Kierkegaard*
"Que o caminhante, que se dirige para o seu
longínquo destino, não se apresse no começo, mas, de cada vez que cai a
noite, pacientemente descanse para poder continuar o caminho no dia
seguinte; que aquele que carrega um pesado fardo não se esgote
excessivamente no começo, mas, de vez em quando, deponha o fardo no
chão, sentando-se ele mesmo ao seu lado, a fim de ganhar novas forças
para o carregar;"
Adquirir a sua alma na paciência. Não é este
enunciado, certamente sempre inoportuno, capaz de matar, de um só
golpe, toda a audaciosa expectativa que anseia por um feito de renome,
por ações entusiasmadas, por luta e conflito, onde a recompensa é
incerta, mas também magnífica? Não é este enunciado, para o velho, o
mesmo que a voz do pai para a criança, quando a chama do jogo
barulhento, onde era rei e imperador, para a tranquila ação da
paciência – sim, não é este enunciado ainda mais angustiante quando
pretende estender-se a toda a vida, não admitindo que se brinque com
ele, como se só de vez em quando fosse a sério? Se, porém, aquele que
disse isso sabia aquilo que é proveitoso para um homem; se ele – como é
bem o caso – o disse na mesma ocasião em que recorda que a abominação
da desolação haveria, com o seu sorvedouro, de revolver a vida desde a
sua mais funda raiz e, justamente assim, ser ocasião para grandes
feitos e obras de renome, então, quando pensamos estar certos de que o
enunciado não nos aproveita – sim, que ele oprime a nossa alma –, que
tenhamos, pelo menos, paciência para acreditar que o erro consiste em
não compreendermos corretamente o enunciado, e que é erro nosso se o
efeito do enunciado parece tão pequeno que, em vez de dar a cada homem a
sua alma e todo o mundo em retribuição do seu anseio e do seu esforço,
pelo contrário, lhe tira todo o mundo e a sua glória, como algo que
ele nunca terá; sim, lhe tira até mesmo a sua alma, para o fazer
adquiri-la na paciência.
Tenhamos, então, pelo menos, paciência para
acreditar no enunciado; paciência para não protelar a ponderação para
um tempo mais oportuno; para não pedir ao enunciado – faltando-nos a
nós esta capacidade – que tenha paciência, paciência para separar, a
fim de voltar a unir, aquilo que está inseparavelmente unido.
"Adquirir a sua alma". Não possui um homem a sua
alma? E pode ser essa a verdadeira instrução para ser feliz, aquela
que, em vez de ensinar um homem a adquirir, por meio da sua alma, o
mundo inteiro, antes o ensina a empregar a sua vida para adquirir a sua
alma? Nasce nu o homem e nada traz consigo para o mundo e, quer as
condições para a sua vida estejam dadas como figuras amigáveis que tudo
têm à disposição, quer ele tenha penosamente de as descobrir por si –
qualquer homem tem, no entanto, de um modo ou de outro, de adquirir as
condições para a sua vida. E, mesmo se esta consideração torna alguém
impaciente e, assim, incapaz de tudo, os melhores, pelo contrário,
compreendem-na e conformam-se com isso – que a vida deve ser adquirida e
que deve ser adquirida na paciência. E para isso, exortam-se a si
mesmos e aos outros, porque a paciência é uma força da alma necessária a
cada homem para alcançar aquilo que deseja na vida.
Que o caminhante, que se dirige para o seu
longínquo destino, não se apresse no começo, mas, de cada vez que cai a
noite, pacientemente descanse para poder continuar o caminho no dia
seguinte; que aquele que carrega um pesado fardo não se esgote
excessivamente no começo, mas, de vez em quando, deponha o fardo no
chão, sentando-se ele mesmo ao seu lado, a fim de ganhar novas forças
para o carregar; que aquele que trabalha pacientemente o seu campo
espere pela chuva tardia e pela temporã até chegar a colheita; que
aquele que adquire o seu sustento pelo comércio se sente junto às suas
mercadorias e espere pacientemente até que chegue o comprador e até que
este venha pagar; que aquele que estende a sua armadilha para os
pássaros espere todo o dia até ao fim da tarde e se sente pacientemente
junto à sua armadilha, sem se mexer, até que eles venham; que aquele
que vai buscar o seu alimento ao fundo do mar espere pacientemente com a
sua linha durante todo o dia; que a mãe que quer obter alegrias com o
seu filho não deseje que ele cresça depressa, mas espere pacientemente
em noites de insónia e dias inquietos; que aquele que quer ganhar o
favor dos homens trabalhe dia e noite e não deite tudo a perder por
impaciência; que aquele que quer falar aos homens acerca do que lhes
parece indiferente não se precipite ao princípio, e depois desista, mas
continue a falar e espere pacientemente – tudo isto os homens
compreendem: compreendem que seja assim e conformam-se com isso, que é
bom e proveitoso que assim seja, e deixam-se formar por isso e, na sua
visão da vida, preferem este modo de atuar à selvagem e indomável
ebulição que não leva a nada, antes causa apenas perturbação e dano.
A condição de que se fala é exterior ao homem e a
condição para, por meio disso, alcançar aquilo que deseja é a
paciência, de sorte que ele não conquista propriamente a paciência, mas
sim o desejado. Há, assim, muitas e muito diferentes condições, mas
constitui a alma uma condição desta ordem? Diz-se, então, demasiado
pouco ao dizer que o homem vem nu ao mundo e que não possui nada no
mundo, quando nem mesmo possui a sua alma? Se as considerações
anteriores já eram de molde a tornar um indivíduo impaciente e incapaz
de viver – sim, como é que esta outra consideração não haveria de
tornar qualquer pessoa impaciente como que desde a raiz? Para que é que
se há-de viver, se em toda a vida se tem de adquirir o pressuposto que
é, no seu mais profundo fundamento, o pressuposto da vida? Sim, que
significa isto?
A paciência ajuda-nos ao ponto de este enunciado –
que na sua brevidade parecia ser tão desencorajante, tão
insignificante, a custo merecedor de consideração – se mostrar agora,
na sua brevidade, tão cheio de significado que antes produz tentação de
outra forma – como se fosse insondável. E não é angustiante entrar por
este caminho onde bem depressa e a cada instante se vê a meta, mas
nunca se vê a meta alcançada – ao contrário do que sucede com o
caminhante, que chega à meta, e com aquele que carrega o fardo, que
chega ao seu destino? Caminho onde, por assim dizer, nunca se sai do
sítio – ao contrário do caminhante, que agora vê uma região e depois
outra, e ao contrário daquele que carrega o fardo, que perde de vista
uma parte do caminho e depois outra. Caminho onde nunca se vê nenhuma
mudança – ao contrário do mercador, que tão depressa vê um homem como
outro, ao contrário daquele que persegue pássaros ou peixes, que agora
vê capturados uns e depois outros, antes [acontece que cada um] se vê
sempre só a si mesmo. Caminho onde – ao contrário daquele que pretende
ganhar o favor dos homens (que às vezes ouve o louvor, outras vezes a
desaprovação, às vezes muitas vozes, outras, vozes isoladas) – se ouve
apenas uma única voz, perante cuja verdade quase se estremece, pois é
como se, uma vez ouvida, nunca mais se lhe escapasse, nem no tempo nem
na eternidade. Caminho onde, por assim dizer, nunca se adquire nada:
nem alcançar a meta, nem descarregar o fardo, nem a rica colheita, nem a
riqueza, nem a magnífica captura, nem a felicidade do filho, nem o
favor dos homens, nem o ter aproveitado a outros – antes se adquire
apenas a si mesmo (uma recompensa que é tão pobre que mesmo a criancinha
que morre no instante do nascimento aparentemente a possui). Caminho
onde nada se conquista que possa convidar os homens a compartilhá-lo
alegremente – porque apenas se adquire a si mesmo, isto é: que se está a
ser enganado, como de facto o mercador o seria, se ninguém viesse à
sua loja durante todo o dia e se lhe quisesse dizer "aprendeste a
paciência", ou como [o seria] o pescador que todo o dia tivesse estado à
pesca e nada apanhasse. Ou não será semelhante revolução no pensamento
e na linguagem algo mais estranho do que o mais estranho – que a vida
se transforme de tal modo para um homem que aquilo que é tangível,
aquilo que para ele era o mais certo de tudo, se torne duvidoso, e o
espiritual, que o enganava pela sua distância, se torne o mais certo,
infinitamente mais certo do que o tangível?
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* Soren Kierkegaard (Copenhague, 5 de Maio de 1813 — Copenhague, 11 de Novembro de 1855) foi um filósofo e teólogo dinamarquês.
In Adqurir a sua alma na paciência,. ed. Assírio & Alvim
Fonte: http://www.snpcultura.org/adquirir_a_sua_alma_na_paciencia.html 25.11.13
In Adqurir a sua alma na paciência,. ed. Assírio & Alvim
Fonte: http://www.snpcultura.org/adquirir_a_sua_alma_na_paciencia.html 25.11.13
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