fez uma conferência sobre a mudança de
paradigmas no Instituto Goethe para um auditório abarrotado, que logo
questionava tudo aquilo em que a sociedade tcheca pós-totalitária
acreditava.
Flusser
descortinou os fracassos intelectuais de cinqüenta anos, empolgando-se a
tal ponto que de repente começou a falar português sem perceber.
Quando discorreu sobre seu sonho de seres humanos como projetos de
programação, como seres sem teto e errantes, que têm de aprender a
conquistar as máquinas, entender e dominar seus novos códigos digitais,
a audiência protestou, assustada: “mas só agora começamos a usar o
telefone…”.
Suas
idéias pareciam absurdas e ininteligíveis àqueles acostumados a pensar
com base em categorias políticas e morais. Ali estava algo novo, alguém
que defendia que só o pensamento
formal levaria a uma existência mais humana, enquanto que as revoluções
seriam esforços tão inúteis quanto o próprio comunismo, porque presas em um paradigma linear e histórico.
Depois
da conferência e seu sucesso atordoante, Vilém e Edith, sua mulher,
junto com Andreas Ströhl, Michael Bielicky e Petr Rezek, passaram longa
e alegre noite no Café Slavia.
Seria a última noite de Vilém Flusser.
No
dia seguinte, depois de fazer um piquenique com Edith nos arredores de
Praga, pegaram o carro para retornar à França – quando um caminhão
branco apareceu de repente de dentro da neblina.
O
filósofo, nascido tcheco, naturalizado brasileiro, que escreveu vários
livros em quatro línguas (alemão, português, inglês e francês), morreu
na mesma cidade em que nasceu, no dia 21 de novembro de 1991.
............................................................................................................
Publicado na Revista Trópico em 21/04/2005.
http://www.dubitoergosum.xpg.com.br/flusser65.htm [Acesso: 17/02/2010)
*
O site Dubito Ergo Sum foi retirado do ar depois de o prof. Gustavo
Bernardo ter a passado a receber sérias ameaças por causa do mesmo...
NOTAS
1 Em LAMBOTTE, Marie-Claude. Estética da melancolia. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2000: 51.
2 Em NUNES, Benedito. No tempo do niilismo. São Paulo: Ática, 1993: 65.
3 NUNES, Benedito. No tempo do niilismo: 138.
4 FLUSSER, Vilém. “Ironia”. Folha de São Paulo, 26/02/1972.
5 FLUSSER, Vilém. Da religiosidade. São Paulo: Comissão Estadual de Cultura, 1967: 88.
6 FLUSSER, Vilém. A história do Diabo. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1965: 15.
7 FLUSSER, Vilém. A história do Diabo: 17.
8 FLUSSER, Vilém. A história do Diabo: 19.
9 SAVATER, Fernando. Criaturas del aire. Barcelona: Ediciones Destino, 1989: 61.
10 HANSEN, João Adolfo. A ficção da literatura em Grande sertão: veredas. São Paulo: Hedra, 2000: 93.
11 Em GAY, Peter. Um judeu sem Deus. Rio de Janeiro: Imago, 1992: 60.
12 Em GAY, Peter. Um judeu sem Deus: 52, 71.
13 DURAS, Marguerite. A doença da morte. Rio de Janeiro: Taurus, 1984: 52.
14 FLUSSER, Vilém. A história do Diabo: 75.
15 FLUSSER, Vilém. A história do Diabo: 79.
16 FLUSSER, Vilém. A história do Diabo: 81.
17 Discurso pronunciado na Universidade de Sarajevo, a 11/09/1993.
18 FLUSSER, Vilém. A história do Diabo: 105.
19 FLUSSER, Vilém. A história do Diabo: 110.
20 Em PENROSE, Roger. O grande, o pequeno e a mente humana. São Paulo: Editora da UNESP, 1998: 123.
21 FLUSSER, Vilém. A história do Diabo: 169.
22 FLUSSER, Vilém. A história do Diabo: 175.
23 CRICHTON, Michael. Linha do tempo. Rio de Janeiro: Rocco, 2000: 11.
24 FLUSSER, Vilém. A história do Diabo: 181.
25 FLUSSER, Vilém. A história do Diabo: 196.
26 FLUSSER, Vilém. A história do Diabo: 199.
27 FLUSSER, Vilém. A história do Diabo: 202.
28 FLUSSER, Vilém. A história do Diabo: 205.
29 ORTEGA Y GASSET, José. A rebelião das massas. São Paulo: Martins Fontes, 1987: 144.
30 ORTEGA Y GASSET, José. Ideas sobre el teatro y la novela. Madrid: Alianza Editorial, 1999: 21.
31 FLUSSER, Vilém. “Unicórnios”. Folha de São Paulo, 24/03/1972.
32 ORTEGA Y GASSET, José. O que é a filosofia? Lisboa: Edições Cotovia, 1994: 109.
33 FLUSSER, Vilém. Língua e realidade. São Paulo: Herder, 1963: 142.
34 FLUSSER, Vilém. Os gestos. Manuscrito inédito – versão em português de: Gesten. Düsseldorf: Bollmann, 1991: 177.
35 FLUSSER, Vilém. Pós-história. São Paulo: Duas Cidades, 1983: 11.
36 ROSENFELD, Anatol. Texto/contexto II. São Paulo: Perspectiva; EdUSP; EdUNICAMP, 1993: 165.
37 FLUSSER, Vilém. Pós-história: 15.
38 FLUSSER, Vilém. Pós-história: 167.
39 Em KRAUSE, Gustavo Bernardo & MENDES, Ricardo (orgs). Vilém Flusser no Brasil: 49.
40 Em KRAUSE, Gustavo Bernardo & MENDES, Ricardo (orgs). Vilém Flusser no Brasil: 52.
-------------
Fonte: http://luzecalor.blogspot.fr/12/07/2013
Nenhum comentário:
Postar um comentário