JOÃO UBALDO RIBEIRO*
Sabemos todos que a História muda segundo quem a observa. Para os
contemporâneos dos fatos, a importância que lhes é dada frequentemente é
bem distinta da que terá dentro de poucas décadas. O que era invisível
aparece, o que não tinha importância a adquire, o que era básico se
torna acessório, quem era tratado como gênio ou esperança nem mais é
lembrado. E o anedotário de todos os povos armazena uma fartura de
previsões hoje estapafúrdias, vaticínios que se demonstraram asneiras
descomunais, afirmações definitivas cuja validade mal chegou a
aniversariar. Mas isto não impede que continue irresistível a tentação
de dar palpites sobre o chamado veredito da História, é uma espécie de
jogo que pode até ser divertido, assim para um domingo ocioso, sem nada
melhor para fazer.
Não creio que nós, os contemporâneos do mensalão, estejamos, no
geral, enganados quanto à importância histórica do julgamento. Até
apostas estão sendo resolvidas pelo Brasil afora, porque houve muitos
que empenharam um dinheirinho na convicção de que não viria cadeia para
nenhum dos réus engravatados e influentes. Nada realmente autorizava a
crer que fosse acontecer algo de muito diferente do que acontece desde o
tempo do Marquês de Pombal. Até alguns ministros do Supremo Tribunal
Federal eram, ou são, considerados comprometidos com o partido no poder e
muito se comentou que no caso do ministro Joaquim Barbosa, sua nomeação
foi tencionada para resultar no mesmo tipo, digamos, de apoio - só que,
neste caso, como dizia meu amigo Cuiuba, alguém tomaram um bonde
errado.
Em outros contextos, o assunto já estaria morrendo. O julgamento
engasgou bastante, rateou várias vezes e suscitou um número espantoso de
besteiras e bravatas, mas acabou chegando ao fim, depois de anos de
doloroso trabalho de parto. Pronto, assunto encerrado, sentenças em
cumprimento, está na hora de cuidar de outras coisas, nossos problemas
são bem mais graves e não cabe ficar falando mais em presidiários, já
acabou. Só que, como temos visto, não acabou. Os condenados, que
insistem em ser considerados presos políticos, também mobilizam apoio
para a tese de que são inocentes e vítimas de uma espécie de golpe e de
instituições que se perverteram para destruí-los.
Qualquer presidiário, em qualquer tempo e de qualquer natureza,
invariavelmente se declara inocente, direito garantido pela liberdade de
expressão. Mas a avaliação que os presos do mensalão fazem de seu papel
nesses acontecimentos para mim será inteiramente diversa, dentro de
pouco tempo. Eles de fato são, como quase chegam a pintar-se, mártires
da democracia - e eu acrescentaria do progresso -, mas não no sentido de
que foram atingidos por grupos (?) que manipularam as instituições
democráticas para levá-los ao cárcere, tratando-se, pois, de uma falsa
democracia, que precisa ser reformulada.
Eles são mártires da democracia, do progresso e - de novo faço um
acréscimo - da igualdade, porque, através de seu suplício, demonstra-se,
finalmente na prática e não no gogó - que figurão poderoso da elite
governante ou financeira também pode ir para a cadeia, banqueiro
importante também pode e pode até ser fugido do xadrez como qualquer
ladrão de galinha, mulher rica pode, deputado pode, qualquer um pode.
Este é um compromisso das instituições que agora ultrapassa o palavreado
gongórico das leis que exaltam a soberania popular, em direção à
realidade compreensível por qualquer um. Os governantes atualmente no
poder não deviam agir tão compungida ou petulantemente, diante do
cumprimento das sentenças; deviam vangloriar-se e mostrar ao mundo que
agem conforme o que professam.
São mártires da democracia, do progresso, da igualdade e - lá vai
novo acréscimo - da educação, porque, logo nos primeiros dias de cadeia,
provocaram esclarecimentos envolvendo direitos dos cidadãos. Tratados,
sem razão ou embasamento jurídico, de forma privilegiada em relação a
outros presos, na questão das visitas, logo tiveram de ingressar, por
pressão dos discriminados noticiada pela imprensa, no mesmo regime que
os demais. Outros privilégios foram, ou serão certamente coibidos.
Na
cadeia, o único doutor deve ser o diretor da enfermaria. Tudo
igualitário e educativo, exatamente o que eles sempre defenderam
politicamente, mas nunca conseguiram implantar pelos métodos que
tentaram, notadamente o de comprar adesões e agir como se a coisa
pública devesse ser de quem consegue gastar mais dinheiro - o que talvez
seja uma verdade cínica, mas deve ser rejeitada pela boa consciência e
não pode constituir a forma de agir do governante. Indo para a cadeia,
fizeram muito mais para a consecução dos ideais e objetivos proclamados
que quando em liberdade.
Através desse martírio, chama-se também a atenção para problemas
talvez menores, que de vez em quando ocupam um governante ou outro, mas
jamais de forma decisiva ou que leve a uma ação eficaz. Um deles é a
situação dos presídios e cadeias. Que vergonha seria para a famosa
imagem nacional, se aparecesse em alguma revista ou tevê americana um
ex-dignitário brasileiro confinado numa cela junto com mais oito
condenados, um cano de água fria saindo da parede, um vaso sem tampa e
demais componentes talvez da maior parte das celas brasileiras. O
espetáculo das duas senhoras condenadas expostas a vexames também é uma
visão vergonhosa, deprimente e lamentável. Sempre foi assim, mas não se
notava com muita clareza, cabendo aqui, mais uma vez, a venerável
observação de que no dos outros é refresco. Agora que o dos outros pode
vir a ser o nosso, teremos mudanças. Estes são os grandes legados dos
mártires, os que nosso futuro guardará. Se não guardar, vai dar-se mal.
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* Escritor. Jornalista
Fonte: Estadão on line, 24/11/2013
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