Michel Aires de Souza*
O sociólogo Alemão Nobert Elias, em seu livro “O processo civilizador: uma história dos costumes”
conseguiu compreender muito bem a ligação que há entre a vida dos
indivíduos e as estruturas da sociedade. Este é um belo livro que todos
deveriam ler para saber como nos tornamos civilizados. Na história da
civilização ocidental nem sempre fomos tão amáveis e educados, nem
sempre fomos tão comportados e asseados, nem sempre fomos tão dóceis e
gentis. Para compreender o que somos temos que compreender o que fomos.
Este foi o objetivo de Elias, compreender como nos tornamos o que
somos. Para isso ele procurou compreender a história da nossa vida
afetiva, procurou compreender a história dos sentimentos de vergonha, de
repugnância, de limpeza, de delicadeza, de desagrado e medo. Em suma
ele fez uma história de nossos sentimentos mais profundos. Seu foco de
análise foram as interações sociais. Essas interações produzem padrões
de comportamentos que passam a fazer partes das estruturas sociais.
Essas estruturas, por sua vez, se materializam em representações,
hábitos, valores e formas de conduta. A partir disso, foi possível a
Elias descrever de forma profunda o processo psíquico civilizador.
Se pudéssemos nos transportar para a idade média no século XIII
ficaríamos impressionados e sentiríamos certa repugnância quanto aos
hábitos daquelas pessoas. Para Elias os sentimentos de repugnância,
vergonha, desagrado, nojo foram importantes no processo civilizador, uma
vez que moldou o nosso comportamento e a estrutura de nossa mente. É
por isso que sentimos nojo quando vemos alguém se comportar de modo
incivilizado à mesa. Se entrássemos em uma estalagem na idade média
veríamos muitos homens à mesa comendo com as mãos, servindo-se todos
numa mesma travessa e bebendo vinho num mesmo cálice. Veríamos também
alguns assoando o nariz na toalha da mesa e outros com as mãos. Muitos
estariam escarrando no chão. Pode ser que um deles tirasse a bota e
colocasse sobre a mesa. Outros estariam soltando gazes sem
constrangimento. Ao comer alguns estariam estalando os beiços. Muitos
deles estariam conversando com a boca cheia. Veríamos muitos arrotando.
Sentiríamos um fedor de alho e cebola no ar. Esses tipos de
comportamentos eram naturais e os indivíduos não sentiam nenhum
constrangimento quanto a isso.
Na história da civilização ocidental as mudanças do comportamento se
deram a passos lentos, os processos psíquicos foram mudando gradualmente
no curso dos séculos. Elias foi capaz de observar os homens à mesa, na
cama, no interior da casa, no campo e na cidade, em conflitos e
disputas. Nestas atividades os indivíduos foram mudando lentamente seus
sentimentos e atitudes. O que Elias descobriu foi que as mudanças
constantes nas estruturas da civilização ocidental mudaram também os
padrões de comportamento e a constituição psíquica dos indivíduos.
Na civilização é natural que todo ser humano sofra influência e seja
modelado pelo comportamento dos outros, nenhum ser humano nasce pronto e
acabado, somos modelados desde o nosso nascimento. Levando em
consideração esse postulado Elias buscou em manuais de etiqueta, livros
de comportamento, pinturas e documentos históricos, desde o século XIII,
as razões que foram moldando o comportamento humano.
A ideia de bom comportamento só começou a aparecer na idade média em
manuais procedentes das cortes da nobreza guerreira. Nesses manuais se
ensinavam boas maneiras à mesa, como lavar as mãos antes da refeição,
não roer os ossos a mesa, não limpar o nariz com as mãos, não pigarrear,
não falar demais, não limpar os dentes com a faca, não cuspir por cima
da mesa, não soltar gazes, não oferecer o resto da sopa a outrem, não se
enraivecer, sorrir sempre e ser cortês. O conceito de courtoesie
(cortesia) não só expressava a autoconsciência aristocrática, mas também
expressava uma mudança na mentalidade e nos sentimentos do homem
medieval. “É assim que as pessoas se comportam na corte. Com esses
termos, certos grupos importantes do estrato secular superior, o que não
significa a classe de cavaleiros como um todo, mas principalmente os
círculos cortesãos que gravitavam em torno dos grandes senhores feudais,
designavam o que os distinguia, a seus próprios olhos, isto é, o código
específico de comportamento que surgiu nas grandes cortes feudais e, em
seguida, se disseminou por estratos mais amplos” (Elias, 1994, p.76).
Para Elias o que faltava nesse mundo cortês eram as barreiras
emocionais que separavam um indivíduo do outro. Não existia ainda o
condicionamento dos sentimentos que nos faz ter nojo de qualquer objeto
que tenha tocado as mãos ou a boca de outro indivíduo. Esse
condicionamento só começa a se desenvolver na renascença onde o
embaraço, a vergonha e repugnância começaram a fazer parte das relações
sociais. Por esta razão surge no século XVI uma nova sensibilidade que
começou a se universalizar e que teve como expressão o conceito de
civilité (civilidade). Este conceito surge com os humanistas e
substitui o conceito de (cortesia).
O principal livro analisado por Elias do período renascentista foi a
obra “De civilitate morum puerilium" (Da civilidade em crianças) do
humanista Erasmo de Rotterdam, publicado em 1530, tendo mais de 130
edições e que fora publicado ainda no século XVIII. Este pequeno tratado
teve como objetivo "a função de cultivar os sentimentos de vergonha".
Mas, acima de tudo, é um trabalho de compilação de boas e más maneiras
que Erasmo tirou da própria vida social. Neste sentido é a expressão das
mudanças de seu próprio tempo. Como sabemos no século XVI houve uma
grande transformação na sociedade. Os valores do individualismo passaram
a ser preponderantes e o comportamento e as boas maneiras ganharam
grande notoriedade, de tal modo que, mesmo pessoas de grande talento e
renome não eram capazes de ignorá-las. “O tratado de Erasmo surge numa
época de reagrupamento social. É a expressão de um frutífero período de
transição após o afrouxamento da hierarquia social medieval e antes da
estabilização da moderna. Pertence a uma fase em que a velha nobreza de
cavaleiros feudais estava ainda em declínio, enquanto se encontrava em
formação a nova aristocracia das cortes absolutistas” (Elias, 1994, p.
85).
No livro de Erasmo são ensinadas regras de como se comportar a mesa,
como se sentar, como cumprimentar, como se vestir, que cuidado devemos
ter com os gestos ou com o olhar. É um manual para a educação de
crianças e foi escrito para um menino nobre, filho de príncipe. O
pequeno tratado fala de atitudes que perdemos e que aos nossos olhos são
entendidos como “bárbaros” ou “incivilizados”. Um dos seus ensinamentos
dizia que “não deve haver meleca nas narinas (...). O camponês enxuga o
nariz no boné ou no casaco e o fabricante de salsichas no braço ou no
cotovelo. Ninguém demonstra decoro usando a mão e, em seguida, enxuga-a
na roupa. É mais decente pegar o catarro em um pano, preferivelmente se
afastando dos circundantes. Se, quando o indivíduo se assoa com dois
dedos alguma coisa cai no chão, ele deve pisá-la imediatamente com o pé.
O mesmo se aplica ao escarro” (Idem Ibidem, p. 69-70).
Muitos dos comportamentos descritos no tratado de Erasmo são parecidos
com os nossos, mas outros são muito diferentes. Apesar de representar um
avanço nas formas de lhe dar com o corpo, com a limpeza e com as boas
maneiras, são ainda formas rudimentares de comportamentos se comparados
aos do homem contemporâneo. O tratado aconselha, por exemplo, que não
devemos pegar a carne com cinco dedos, mas apenas com três dedos. Este é
um sinal de distinção que separa a classe nobre da classe baixa. Mesmo
não existindo sabonete, aconselhava-se a lavar as mãos antes das
refeições. A água usada geralmente era perfumada com camomila. Quando os
dedos ficavam engordurados aconselhava-se não lambê-los ou enxugá-los
no casaco, mas sim num pano qualquer. Também aconselhava que não
devemos dar a carne que estamos comendo ao outro, pois é falta de
decoro oferecer carne mastigada a quem se gosta. O manual também dizia
que não era educado expor as partes íntimas. Algo bastante comum naquela
época.
Com esse tratado Erasmo mostrou as mudanças que estavam acontecendo em
sua época, ele delimitou as formas de comportamento e as situações
sociais e de convívio que estavam adquirindo sentido e significado e que
se generalizaria como expressão do mundo moderno. Apesar de nossa
visão etnocêntrica, que nos leva a pensar que aqueles hábitos eram
primitivos, Elias argumenta que o comportamento dos medievais eram
naturais e socialmente aceitáveis. Não existia o sentimento de
repugnância. O sentimento de nojo, repugnância ou vergonha não são
sentimentos naturais, mas foram construídos socialmente, são típicos do
homem moderno civilizado. Na época de Erasmo todos comiam com as mãos,
mesmo o rei e a rainha. Todos bebiam em canecas comuns. Praticamente
não existiam garfos e quando havia eram para tirar carnes das travessas.
Elias mostra-nos que foi somente no século XVI que o garfo surgiu para
tirar alimentos dos recipientes. O garfo era ainda artigo de luxo da
classe alta no século XVII. Também quase não existem pratos. As pessoas
usavam colheres e facas em comum. Quando a carne chegava à mesa cada
pessoa pegava-a com as mãos. Os dedos eram frequentemente enfiados no
caldo da travessa para molhar o pão. Os indivíduos também assoavam o
nariz com as mãos, da mesma forma que comiam com elas. A sensação de
nojo que experimentamos hoje, nem sequer existia naquela época.
O homem medieval também não tinha nenhum pudor quanto à nudez de seu
corpo. Ficar nu na frente dos outros era algo natural. Por esta razão o
tratado de Erasmo aconselhava-se a não expor as partes intimas. Esse
conselho começa a surgir em vários manuais a partir do século XVI.
Elias cita um observador daquela época que diz “ver o pai, nada mais
usando que calções, acompanhada da esposa e dos filhos nus, correr pelas
ruas, de sua casa para os banhos. Quantas vezes vi mocinhas de dez,
doze, quatorze, dezesseis e dezoito anos inteiramente nuas, exceto por
uma bata curta, muitas vezes rasgada, e um trajo de banho esmolambado,
na frente e atrás! Com isto aberto aos pés e as mãos decorosamente às
costas, correndo de suas casas ao meio-dia pelas longas ruas em direção
aos banhos. E quantos corpos nus de rapazes de dez, doze, quatorze e
dezesseis anos correndo ao lado delas". (idem, ibidem, p. 165). O pudor
só começa a surgir no século XVI, e somente se torna um sentimento
internalizado a partir do século XVII. Antes disso não existia o
sentimento de vergonha do corpo e das partes íntimas expostas. Na
verdade a exposição do corpo era uma “regra diária” que perdurou até o
final da idade média. As pessoas geralmente dormiam nuas e andavam sem
roupa em casa e em seu entorno. A camisola só apareceu no século XVI na
mesma época em que surgiu o garfo, o lenço e outros objetos da vida
civilizada.
Outro fato que espanta o homem contemporâneo é a estrema agressividade
da época medieval. A pilhagem, a guerra, as vinganças, os estupros, a
caça de homens e animais eram “necessidade vitais” da estrutura social.
Atacar igrejas, atacar peregrinos, atacar oprimidos, viúvas e órfãos,
mutilar inocentes eram acontecimentos diários, geralmente praticados
pela classe guerreira. Não existiam instituições que pudessem impedir as
atrocidades, não existia poder social punitivo. Viver naquela época era
se sentir constantemente inseguro. Elias conta-nos a história de um
cavaleiro que sentia prazer em mutilar pessoas. Em um único mosteiro ele
cortou as mãos de 150 homens e mulheres e arrancou seus olhos. Sua
esposa o ajudou e foi capaz de arrancar as unhas das mulheres e cortar
seus seios. Contudo, ninguém estava seguro, nem mesmo os algozes. O
medo e a insegurança eram sentimentos comuns em todo mundo. “O vitorioso
de hoje era derrotado amanhã por algum acidente, capturado e sua vida
corria perigo. No meio dessas perpétuas ascensões e quedas, dessa
alternância de caçadas humanas (...) pouco podia ser previsto. O futuro
era relativamente incerto mesmo para os que haviam fugido do mundo. Só
Deus e a lealdade de algumas pessoas tinham alguma permanência. O medo
reinava em toda parte e o indivíduo tinha que estar sempre em guarda”
(idem ibidem, p. 193)
O que estava acontecendo na época de Erasmo era uma tendência
cada vez maior das pessoas se observarem, de se moldarem umas as outras,
de fazerem pressão reciprocamente umas sobre as outras. O indivíduo
passa a controlar mais seu comportamento, a coação é muito maior do que
na época das cortes medievais. As boas maneiras começam a se tornarem
exigências do convívio social. Se Erasmo se dedicou a escrever um livro
de boas maneiras foi porque o bom comportamento tinha se tornado
importante naquela época. E tinha se tornado importante justamente
porque surgia uma nova aristocracia: as cortes absolutistas. “Exatamente
por esta razão, a questão de bom comportamento uniforme torna-se cada
vez mais candente, especialmente porque a estrutura alterada da nova
classe alta expõe cada indivíduo de seus membros, em uma extensão sem
precedentes, às pressões dos demais e do controle social (...). Forçados
a viver de uma nova maneira em sociedade, as pessoas tornam-se mais
sensíveis às pressões das outras. Não bruscamente, mas bem devagar, o
código de comportamento torna-se mais rigoroso e aumenta o grau de
consideração esperado dos demais. O senso do que fazer e não fazer para
não ofender ou chocar os outros se torna mais sutil e, em conjunto com
as novas relações de poder, o imperativo social de não ofender os
semelhantes torna-se mais estrito, em comparação com a fase precedente”
(Idem Ibidem, p. 91)
No tratado de Erasmo já havia uma preocupação com o controle das
emoções e dos impulsos agressivos. O indivíduo civilizado devia ser
dócil e amável com todos. Não devia dizer nada que pudesse provocar
conflito ou irritar. Além disso, aconselhava-se que devemos ser
tolerantes com as ofensas dos demais. Se um companheiro não se comporta
bem, devemos aceitar, uma vez que ele deve compensar a rusticidade de
seu comportamento com outros talentos. Da mesma forma aconselhava o
diálogo com quem nos ofende.
Elias analisou grande parte dos manuais produzidos até o século XVIII,
como livros, tratados ou panfletos sobre civilidade. O que ele percebeu
foi que nessa época esses manuais já se dirigiam claramente a moradores
de pequenas cidades das províncias. As formas de comportamento ensinadas
nesses manuais surgem na classe aristocrática e posteriormente se
generalizam por toda sociedade. Na medida em que se popularizam
demonstram com grande clareza a disseminação dos costumes, de cima para
baixo. Isso significa que nossos hábitos civilizados como comer com
garfo, colher e faca e ter boas maneiras assim como nossos valores
morais provem da nobreza, disseminada pela burguesia.
Outra descoberta de Elias foi que esses rituais de bom comportamento
não surgiram por causa do nosso medo de contrair doenças, mas surgiram
do nosso sentimento de repugnância. Foi uma mudança nos nossos impulsos e
emoções. Os sentimentos de nojo se tornaram institucionalizados. O
desagrado, a antipatia, a repugnância, o medo ou a vergonha foram
alimentados e reproduzidos tornando-se ritualizados. “O novo padrão
não surge da noite para o dia. Algumas formas de comportamento são
proibidas não porque sejam anti-higiênicas, mas porque são feias à vista
e geram associações desagradáveis. A vergonha de dar esse espetáculo,
antes ausente, e o medo de provocar tais associações, difunde-se
gradualmente dos círculos que estabelecem o padrão para outros mais
amplos, através de numerosas autoridades e instituições” (Idem Ibidem,
p.134).
As boas maneiras começaram a surgir nas cortes dos senhores
feudais e se expressava pela palavra cortesia. Mas ainda durante a idade
média a palavra não se limitava apenas a corte, uma vez que a burguesia
em ascensão também se apropriava dela. Com a queda da nobreza guerreira
e dos senhores feudais e com a formação de uma nova aristocracia dos
monarcas absolutistas, o conceito de civilidade ganhou preponderância
como forma de comportamento em vigor. Foi através do conceito de
civilidade que surgiram grande parte dos hábitos do homem civilizado,
como comer com garfo, faca e colher. Contudo, de maneira análoga o
conceito de civilidade começou a perder sentido no século XVIII, uma vez
que a burguesia estava se afirmando como classe dominante. A corte cada
vez mais sofria influências dos valores burgueses. O conceito de
civilidade começa a diminuir e outros conceitos ganham mais valor como
politesse, humanité. A partir disso surge uma nova autoconsciência.
Nessa época os padrões de comportamento já eram bastante divulgados e
muitos deles haviam sido internalizados. “O conceito de civilização
indica com clareza, em seu uso no século XIX, que o processo de
civilização – ou, em termos mais rigorosos, uma fase desse processo –
fora completado e esquecido. As pessoas querem apenas que esse processo
se realize em outras nações, e também, durante um período, nas classes
mais baixas de sua própria sociedade. Para classe alta e média da
sociedade, civilização parece firmemente enraizada. Querem acima de
tudo, difundi-la e, no máximo, ampliá-la dentro do padrão já conhecido”
(Idem Ibidem, p.113)
Os manuais de boas maneiras, analisados por Elias, serviram como um
instrumento para se entender, em cada época, os padrões de hábitos e
comportamentos a que a sociedade procurou acostumar os indivíduos.
Significa dizer que cada época condicionou e modelou os indivíduos
tentando dissuadi-los a não se comportarem de certa maneira, mas sim de
acordo com os hábitos, regras e tabus vigentes. Nesse sentido ele
conseguiu compreender como os homens abandonaram seus impulsos naturais
incivilizados e os transformaram em comportamentos civilizados.
Bibliografia
ELIAS, Nobert. O processo civilizador: uma história dos costumes. Vol 1. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 1994.
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* Professor.
Fonte: http://filosofonet.wordpress.com/2013/11/16/como-nos-tornamos-civilizados/
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