Carlos Benedito Martins*
Goffman analisou os processos da interação entre os
indivíduos nas mais diversas situações concretas:
em um elevador, uma
conversa informal, uma entrevista para obtenção de trabalho,
uma
fábrica, um hospital psiquiátrico etc.
(imagem: Sxc.hu)
No sobreCultura, sociólogo disseca obra de Erving Goffman
publicada pela primeira vez em 1959. 'A representação do eu na vida
cotidiana', que saiu no Brasil em 1985, concentra-se na análise da
interação social.
A representação do eu na vida cotidiana, de Erving Goffman,
foi publicado pela primeira vez em 1959 e contribuiu para a celebridade
acadêmica de seu autor. Além de ter impactado a sociologia
contemporânea, foi lido em várias partes do mundo por vasto e
diferenciado público. No Brasil, a primeira edição saiu em 1985, pela
Vozes, que, além de reimprimir este livro (na 18ª edição), vem nos
últimos anos publicando outros importantes volumes da obra de Goffman.
Não deixa de ser paradoxal que um dos autores mais influentes na
sociologia americana do século passado seja de origem canadense. Goffman
nasceu em 1922 na pequena cidade de Mannville, em Alberta, descendente
de judeus imigrantes da Ucrânia. Sua formação inicial não foi em
sociologia, mas em química. No período 1943-44, trabalhou no National
Film Board do Canadá, que produzia documentários, experiência que teve
impacto posterior em seu refinado senso de observação dos comportamentos
dos atores sociais na vida cotidiana.
Em 1944, ingressou na Universidade de Toronto para iniciar seu
treinamento em sociologia. No ano seguinte, decidiu prosseguir seus
estudos no Departamento de Sociologia da Universidade de Chicago, nos
Estados Unidos, de grande prestígio acadêmico. A passagem por essa
universidade marcou de forma profunda sua produção intelectual.
Goffman estava interessado em compreender
a complexa trama que envolve o encontro de
dois ou mais indivíduos
Face a face
Em sua percepção, a relação face a face que os indivíduos travam
entre si em situações sociais concretas constitui um domínio de
investigação distinguível – a ordem de interação – que possui suas
estruturas, processos e regularidades específicas, não podendo ser
reduzida a situações macrossociais e cujo método adequado de
investigação repousa na microanálise.
Ao recuperar a contribuição do sociólogo Willian Thomas a respeito do
impacto da ‘definição da situação’ sobre o comportamento que os
indivíduos desenvolvem entre si, Goffman enfatizou que as condições
situacionais afetam, informam e circunscrevem as ações sociais no tempo e
no espaço. Nesse sentido, insistiu que a compreensão da trama
interacional deve levar em consideração a existência de situações
sociais específicas nas quais os indivíduos encontram-se fisicamente
presentes, desenvolvem seus comportamentos, interpretam e respondem às
ações dos demais envolvidos nesse processo.
Em A representação do eu na vida cotidiana,
Goffman usou parte das observações realizadas durante 18 meses nas
ilhas Shetland, Escócia, para sua tese de doutorado, defendida em 1953.
Utilizou diversas fontes sociológicas e também lançou mão de extenso
material literário para ilustrar sua argumentação. Ele empregou a
metáfora da dramaturgia da representação teatral para analisar como os
indivíduos apresentam-se uns diante dos outros e como regulam as
informações e manejam a imagem de si que procuram transmitir durante uma
interação social.
Na representação teatral destacam-se três elementos: o ator que se
apresenta sob a máscara de um personagem, outros personagens da peça e a
plateia. O autor reduz esses elementos a apenas dois: um indivíduo que
representa determinado papel social na vida real e a plateia, ou seja,
os outros que estão em interação com ele. A plateia pode ser composta
por poucos indivíduos ou por uma coletividade.
A partir de um vocabulário dramatúrgico, Goffman descreve vários
tipos de encontros que os indivíduos realizam na vida cotidiana, tais
como visitar um amigo, comparecer a um funeral, comer em um restaurante
etc. Em cada um deles, o indivíduo busca apresentar um comportamento
adequado à situação específica na qual ocorre sua ação.Temas dramatúrgicos
O livro explora seis temas dramatúrgicos. As representações são as performances
que os indivíduos realizam para projetar uma determinada imagem de si.
Por equipe entende-se qualquer grupo de indivíduos que cooperam entre si
como grupo de atores. As regiões se distinguem em ‘fachada’ (onde os
atores apresentam suas identidades públicas em função do desempenho de
um determinado papel social para uma plateia) e ‘bastidores’ (onde os
atores relaxam do papel social que representam). Papéis discrepantes
expressam acontecimentos inesperados que podem desacreditar a impressão
que um indivíduo ou uma equipe deseja projetar para uma plateia.
A comunicação imprópria refere-se a determinados comportamentos dos
membros de uma equipe que desautorizam a impressão que ela desejava
passar para um público. E a arte de manipular a impressão a determinadas
medidas defensivas usadas pelos atores para evitar incidentes durante o
processo interacional que possam colocar em risco a representação e
medidas protetoras usadas pela plateia para ajudar a reparar a
representação caso tenha ocorrido alguma ruptura durante a interação.
O autor estava particularmente interessado em analisar a performance
dos indivíduos diante da presença de outros de modo a influenciar a
percepção que tenham dele. Assim, quando uma pessoa chega à presença de
outros, empenha-se em transmitir-lhes certa impressão. Pode desejar que
pensem muito bem dela. Às vezes, agirá de forma calculada para alcançar
esse objetivo; às vezes tem pouca consciência de estar procedendo assim;
em outras situações, um determinado papel que exerce na sociedade a
conduzirá a passar uma impressão deliberada de um determinado tipo de
pessoa que pretende ser. Quando um ator assume um papel social
estabelecido, geralmente verifica que uma determinada fachada
corresponde a esse papel. Nesse sentido, existem diferenças entre
fachadas mantidas por um médico, uma enfermeira e um vendedor de
ferros-velhos.
A interação social implica a produção de um consenso operacional construído conjuntamente
pelos participantes envolvidos
Na medida em que os outros que participam de uma interação agem como
se o indivíduo tivesse transmitido a eles uma determinada impressão de
si, para Goffman o indivíduo projetou uma definição da situação, ou
seja, informou-os a respeito do que é na vida social. A performance
implica expressões, atitudes e comportamentos que permitem ao indivíduo
evocar uma autoimagem para os outros. Ao projetar uma definição da
situação, isto é, apresentar-se como uma pessoa de determinada categoria
social, automaticamente ele tem a expectativa moral de que os outros o
tratem e valorizem de maneira adequada.
A interação social implica a produção de um consenso operacional
construído conjuntamente pelos participantes envolvidos – por meio de
sensibilidade diplomática, tato e savoirfaire –, no qual tendem
a apoiar valores aos quais todos os presentes prestam falsa homenagem e
evitam assuntos que poderiam comprometer o modus vivendi em
construção naquele momento. Na medida em que a sustentação da situação
deriva de um empreendimento coletivo, a análise apropriada não repousa
no indivíduo isolado e seu aparato psicológico, mas nas relações
mutuamente construídas entre as diferentes pessoas presentes. Nessa
perspectiva, Goffman reivindica uma sociologia das ocasiões, capaz de
analisar o empreendimento interacional, uma vez que busca analisar não o
homem em seus momentos, mas os momentos e seus homens.
A crise na trama interacional surge quando um determinado
acontecimento coloca em dúvida ou contradiz a imagem de si que
determinado indivíduo tentou transmitir aos demais. Mesmo em interações
que se desenrolam de forma razoavelmente pacífica podem ocorrer pequenos
eventos involuntários, que podem solapar a impressão que um indivíduo
procurava transmitir. Goffman ressaltou que em nenhum momento o ator
possui completo domínio do fluxo dos acontecimentos durante uma
interação. Com isso, quis destacar que a impressão criada por uma
determinada representação constitui uma situação delicada, frágil, que
pode ser quebrada a qualquer momento por pequenos contratempos.
A coerência expressiva exigida nas representações dos indivíduos
coloca em evidência uma dissonância entre nosso eu demasiado humano e
nosso eu socializado. Como seres humanos, possuímos estados de espírito,
humores, impulsos que variam segundo as circunstâncias. No entanto,
quando um indivíduo assume um determinado papel social, torna-se
inapropriado estar sujeito a altos e baixos em seu comportamento. Existe
uma expectativa social de que o desempenho de certo papel implique uma
burocratização do espírito a fim de que o indivíduo inspire a confiança
de executá-lo de forma constante ao longo do tempo.
Sentimento de embaraço
Conforme determinados fatos perturbadores ocorrem durante um processo
interacional, interrompendo seu desenrolar, cria-se um sentimento de
embaraço entre seus participantes. Para Goffman, um indivíduo reconhece
um sentimento de embaraço nos outros e em si mesmo quando surgem sinais
objetivos de distúrbios corporais e emocionais, como sinais avermelhados
no rosto, transpiração em excesso, perda do domínio da comunicação
verbal, tremor nas mãos, dificuldade no manejo do olhar, sorriso fixo
etc. Nessa circunstância, os participantes descobrem que o acordo tácito
que, de forma explícita ou implícita, vinha sustentando suas condutas
estava equivocado.
Nesse momento, o sistema da interação entra em colapso, gerando uma
situação confusa e de embaraço para o indivíduo cuja representação foi
desacreditada e para os demais, que estavam propensos a acreditar em sua
representação. Goffman ressalta que, no processo de desmoronamento do
processo interacional, o sentimento de embaraço contamina, contagia e
infringe sofrimento social a todos os participantes, sendo que o
indivíduo que eventualmente contribuiu para desacreditar um outro se
sente também envergonhado e culpado, pois, ao destruir a imagem do
outro, ele destrói sua própria imagem enquanto ator capaz de se
comportar de forma hábil e diplomática em situações interacionais
delicadas.
O livro sugere que todo ator que vive em sociedade paga um alto preço
emocional ao exercer no dia a dia
um conjunto de papéis sociais
A sociologia de Goffman, ao assumir que o sentimento de embaraço
causa um profundo sofrimento social para os indivíduos, concebeu o ator
social mais preocupado em minimizar possíveis riscos durante sua performance
no processo interacional do que em maximizar ganhos sociais. Na medida
em que uma simples nota fora de compasso pode comprometer uma performance
social em sua totalidade, para ele, homens e mulheres, de forma
consciente ou inconsciente, conduzem suas vidas procurando a todo custo
evitar situações que contradigam manifestamente a imagem que o indivíduo
e/ou uma equipe projetou de si.
O livro sugere que todo ator que vive em sociedade paga um alto preço
emocional ao exercer no dia a dia um conjunto de papéis sociais. Não
basta desempenhá-los. Trata-se também de persuadir diariamente os outros
atores a respeito da coerência entre as imagens correspondentes a um
determinado papel que está executando e exibir comportamentos adequados
ao que insinuou que é socialmente. A performance de um ator
implica uma autodisciplina do seu eu demasiado humano e um constante
cuidado para representar de forma convincente seu eu socializado de
maneira a não desacreditar sua representação. O preço pago quando os
outros percebem um descompasso entre as aparências alimentadas por um
indivíduo e a face incongruente de seu comportamento é a humilhação
social, a condenação pelos outros homens, a perda da reputação e do
crédito social.
Você leu o ensaio da seção 'Perdidos
& Achados' do sobreCultura 13. Clique no ícone a seguir para baixar
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------------------------* Departamento de Sociologia - Universidade de Brasília
Fonte: http://cienciahoje.uol.com.br/revista-ch/2013/309/ordem-e-fragilidade/view
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