LEE SIEGEL*
Paul Schutzer-Time & Life/Getty Images
Kennedetes, Em 1960, partidárias aguardam a chegada do candidato
Estudante medíocre, presidente no lugar do irmão morto, nunca conseguiu fugir da imaturidade
O 50º aniversário do assassinato de JFK traz de volta inúmeras
perguntas: quem o matou? Ele desejava a morte? Como seria a história dos
EUA se ele não tivesse sido morto? Mas a única que me perturba é:
Kennedy seria tão reverenciado se não tivesse sido baleado em Dallas
naquela tarde ensolarada de novembro?
JFK tinha um esplendor juvenil que batia com a maneira com que o
homem americano pensava, ou queria pensar, de si mesmo em 1960, o ano de
sua eleição. Apenas 15 anos antes os EUA haviam saído da sombra da
Europa, salvando-a da destruição. O Novo Mundo surgira dos escombros do
Velho, para dominar.
O mito da grandeza de Kennedy tem tanto a ver com o que o precedeu
quanto com o que aconteceu com ele. Quando JFK ascendia à presidência, a
pintura americana suplantava a europeia; com o advento do cool jazz, os
Estados Unidos passavam a ter uma linguagem musical própria, com
identidade tão própria quanto a de qualquer outra cultura; Hollywood
dominava a imaginação popular no mundo; a prosperidade americana do
pós-guerra era, para muitos americanos, um prêmio divino pela força e a
virtude do seu país. Se Kennedy tivesse sido uma voz, e não um homem,
teria sido a voz de Frank Sinatra: dourada, quente, firme.
Evidentemente, a realidade era muito diferente. Sob a superfície
carismática de Kennedy havia os mesmos demônios que turvavam as
profundezas dos EUA. Em ambos os casos, uma autoimagem idealizada levou
aos excessos horrendos permitidos por um sentido irreal de
excepcionalismo.
O pai de Kennedy, Joseph, fizera com que os filhos acreditassem ter
um destino especial que os punha acima dos semelhantes. E defendia essa
convicção com manobras muito práticas, como a contratação de Ted
Sorensen para escrever para John Profiles in Courage, o livro que o
fixou firmemente na consciência americana.
Mas, então, infelizmente JFK era uma mediocridade. O diretor do
colégio que ele frequentou escreveu isto na solicitação que Kennedy
enviou a Harvard para ser aceito na universidade: "Jack tem uma
capacidade mental superior, mas falta-lhe um interesse profundo pelos
estudos e uma visão madura, o que continuamente exige dele todo o
esforço. Ele fará, contudo, o suficiente para ser promovido". A própria
"capacidade mental superior" não passava, para ser polido, de exagero.
Não escrevo isso por não simpatizar com Kennedy. Ele sabia o tempo
todo que o desejo do pai era que o irmão mais velho, Joseph Kennedy Jr.,
fosse presidente, e que na realidade o pai não valorizava muito a
capacidade mental de Jack, o apelido de JFK, ou seu caráter. Jack sempre
foi o brincalhão que fazia palhaçadas para conseguir a admiração de
seus pares e desviar as atenções do irmão mais velho. Quando Joe Jr. foi
morto na 2ª Guerra Mundial, Joseph pai usou toda sua influência para
colocar Jack na Casa Branca. Entretanto, quando chegou lá, a pressão
revelou toda sua imaturidade.
É difícil acreditar, na atual conjuntura da política americana,
quando o menor deslize de um político é descoberto e atacado
instantaneamente, até que ponto Kennedy abusou do seu poder. Ele
transitava entre prostitutas, gângsteres, figuras menores de Hollywood.
Comprometeu a posição excepcional que ocupava, degradou seu cargo único a
cada chance que teve.
A irresponsabilidade que mostrou na vida privada estendeu-se a suas
ações públicas. Era indiscutível que o comunismo constituía uma ameaça à
liberdade, mas Kennedy se aproximou do adversário como se estivesse
jogando bola com os irmãos na propriedade da família em Hyannisport. O
episódio da Baía dos Porcos foi uma catástrofe, uma fantasia de
adolescente aventureiro que virou pesadelo. A crise dos mísseis foi um
exercício de autoafirmação que quase acabou numa guerra nuclear. A
imagem ideal que Kennedy tinha de si mesmo, indubitavelmente construída
para proteger-se do desprezo paterno, o impeliu a mandar cada vez mais
soldados americanos para o Vietnã, tornando uma certeza a guerra
americana naquele país.
Nos assuntos internos, Kennedy reduziu a alíquota fiscal marginal de
cerca de 90% para 60% para agradar aos amigos ricos, redução que foi o
primeiro passo para a concentração de riqueza que hoje atormenta tanto o
país. E, embora seja celebrado por sua postura progressista na questão
dos direitos civis, ele e o irmão Bob, que nomeara secretário da Justiça
de seu governo, só começaram a se envolver nesse campo quando não
tiveram outra escolha.
Em grande medida, o abuso de poder e de privilégios de Kennedy criou a
desconfiança com a autoridade que hoje rege a vida dos americanos. Ele
governou com a incauta indulgência de um imperador romano.
Relacionando-se com gângsteres, traindo tantas pessoas - exilados
cubanos ou vários maridos -, criou a seu redor uma atmosfera
shakespeariana de violência que tornou inevitável a morte com a qual se
defrontou, assim como, em outra clave muito diferente, a carnificina
inimaginável da Guerra Civil tornou inevitável a morte violenta de
Lincoln, que, como Kennedy, foi assombrado pela premonição de que seria
assassinado.
Excessos, violência e indulgência são o lado oculto da liberdade, do
espírito de iniciativa e da individualidade americana. O enigma do
assassinato de Kennedy é o enigma que está no próprio coração da
América. É por isso que John Fitzgerald Kennedy tem essa aura sagrada
até nossos dias. São muitas as coisas a ocultar.
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TRADUÇÃO DE ANNA
CAPOVILLA
* LEE SIEGEL É ESCRITOR E CRÍTICO CULTURAL AMERICANO. ESCREVE PARA O
JORNAL THE NEW YORK TIMES E AS REVISTAS HARPER’S, THE NEW YORKER E THE
NATION
Fonte: Estadão on line, 16/11/2013
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