Arnaldo Jabor*
A frase que mais me impressionou na semana foi escrita pelo Comando
Vermelho em sua "constituição", em seu estatuto de regras: "O crime nos
dá a convicção de que nossas bravuras são pelo progresso, por nosso
esforço e mérito. Farão de nós vitoriosos. Pois nós somos o lado certo
da vida errada". É extraordinário: "nós somos o bem do mal".
Citei o CV e agora cito Jean Pierre Dupuy, filósofo da Escola
Politécnica de Paris e da Universidade de Stanford que escreveu em seu
livro Por um Catastrofismo Esclarecido: "Sempre o Mal esteve relacionado
com as intenções de quem o comete. Os horrores do século 20 deviam nos
ter ensinado que isso é uma ilusão. O absurdo é que um mal imenso possa
ser causado por uma completa ausência de malignidade, que uma
responsabilidade monstruosa possa caminhar junto com uma total ausência
de más intenções. (...) a catástrofe ecológica maior com que nos
deparamos e que põe em perigo toda a humanidade será menos o resultado
de um mal dos homens ou mesmo de sua estupidez. Terá sido mais por uma
ausência de pensamento ('thougthlessness' )(...) Hoje, um sem número de
decisões de toda ordem, caracterizadas mais pela miopia do que pela
malícia ou pelo egoísmo, compõem um todo que paira sobre elas, segundo
um mecanismo de autoexteriorização ou de autotranscendência. O mal não é
nem moral nem natural. É um 'mal' do terceiro tipo, que chamarei de
'mal sistêmico'."
O mal é o bem ou o bem é o mal? Antigamente, era mole. O mal era o capitalismo e o bem o socialismo.
Agora, os intelectuais, os bondosos de carteirinha, os cafetões da
miséria, os santos oportunistas, estão em pânico. Se não houver um mal
claro, como seremos 'bons'? No mundo inteiro, há uma reviravolta ética,
um cinismo que nos acostuma com o inaceitável. E também renasce, com
descaro, a boçal divisão guerreira entre "esquerda" e "direita". Ninguém
aguenta conviver com singularidades. Há uma fome bruta por
"universais". Mas, como escreveu Baudrillard: "Hoje não há mais o
universal; só temos o singular e o mundial".
Quem é o mal: o assaltante faminto ou o assaltado rico? Ou nenhum dos
dois? Como praticar o bem? Apenas se horrorizando com o mal? Como
inventar uma "práxis" do bem?
O Mal é sempre o outro. Nunca somos nós. Ninguém diz de fronte alta: "Eu sou o mal!" Ou: "Muito prazer, Diabo de Almeida".
Como disse Hannah Arendt, na frase que virou lugar comum: o mal ficou
banal. Tanto que o mal dos terroristas e jihadistas consiste em injetar
no Ocidente o seu "bem", o arcaico no moderno, neste inferno "clean"
que o capital inventou. Em nome de uma razão ideológica, de uma
finalidade futura, os soviéticos assassinaram milhões pelo "bem" do
Homem Total. A fé excessiva no Sentido e na finalidade prejudicaram
muito o pensamento, mais do que a gente imagina. Hoje em dia, a
esperança é mais remota, mas talvez esse vazio seja o início de uma
reflexão mais à altura de nossa mediocridade finita, de um "geist" mais
vagabundo.
Quem é o planejador do mal? O Japão vai parar de produzir robôs, para
empregar a mão de obra faminta da Somália? Quem controla o mal? A
Al-qaeda, o Putin, o Assad? Ou eles são agentes de um "mal"
histórico-concreto inevitável? E cito mais uma vez Baudrillard, tão
criticado pelas academias porque tinha imaginação e brilho: "Hoje,
contra o mal, só temos o fraco recurso dos direitos humanos".
Talvez um caminho seja, como escreveu Louis Dumont, nos Ensaios sobre
o Individualismo (apud Dupuy): "O bem deve englobar o mal, mesmo sendo
seu contrário".
(Arghh, quanta citação!)
O bem está virando um luxo e o mal uma necessidade social. Sem
participar do mal, não conseguimos viver. Como ser feliz olhando as
crianças empilhadas na Síria, no Iraq, nos grotões do Brasil feudal:
Maranhão, Alagoas, etc.? Temos de fechar os olhos. "Sou feliz se
conseguir manter os olhos fechados." Ser feliz é não ver. Como praticar o
bem? Apenas se horrorizando com o mal? Não vale ficar "tristinho", nem
lançar apelos à razão ou à caridade. "Eu fiz tudo para ser um homem de
bem. Serei um canalha?" Todos se acusam, todos querem ser o bem. Durante
a ditadura, todos éramos o bem. O mal eram os milicos. Acabou a dita e
as "vitimas" (dela) pilharam o Estado. O que é o "bem" hoje? É lamentar
com certo prazer uma impotência, é um negror melancólico, é um elogio da
morte? Ou o bem é ser pragmático, frio? É uma identificação mecânica
com as desgraças ou um desejo "protestante" de melhorar na vida?
O pensamento aspira à totalidade. O bem será um desejo de harmonia,
de Uno ou o bem é suportar heroicamente o múltiplo, o incontrolável, a
impotência "democrática"? O bem hoje é aceitar os limites do "possível
histórico" ou persistir em utopias, apenas pelo prazer de se sentir
acima da insânia da vida? Pensamos com o corpo, queremos que o mundo
seja um "todo harmônico", como o nosso organismo. A ideia de
"fragmentário" gera angústia, porque lembra a morte. Por isso, a
aceitação do fragmentário se reergue em nova totalidade e começa tudo de
novo. A democracia é muito complicada, lenta e está deixando todo mundo
impaciente - somos todos totalitários. Ao denunciar o Mal, vivemos
dele. Eu ganho a vida denunciando o que eu acho o "mal".
O mal no mundo atual é o "incompreensível". Também, nós sabemos
desses perigos todos, mas não cremos neles. A catástrofe talvez já tenha
acontecido, mas a gente não acredita. No Brasil, o grande Mal não tem
importância. O perigo aqui é o pequeno mal, enquistado nos estamentos,
nos aparelhos sutis do estado, nos seculares dogmas jurídicos, nos
crimes que são lei. O mal aqui está nos pequenos psicopatas que,
quietinhos, nos roem a vida. Aqui o grande canalha serve para camuflar
os pequenos, que são os grandes canalhas. O mal do Brasil não está na
infinita crueldade dos torturadores ou das elites sangrentas, está mais
na sua cordialidade. No Brasil, o mal nos engana. Aqui, o perigo é o
Bem.
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* Cineasta. Escritor.
Fonte: Estadão on line, 12/11/2013
Imagem da Internet
Talvez o bem nem existe...Talvez seja apenas a utopia que emerge no "intervalo" entre o mal e um mal maior...
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