José Tolentino Mendonça*
É um verbo humaníssimo, este verbo pedir. Pedimos
coisas diferentes e de formas absolutamente variáveis. Quando nascemos,
começamos por pedir aos gritos que partam em nosso socorro, antes de
termos as palavras. Quando aprendemos a usá-las, ganhamos talvez maior
tranquilidade no pedir, mas nem sempre. Pedimos porque não nos bastamos
a nós próprios. E isso, que seguramente é um elemento que nos redime,
não deixa de ser igualmente uma ferida. O léxico do pedir é prolífero,
mas também inconstante. Pedimos com simplicidade e com inúmeros
rodeios. Mantemo-nos fluentes ou gaguejamos, mergulhados numa
insegurança que nos tolhe.
Pedimos oralmente, por escrito, por entreposta pessoa,
de forma ostensiva ou subtil, ou, até, com maior ou menor consciência
de que um pedido está a ser formulado. Há mesmo momentos da vida (e não
são poucos) em que faríamos tudo para não ter de pedir. Esta
dificuldade nem sempre é má Precisamos de autonomia para maturarmos o
nosso caminho pessoal, e todas as dependências de que a vida se tece só
ganham em ser sacudidas e purificadas por um espírito de liberdade que
se afirma. Pedir pode tornar-se um obstáculo a aprendizagens que estão
perfeitamente ao nosso alcance. Mas o contrário também é verdade, pois
crescemos no reconhecimento de que sem os outros nós não somos. De
entre todos os pedidos, os que nos custam mais são os mais simples,
aqueles imateriais, e que se prendem com a arquitetura (ou
arquitextura, como ensinou Derrída) das relações: pedir amor, pedir
desculpas, pedir presença, conversa, calor, compaixão. Aí é tão fácil
ficar enredado em engulhos, coisas não-ditas ou mal-entendidas.
Penso muitas vezes num pedinte que conheci em Roma. Era
(e é) impossível não dar com ele quando se visita a cidade. Eu estava
sempre a esbarrar com uma das suas passagens: à saída da universidade,
da biblioteca, do cinema, no Campo das Flores, em São Pedro, por todo
o lado. De dia ou de noite. Um homem que andará hoje pelos sessenta
anos de idade, com um porte discreto, delicado até. Abeira-se dos
passantes com duas perguntas. «Fala italiano?» - atira primeiro. E,
qualquer que seja a resposta, dá o passo seguinte. Pegando
cuidadosamente numa moeda entre os dois dedos e colocando-a perto dos
nossos olhos, roga: «Tem 100 liras?». Conheci-o assim, ainda antes do
euro. Com a integração na moeda única, ele também se ajustou, passando a
pedir 10 cêntimos.
A primeira vez que a sua interpelação nos é dirigida
pensamos que se trata de alguém que precisa de completar a quantia
necessária para um bilhete de metro ou para uma fatia de pizza. Depois
de o encontrarmos centenas de vezes, ficamos sem saber exatamente o que
pensar. Assisti, porém, a uma cena que porventura pode esclarecer
parte do enigma.
Numa rua, à volta do Panteão, estava sentado um outro
mendigo. Melhor seria dizer que estava prostrado. Com um vestuário
andrajoso, um braço deformado por caroços, um ar que trazia misturado
tudo: dor e exclusão. À distância, vejo o pedinte aproximar-se dele. E,
para meu espanto, percebo que repete ao mendigo a cantilena que faz a
todos os outros, mostrando-lhe insistentemente uma moeda. Talvez para
afastá-lo, talvez vencido pela compaixão, vejo que o mendigo tira do
seu prato uma moeda que lhe entrega. E foi neste momento que a cena se
tornou inesquecível. O pedinte ajoelha-se ali diante de todos, agarra
as mãos do mendigo e beija-as repetidamente, turbado pela emoção. Penso
que finalmente o percebi. Ele não pedia moedas. Pedia um bem mais raro
e vital: pedia o dom.
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* Escritor português. Teólogo. Poeta.
In Expresso, 23.11.2013
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