Antonio Prata*
Quem diria que o colesterol se transformaria em um inimigo ainda mais assustador que a rotina?
Fernando, que bom receber sua carta! Foi um e-mail, eu sei --chegou pela
tela do computador, via bem menos poética do que o vão embaixo da
porta--, mas nesses tempos claustrofóbicos de 140 caracteres, de "likes"
e SMSs, um e-mail longo como o teu, falando da vida, do trabalho e do
casamento merece ser promovido à carta. (McLuhan que me perdoe: às
vezes, o e-mail não é a mensagem.)
Eu disse que foi bom receber sua carta e agora fico em dúvida: afinal,
ao terminar de lê-la sentia mais saudade do que antes. Não só saudade de
você, mas da época em que éramos uma turma, em que nos encontrávamos
duas, três vezes por semana e varávamos madrugadas bebendo cerveja,
falando bem da gente e mal do mundo. Animados por aquela certeza
aristocrática da juventude (misto de hormônios, ingenuidade e, vá lá,
Serra Malte), brindávamos aos heróis que abriam nossos olhos pro
absurdo: Drummond, Zappa, Monty Python, Campos de Carvalho.
Qual foi a última vez que nos encontramos, os quatro: eu, você, o Márcio
e o Henrique? Que eu me lembre, foi naquele aniversário da Cla, há uns
cinco anos. (Ou faz mais tempo? Tenho tomado uns sustos, ultimamente:
sempre que penso que faz dois anos que alguma coisa aconteceu, faz
cinco; quando chuto cinco, foram dez). Desde o nosso último encontro,
você se separou e casou de novo, fez doutorado, morou fora do Brasil,
voltou. Eu me casei, tive uma filha, escrevi uns livros --seria inútil
fazer um resumo aqui: como resumir uma filha?
Você tem razão: "urge" nos encontrarmos e botar a conversa em dia, mas
me permite ser um pouco pessimista? Digamos que nos sentemos em torno de
uma mesa: vamos conversar, vamos comer, beber, rir, vamos refazer os
velhos vínculos. E depois? Voltaremos aos nossos trabalhos, aos nossos
e-mails, às nossas planilhas.
Poxa, mal aí, Fernando, você me manda uma carta lindona e eu te respondo
todo resmungão. É que lendo o seu e-mail me caiu uma ficha: percebi que
viramos pessoas sérias. Honramos nossos compromissos, ganhamos nosso
dinheiro, criamos nossas famílias, você até comprou, veja só, uma
esteira ergométrica. (Quem diria que o colesterol se transformaria num
inimigo mais assustador que a rotina, hein?). Será que isso é
necessariamente ruim? Talvez seja bom. Sim, é bom, mas volta e meia me
pergunto se não abrimos mão de alguma coisa importante, no caminho.
Tem uma história que eu sempre lembro, daquela época. Não é nem uma
história, é só um momento: estávamos esperando um táxi na Cardeal, em
frente ao Cemitério, lá pelas três da manhã e o Márcio sugeriu que
comprássemos um mausoléu. Uma daquelas casinhas com anjo, gárgula e o
escambau, em cima: seria o mausoléu da turma. Agora, escrevendo, parece
uma ideia funesta, mas não era. Na hora soou mais como uma proposta de
acampar em Mauá, de alugar uma casa em Caraíva, era leve e cômico e
promissor, como tudo mais. O Márcio jurou que no dia seguinte ia entrar
em contato com o cemitério e pedir uns orçamentos. Adivinha se ele
cumpriu com a promessa?
Bem, vejo que divago, Fernando, não te disse nada de útil e ainda te
lambuzei com a minha melancolia. Desculpa, meu amigo, saudade e que bom
receber sua carta!
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* Escritor. Colunista da Folha
Fonte: Folha on line, 24/11/2013
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