segunda-feira, 11 de novembro de 2013

A identidade cultural europeia é um diálogo

 Umberto Eco*
 O oficial francês, interpretado por Pierre Fresnay (à esquerda) e seu homólogo alemão, interpretado por Erich von Stroheim em "A Grande Ilusão" de Jean Renoir (1937).
 O oficial francês, interpretado por Pierre Fresnay (à esquerda) e seu homólogo alemão, interpretado 
por Erich von Stroheim em "A Grande Ilusão" de Jean Renoir (1937).

Em plena Primeira Grande Guerra Mundial, Marcel Proust criou personagens ainda atraídos pela cultura alemã. 
A prova, segundo o semiólogo Umberto Eco, de que os intercâmbios culturais contribuíram mais que tudo o resto 
para forjar a Europa de hoje. 

Quem tem o meu tipo de trabalho empreende esforços ciclópicos para fugir a congressos, simpósios e entrevistas sobre o tema obsessivo da identidade europeia. É um problema antigo, mas que se tornou candente nos últimos anos, quando muitas pessoas negam a sua existência.

É interessante constatar que, entre aqueles que rejeitam uma identidade europeia e gostariam que o continente se fragmentasse em múltiplas pequenas pátrias, muitas vezes militam pessoas com pouca espessura cultural; para lá de uma xenofobia quase congénita, ignoram que, desde 1088, data de surgimento da Universidade de Bolonha, houve clérigos itinerantes [“clerici vagantes”] de vários tipos a viajar de universidade em universidade. De Uppsala [Suécia] a Salerno [Itália], comunicavam na única língua comum que conheciam, o latim. Fica a impressão de que só as pessoas cultas entendem a identidade europeia. É triste, mas é um começo.

Atmosfera germanófila

A este respeito, gostaria de citar algumas páginas de Temps Retrouvé [O tempo reencontrado, 7º volume de “Em busca do tempo perdido”, edição da Relógio d’Água], de Proust. Estamos em Paris, durante a Primeira Guerra Mundial. À noite, a cidade temia as incursões dos zepelins e a opinião pública atribuía aos abominados “boches” todos os tipos de crueldade. Pois bem, essas páginas de Proust exalam uma atmosfera de germanofilia, evidente nas conversas dos personagens.

Charlus é germanófilo, apesar de a sua admiração pelos alemães parecer menos dependente de identidade cultural do que da sua orientação sexual: “‘A nossa admiração pelos franceses não pode levar-nos a desprezar os nossos inimigos. Não entende como é o soldado alemão, porque não o viu, como eu, desfilar em parada com passo de ganso'. Voltando ao ideal de masculinidade que me esboçara em Balbec [...], comentou: 'Veja bem como é másculo o soldado alemão, um ser forte, saudável, que só pensa na grandeza do seu país, Deutschland über alles’”.

Saint-Loup falava-me de uma melodia de Schumann, 
citando o título apenas em alemão
 
Esqueçamos Charlus, embora, já nos seus discursos germanófilos, surjam algumas reminiscências literárias. Falemos antes de Saint-Loup, bravo soldado que irá perder a vida em combate. “[Saint-Loup] para me fazer entender certos contrastes de luz e sombra que tinham sido ‘o feitiço da sua manhã’ [...], não hesitou em aludir a páginas de Romain Rolland ou mesmo de Nietzsche, com a liberdade das pessoas que estavam nas trincheiras e que, ao contrário das da retaguarda, não tinham medo de pronunciar um nome alemão [...]. Saint-Loup falava-me de uma melodia de Schumann, citando o título apenas em alemão, e não se punha com circunlóquios para contar que, quando de madrugada tinha ouvido o primeiro chilrear na orla de uma floresta, se sentiu embriagado, como se a ave lhe tivesse falado do ‘sublime Siegfried' que esperava voltar a ouvir passada a guerra.”

Nada que uma guerra possa apagar

Ou ainda: “Soube, de facto, da morte de Robert de Saint-Loup, morto dois dias depois do seu regresso à frente de batalha, ao proteger a retirada dos seus homens. Nunca alguém teve menos ódio a um povo do que ele [...]. As últimas palavras que ouvi da sua boca, seis dias antes, eram as do início de um ‘lied’ de Schumann, que cantarolava na escada de minha casa, em alemão, a ponto de, receando os vizinhos, o ter mandado calar”.

A cultura francesa continuava a estudar a cultura alemã, embora com algumas precauções
 
E Proust apressava-se a acrescentar que, mesmo naquele momento, toda a cultura francesa continuava a estudar a cultura alemã, embora com algumas precauções: ”Um professor escreveu um livro notável sobre Schiller, com recensão nos jornais. Mas antes de falar sobre o livro, escrevia-se sobre o autor, como se de uma licença para imprimir se tratasse, que tinha estado no Marne, em Verdun, tinha recebido cinco comendas e tido dois filhos mortos. Feito isso, elogiava-se a clareza e profundidade da sua obra sobre Schiller, que podia qualificar-se como grande, desde que se dissesse, em vez de 'esse grande alemão', ‘esse grande boche’”.

Eis o que está por trás da identidade cultural europeia: um longo diálogo entre literaturas, filosofias, obras musicais e teatrais. Nada que uma guerra possa apagar. E é nessa identidade que se alicerça uma comunidade que resiste à maior das barreiras, a da língua.
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Umberto Eco é um escritor, filósofo, semiólogo, linguista e bibliófilo italiano de fama internacional. É titular da cadeira de Semiótica e diretor da Escola Superior de ciências humanas na Universidade de Bolonha.
Fonte:  http://www.presseurop.eu/11/11/2013

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