José Luís Fior*
Pouco depois, no início do século XXI, o socialismo europeu já estava transformado numa “torre de Babel” irrecuperável
Ao fazer o balanço do socialismo europeu, no início do século XXI, é
possível extrair pelo menos três grandes ensinamentos de sua trajetória e
de suas experiências governamentais, do século passado:
i) A sua identidade doutrinária foi sendo desmontada pelos próprios
socialistas, através de sucessivas revisões teóricas, ideológicas e
políticas de sua matriz originária, de inspiração marxista, feitas
sempre em nome das “transformações do capitalismo”, e das exigências da
“luta eleitoral”. Mas a lenta e progressiva “desconstrução” desta matriz
não deu lugar à nenhuma outra teoria com a mesma capacidade marxista de
definir objetivos, atores e estratégias, a partir de um diagnóstico de
longo prazo das tendências críticas do capitalismo. Pelo contrário,
estas sucessivas revisões foram criando uma verdadeira “colcha de
retalhos”, que foi sendo tecida de forma pragmática, como resposta aos
desafios imediatos, e como justificativa de decisões políticas
conjunturais, cada vez mais contraditórias, com relação aos objetivos
iniciais dos socialistas.
Como vimos no artigo anterior, a primeira “rodada revisionista”, do final do século XIX, foi uma opção política pela “via eleitoral” que acabou tendo um enorme impacto estratégico e de longo prazo, porque significou, na prática, o abandono do projeto revolucionário de ruptura e superação do capitalismo, através da eliminação da propriedade privada, das classes sociais, e do estado. A segunda “rodada revisionista”, da década de 1950, por sua vez, implicou no abandono definitivo da própria ideia de uma sociedade e uma economia socialistas, e no longo prazo, significou uma opção pelo “aperfeiçoamento” ou “humanização” do próprio capitalismo De forma que se pode considerar que a terceira grande “rodada revisionista” e neoliberal, dos anos 80 e 90, foi apenas uma culminação da decisão anterior de se adequar periodicamente às “exigências e inovações do Capital”.
Pouco depois, no início do século XXI, o socialismo europeu já estava transformado numa “torre de Babel” irrecuperável.
ii) A experiência governamental do socialismo europeu foi bem menos
turbulenta e inovadora do que foi sua vida doutrinária. Durante os
séculos XIX e XX, os “socialistas utópicos”, de todos os matizes, e os
“anarquistas’, por razões óbvias, só participaram pontualmente de alguma
experiência de gestão estatal, defendendo – até hoje – várias formas de
economia comunitária, cooperativa ou solidária, e várias formas
políticas de democracia local, direta ou participativa. E o “socialismo
soviético” simplesmente eliminou o problema da gestão estatal do
capitalismo, ao coletivizar a propriedade e se propor a construção de
uma economia de planejamento central. Por isto coube aos partidos
socialistas e social-democratas ( e de forma secundária, aos partidos
comunistas) enfrentar o desafio de administrar democraticamente os
estados e as economias capitalistas europeias.
Neste campo, entretanto, os socialistas europeus inventaram e inovaram muito pouco com relação às politicas ortodoxas, conservadoras ou convencionais, durante suas três grandes experiências de governo, depois da Iº Guerra Mundial, nos anos 60/70, e durante a “era neoliberal”. Se pode afirmar que nunca existiu um programa de governo específico e exclusivo dos socialistas, que pelo contrário, sofreram sempre uma forte influência e muitas vezes assimilaram, pura e simplesmente, as ideias e projetos dos partidos e governos conservadores.
No campo da política econômica, por exemplo, os governos socialistas
foram quase sempre ortodoxos, como no caso clássico de Rudolf
Hilferding, ao assumir o Ministério da Fazenda da Alemanha, em 1928. Mas
também no caso do Partido Laborista inglês que optou em 1929 pela
“visão do Tesouro”, contra a opinião liberal de John Keynes e David
George, e o mesmo aconteceu com o governo social-democrata de Leon Blum,
na França, em 1936.
Mesmo depois da II Guerra Mundial, os social-democratas e socialistas seguiram ortodoxos, e só se “converteram” às políticas keynesianas na década de 60. Mas assim mesmo, nas crises monetárias de 1966 e 1972, os governos de Harold Wilson e Helmut Schmid voltaram rapidamente ao trilho conservador da ortodoxia monetarista. Neste sentido, como já vimos, a experiência sueca da década de 1930 foi uma exceção dentro de uma história relativamente monótona e recorrente. E ainda mais, depois da década de 80, e da adesão entusiástica dos socialistas de todos os matizes ao novo ideário neoliberal liderado e popularizado pelos governos anglo-saxões de Margareth Thatcher e Ronald Reagan.
O mesmo aconteceu no campo da política externa dos governos
socialistas e social-democratas do século XX. Foi por aí que começou sua
primeira grande divisão interna, por conta de sua tomada de posição
frente à Iº Guerra Mundial.
Mas na década de 30, as coalizões de governo com participação socialista ou social-democrata, também se dividiram frente à Guerra Civil Espanhola e aos primeiros passos da escalada nazista. E voltaram a se dividir durante a Guerra Fria, e foi só tardiamente que eles aderiram ao projeto da unificação europeia iniciado pelas forças conservadoras da França e da Alemanha. Em todo o século XX, uma das raras iniciativas realmente originais e autônomas de uma governo social-democrata, no campo da política internacional, afora a solidariedade genérica dos socialistas, com o “terceiro mundo”, foi a Ostpolitik do governo social-democrata de Willy Brandt, em 1969, que viabilizou os acordos de desarmamento, da década de 70 em 80, e iniciou o grande movimento na direção do “leste”, da Alemanha Ocidental, que acabou produzindo mudanças geopolíticas fundamentais, dentro e fora da Europa. Mas em geral se pode dizer que a política externa dos socialistas, e dos social-democratas, também se pautou pelas ideias e diretrizes dos partidos e governos conservadores, na Inglaterra, do nacionalismo gaullista, na França, e dos democrata-cristãos, na Alemanha.
Esta falta de “originalidade” talvez explique porque tenha sido durante seus próprios governos que o socialismo e a social-democraica tenham se dividido de forma mais profunda e radical. Uma divisão que chegou no limite da ruptura definitiva, depois da “virada revisionista” dos anos 50, e durante os governos social-democratas que começam na década de 60. Foi o período das grandes revoltas sociais e sindicais que questionaram a estratégia e a organização da “velha esquerda” e criaram as bases dos novos movimentos sociais, com sua proposta de volta às raízes anárquicas e comunitárias do “socialismo utópico”, e sua recusa da política partidária e da participação em governos.
III) Assim mesmo, no balanço final do século XX, é fundamental
reconhecer que os partidos socialistas e os social-democratas europeus,
na oposição ou no governo, mais na oposição do que no governo, e
sobretudo depois da II Guerra Mundial, deram uma contribuição decisiva
para a diminuição da desigualdade social, e para a universalização de
formas de proteção social e planejamento que haviam sido experimentadas
durante a guerra. Mesmo quando estas políticas também tivessem sido
apoiadas e incentivadas por vários partidos e governos conservadores.
De fato, os socialistas e os social-democratas europeus só perderam definitivamente o seu rumo e a sua identidade, depois do fim da União Soviética, que havia contribuído, no período anterior, para sustentar a imagem progressista do socialismo europeu, no cumprimento de sua função, dentro da Guerra Fria, de “alter-ego crítico” e de oposição de esquerda, ao socialismo soviético.
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José Luís Fiori, é cientista político, é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Fonte: http://correiodobrasil.com.br/13/11/2013
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