Reinaldo José Lopes*
Como este blog já tentou explicar outras vezes, não é nada simples
determinar o que é fato histórico e o que é interpretação teológica nas
Escrituras judaico-cristãs (ou em qualquer obra da Antiguidade de modo
mais geral, claro). Essa tarefa exige uma atenção aos detalhes do texto e
à trama complicada de fontes e pontos de vista que levaram à sua
composição que uma leitura “inocente” simplesmente deixa passar. E isso
vale até para pormenores aparentemente bobos. Por exemplo: Jesus sabia
ler e escrever?
Muitos estudiosos tendem a achar que ele era analfabeto. Caí na
besteira de registrar essa opinião numa reportagem para a revista
“Galileu” certa vez e fui apedrejado por um leitor. “Então o Verbo de
Deus era analfabeto?”, vociferou ele. Não consegui entender muito bem a
indignação porque 1)o Verbo pode ser oral e não escrito, certo? e 2)Não
vejo por que quem escolheu nascer numa manjedoura não poderia ter
também escolhido, como outra marca de sua solidariedade para com os
menores entre nós, nascer analfabeto (usando o ponto de vista cristão,
claro). Mas isso é digressão. Vamos ao que interessa: como tentar tirar
essa dúvida usando as ferramentas da análise histórica?
Bom, primeiro tem sempre a questão da probabilidade. Artesãos e
camponeses de um vilarejo como Nazaré — tão insignificante que não é
mencionada em praticamente nenhuma fonte antiga fora do Novo Testamento
– em geral não tinham acesso a qualquer forma de educação. As
estimativas variam um pouco, mas como regra geral é possível afirmar que
menos de 10% dos habitantes do Império Romano sabiam ler e escrever no
século 1º a.C. — e Jesus certamente não estava entre os “10% de cima” do
ponto de vista econômico e social. Poderia ter sido uma exceção, mas as
probabilidades jogam contra.
“Mas espere”, dirá o leitor familiarizado com os Evangelhos. “Temos
mais de uma passagem descrevendo Jesus a ler e escrever no Novo
Testamento!”. Sim, temos, mas elas são problemáticas.
PALAVRAS NA AREIA
A primeira está no Evangelho de João (capítulo 8, versículo 6), na
famosa cena em que trazem uma mulher adúltera para ser apedrejada diante
de Jesus e ele usa a celebérrima frase “quem não tiver pecado que atire
a primeira pedra” pra salvar a pobre. Após ouvir os acusadores da
mulher, diz o evangelista, “Jesus, inclinando-se, escrevia na terra com o
dedo”.
Caso encerrado, certo? O problema é que a probabilidade de que esse
incidente remonte ao Jesus histórico é considerada baixa. Conforme
explica o padre e historiador americano John P. Meier em sua série de
livros “Um Judeu Marginal”: “Essa perícope [passagem bíblica] não existe
nos melhores e mais antigos manuscritos do Evangelho de João, aparece
em alguns manuscritos do Evangelho de Lucas [?!], quase não merece
comentário dos exegetas gregos do primeiro milênio, e é considerada por
alguns especialistas uma criação da Igreja do século 2º, envolvida numa
controvérsia sobre a misericórdia que se deveria ter para com os
pecadores”. Chato, né.
Falando em Evangelho de Lucas, outra passagem desse evangelista na
qual Jesus aparece lendo é igualmente suspeita do ponto de vista
histórico. No texto (capítulo 4, a partir do versículo 16), Jesus entra
na sinagoga de Nazaré e lê para os judeus reunidos no local uma passagem
do livro do profeta Isaías. O detalhe, porém, é que nenhum rolo
(lembre-se, naquele tempo os livros eram rolos) das profecias de Isaías
continha texto semelhante ao “lido” por Jesus: primeiro ele lê três
trechos do capítulo 61, depois salta para um versículo do capítulo 58 e
aí volta outro pedaço do capítulo 61. Não tem como ler um rolo de papiro
desse jeito.
Problema adicional de historicidade: no fim da cena, os moradores de
Nazaré, bravos com o que lhes parece ser a arrogância de seu
conterrâneo, planejam levar Jesus “para o alto da colina onde ficava a
cidade” e jogá-lo de lá de cima. Bem, na verdade a Nazaré da época
imperial ficava num vale, não no alto de um morro…
OK, esses são os argumentos contra Jesus ser alfabetizado. Como
argumentos a favor, Meier coloca o aparente conhecimento detalhado que
Jesus tinha das Escrituras judaicas — embora, em tese, isso também
pudesse ser conseguido por meio de instrução oral e assiduidade na
sinagoga, por exemplo.
Vejam bem: ninguém aqui está dizendo que os Evangelhos são
mentirosos. A questão é que, nesse tipo de texto, os fatos e a tradição
sobre Jesus são narrados a serviço de uma instrução religiosa das
comunidades cristãs. O objetivo é ensinar “quem” é Jesus — e não uma
transcrição taquigráfica do que aconteceu por volta do ano 30 d.C. Daí
porque é complicadíssimo, embora não impossível, usar esse tipo de texto
como fonte histórica.
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* Reinaldo José Lopes, 34, jornalista de ciência nascido e criado em São Carlos (SP), hoje colabora com a Folha
de sua cidade natal, depois de passar quase três anos como editor de
“Ciência+Saúde” na capital paulista. É formado em jornalismo pela USP e
mestre e doutor em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês pela
mesma universidade, com trabalhos sobre a obra de J.R.R. Tolkien. Sobre
evolução, já escreveu o livro “Além de Darwin” (editora Globo) e tem
planos de escrever vários outros. É católico, são-paulino, casado e pai
de um menino.
Fonte: Folha on line, acesso 06/11/2013
Este é um modo esquisito de fazer história. Adota-se uma tese segundo a qual um Personagem era analfabeto. Depois recusa-se...
ResponderExcluir(i) um texto que se refere a este Personagem como escrevendo na areia, sob a alegação de que tal documento é falso, simplesmente porque este detalhe não foi muito debatido pelos exegetas do século II, ou reabrindo a discussão sobre a autenticidade de cópias que já foram dadas como autênticas. Despreza-se o fato de tal detalhe não ter relação com os aspectos polêmicos das teologias conflitantes do período citado, não tendo porque ser debatido, o que explica a ausência de referências a tal fato nos debates.
Depois recusa-se uma fonte que diz que...
(ii) o citado Personagem debateu no templo, citando e manipulando livros sagrados. Argumenta-se que livros em formato de rolos não permitiriam uma série de citações com idas e vindas pelo livro (como é comum hoje em dia, nos debates teológicos). Despreza-se a consideração de que pessoas da época sabiam manipular rolos que as pessoa de hoje teriam dificuldade de manipular.
(iii) despreza-se, ainda, o fato do personagem conhecer e saber citar os livros, pela simples suspeita de o conhecimento pode ser adquirido pela oralidade (cultura de ouvido), embora a surpresa dos presentes, com a desenvoltura com que o Menino citava as escrituras sugira que crianças da época não tinham essa cultura de ouvido.
(iv) desconsidera-se, ainda, o fato de nas culturas marcadas por forte religiosidade, as pessoas não permanecem analfabetas. Todos os países protestantes erradicaram precocemente o analfabetismo, porque as pessoas aprendem a ler para ler a bíblia. Estatística (muito imprecisas e suspeitas) relativas ao império romano não podem ser esticadas para Israel. Os hebreus da época, como os crentes de hoje, aprendiam a ler para ler as escrituras. Os mestres eram pessoas que liam e ensinavam os conteúdos das escrituras. Porque só um personagem, sendo um mestre tão destacado, não saberia ler?
(v) Finalmente, se Jesus era ou não analfabeto é inteiramente irrelevante para o cristianismo. (1) A divindade de Jesus, (2) o sentido do Seu sacrifício como sendo uma remissão e remição das "ovelhas desgarradas", (3) o fato deste sacrifício ser suficiente (doutrina da salvação pela graçaou não é que são as questões relevantes e não sofrem nenhum efeito em face de um posível analfabetismo de Jesus.
Caso Ele fosse analfabeto a tese da Sua divindade estaria reforçada, afinal, um analfabeto criar uma doutrina que já dura mais de 2000 anos, ser seguido por pessoas que morriam por segui-lo etc etc, sem ter uma imprensa, um bando de intelectuais para promovê-lo, sem ter usado dinheiro público para fazer populismo é fenômeno mil vezes maior do que o que acontece com os mais festejados personagens de hoje.
Rui Martinho Rodrigues