ANTONIO GONÇALVES FILHO*
Apresentar a Virgem Maria não como a mãe de Deus, mas
uma mulher vulnerável, certamente é um passaporte para o purgatório num
país como a Irlanda. Mas foi isso o que fez o escritor irlandês Colm
Tóibín em O Testamento de Maria, lançado agora pela Companhia das
Letras, justamente quando a peça ainda faz barulho na Broadway. A
adaptação para o teatro, feita pelo próprio autor e estrelada por Fiona
Shaw (dos filmes de Harry Potter), provocou protestos de católicos na
rua 48, em Nova York, na noite de estreia, em abril, no Walter Kerr
Theater. A polêmica só não foi maior porque Tóibín, em sua pequena
novela, que rendeu um monólogo de 90 minutos, usa uma linguagem
elegante, respeitosa, quase arcaica, para contar a história de Maria
vivendo no exílio, em Éfeso, 20 anos depois da crucificação de Cristo.
Detalhe: ela não acredita que seu filho Jesus seja o Messias.
Esse, aliás, é o motivo da resistência de Maria em dar sua versão
pessoal da morte do filho para dois apóstolos, empenhados em escrever o
Novo Testamento. Protegida por João, que arranja para ela uma casa como
refúgio, Maria, viúva e precocemente envelhecida, recusa-se a aceitar a
narrativa dos discípulos, descritos pela Virgem como "um bando de
desajustados" tentando criar um mito. Em Éfeso, Maria é apenas uma
mulher solitária, que emerge no livro como uma personagem de estatura
moral comparável ao monumento erigido pela Igreja após o primeiro
concílio de Éfeso, em 431. Nele, a Virgem Maria foi declarada mãe de
Deus (Theotokos), e não apenas da natureza humana de Cristo.
Menos dogmático, Colm Tóibín, conhecido do leitor brasileiro por
livros como O Mestre e Mães e Filhos, mostra Maria como uma mulher
comum, que não fica aos pés da cruz como a retratam os pintores
ocidentais. A versão de Toíbín, que concedeu uma entrevista, por
telefone, à reportagem, é que Maria fugiu, com medo de ser a próxima
vítima, acossada que estava por dois fariseus. Lá pelo fim do livro,
depois de muito duvidar sobre a natureza divina do filho, ela, num
momento de clarividência diante da morte, só lamenta não ter tido a
chance de evitar seu martírio, como lamentaria qualquer mãe.
Devolver a humanidade a Maria, como Kazantzakis fez com Jesus em A
Última Tentação de Cristo, não chega, portanto, a constituir um
escândalo, embora alguns católicos possam ficar incomodados com a recusa
de Maria em pronunciar o nome do filho revolucionário - que não
reconhece como a criança que criou. Descrente, Maria não se sente à
vontade sequer para entrar na sinagoga. Prefere, em Éfeso, retomar a
antiga crença na deusa pagã Ártemis, a casta caçadora desapegada da
figura masculina.
O TESTAMENTO DE MARIA
- Autor: Colm Toíbín.
Tradução: Jorio Dauster
(Companhia da Letras, 88 págs., R$ 29).
- Autor: Colm Toíbín.
Tradução: Jorio Dauster
(Companhia da Letras, 88 págs., R$ 29).
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* Jornalista. Repórter especial do Estadão.
Fonte: Estadão on line, 13/07/2013
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