Umberto Eco*
O oficial francês, interpretado por Pierre Fresnay (à esquerda) e seu
homólogo alemão, interpretado
por Erich von Stroheim em "A Grande
Ilusão" de Jean Renoir (1937).
Em plena Primeira Grande Guerra Mundial, Marcel
Proust criou personagens ainda atraídos pela cultura alemã.
A prova,
segundo o semiólogo Umberto Eco, de que os intercâmbios culturais
contribuíram mais que tudo o resto
para forjar a Europa de hoje.
Quem tem o meu tipo de trabalho empreende esforços ciclópicos
para fugir a congressos, simpósios e entrevistas sobre o tema obsessivo
da identidade europeia. É um problema antigo, mas que se tornou
candente nos últimos anos, quando muitas pessoas negam a sua existência.
É interessante constatar que, entre aqueles que rejeitam uma
identidade europeia e gostariam que o continente se fragmentasse em
múltiplas pequenas pátrias, muitas vezes militam pessoas com pouca
espessura cultural; para lá de uma xenofobia quase congénita, ignoram
que, desde 1088, data de surgimento da Universidade de Bolonha, houve
clérigos itinerantes [“clerici vagantes”] de vários tipos a viajar de
universidade em universidade. De Uppsala [Suécia] a Salerno [Itália],
comunicavam na única língua comum que conheciam, o latim. Fica a
impressão de que só as pessoas cultas entendem a identidade europeia. É
triste, mas é um começo.
Atmosfera germanófila
A este respeito, gostaria de citar algumas páginas de Temps Retrouvé [O tempo reencontrado,
7º volume de “Em busca do tempo perdido”, edição da Relógio d’Água], de
Proust. Estamos em Paris, durante a Primeira Guerra Mundial. À noite, a
cidade temia as incursões dos zepelins e a opinião pública atribuía aos
abominados “boches” todos os tipos de crueldade. Pois bem, essas
páginas de Proust exalam uma atmosfera de germanofilia, evidente nas
conversas dos personagens.
Charlus é germanófilo, apesar de a sua admiração pelos alemães
parecer menos dependente de identidade cultural do que da sua orientação
sexual: “‘A nossa admiração pelos franceses não pode levar-nos a
desprezar os nossos inimigos. Não entende como é o soldado alemão,
porque não o viu, como eu, desfilar em parada com passo de ganso'.
Voltando ao ideal de masculinidade que me esboçara em Balbec [...],
comentou: 'Veja bem como é másculo o soldado alemão, um ser forte,
saudável, que só pensa na grandeza do seu país, Deutschland über
alles’”.
Saint-Loup falava-me de uma melodia de Schumann,
citando o título apenas em alemão
Esqueçamos
Charlus, embora, já nos seus discursos germanófilos, surjam algumas
reminiscências literárias. Falemos antes de Saint-Loup, bravo soldado
que irá perder a vida em combate. “[Saint-Loup] para me fazer entender
certos contrastes de luz e sombra que tinham sido ‘o feitiço da sua
manhã’ [...], não hesitou em aludir a páginas de Romain Rolland ou mesmo
de Nietzsche, com a liberdade das pessoas que estavam nas trincheiras e
que, ao contrário das da retaguarda, não tinham medo de pronunciar um
nome alemão [...]. Saint-Loup falava-me de uma melodia de Schumann,
citando o título apenas em alemão, e não se punha com circunlóquios para
contar que, quando de madrugada tinha ouvido o primeiro chilrear na
orla de uma floresta, se sentiu embriagado, como se a ave lhe tivesse
falado do ‘sublime Siegfried' que esperava voltar a ouvir passada a
guerra.”
Nada que uma guerra possa apagar
Ou ainda: “Soube, de facto, da morte de Robert de Saint-Loup, morto
dois dias depois do seu regresso à frente de batalha, ao proteger a
retirada dos seus homens. Nunca alguém teve menos ódio a um povo do que
ele [...]. As últimas palavras que ouvi da sua boca, seis dias antes,
eram as do início de um ‘lied’ de Schumann, que cantarolava na escada de
minha casa, em alemão, a ponto de, receando os vizinhos, o ter mandado
calar”.
A cultura francesa continuava a estudar a cultura alemã, embora com algumas precauções
E
Proust apressava-se a acrescentar que, mesmo naquele momento, toda a
cultura francesa continuava a estudar a cultura alemã, embora com
algumas precauções: ”Um professor escreveu um livro notável sobre
Schiller, com recensão nos jornais. Mas antes de falar sobre o livro,
escrevia-se sobre o autor, como se de uma licença para imprimir se
tratasse, que tinha estado no Marne, em Verdun, tinha recebido cinco
comendas e tido dois filhos mortos. Feito isso, elogiava-se a clareza e
profundidade da sua obra sobre Schiller, que podia qualificar-se como
grande, desde que se dissesse, em vez de 'esse grande alemão', ‘esse
grande boche’”.
Eis o que está por trás da identidade cultural europeia: um longo
diálogo entre literaturas, filosofias, obras musicais e teatrais. Nada
que uma guerra possa apagar. E é nessa identidade que se alicerça uma
comunidade que resiste à maior das barreiras, a da língua.
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* Umberto Eco é um escritor, filósofo, semiólogo, linguista e
bibliófilo italiano de fama internacional. É titular da cadeira de
Semiótica e diretor da Escola Superior de ciências humanas na
Universidade de Bolonha.
Fonte: http://www.presseurop.eu/11/11/2013
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