quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Pondé e o perigo da doutrinação nas escolas

 Paulo Ghiraldelli*

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Karl Marx era contrário ao ensino da filosofia e outras disciplinas de humanidades na escola básica. 
Sua justificativa era aquilo que nós, hoje, chamaríamos de “positivista”. Ele entendia que o ensino básico tinha de ensinar aquelas matérias menos sujeitas aos comprometimentos de interesses doutrinários, as ciências mais “neutras”.  

Marx nunca fez restrições ao ensino no âmbito universitário. Paradoxalmente, nessa sua época era comum a universidade ter um professor de filosofia capaz de ensinar antes de tudo o seu próprio sistema. Em sua época, o professor de filosofia universitário era, acima de tudo, um filósofo. Mas a universidade não se furtava em ter mais de um professor, garantindo assim uma pluralidade mínima de ideias.

Diferentemente de mim, meu amigo Luis Felipe Pondé é um marxista, ao menos quanto ao ensino. Pois no artigo “Eu acuso” (Folha de S. Paulo) ele reclama de um ensino em que o professor, como um juiz malandro, torce por um dos times em jogo e, descaradamente, começa a marcar pênalti “que não foi” a todo o momento. Só que nesse caso seria um juiz com poder supremo não só sobre o campo, mas sobre o estádio todo, podendo obrigar a torcida a se calar diante de suas manobras. Era isso que Marx temia!

A reclamação de Pondé não é só em relação ao ensino médio, mas também ao universitário e, para a surpresa dos leitores mais informados sobre educação, quanto ao ENEM. Pondé reclama de uma suposta coerção subjetiva que estaria havendo no Brasil todo. A nossa população jovem estaria sendo obrigada a fingir-se marxista para poder passar nas provas. Até para entrar na universidade, via ENEM, haveria a necessidade de se fingir marxista, dado que a prova estaria comprometida ideologicamente.

Não vou falar aqui do que Pondé disse do ENEM. Nesse comentário, ele realmente escorregou. Não checou, não leu o ENEM e falou. Aliás, quanto a esse último ENEM, a maioria dos especialistas foi unânime em dizer que se pareceu muito com o vestibular tradicional. Poucas questões deram margem a dúvidas a respeito do apontado no gabarito. E depois, sobre essa história de fingir-se marxista para ser aprovado nas escolas hoje … bem, nessa parte Pondé tropeçou. Vamos pular isso então.

Creio que Pondé caiu em uma armadilha que ele mesmo construiu. Penso que ele se informa sobre as salas de aula do país, e inclusive sobre educação em geral, pelo que escuta de alunos que se deixaram levar não pelo seu ensino, mas pelos seus exageros editoriais. Esse aluno que manda e-mail para o Pondé, reclamando do professor que ensina Marx, certamente é um aluno afinado com Pondé, todavia, afinado com os exageros e rompantes do meu amigo, que é um estilo de quem, por razões variadas, gosta de “jogar para a plateia”. O aluno que chama o Pondé é o tipo de aluno que, baseado nesses exageros, acaba não entendendo a diferença entre um clássico e qualquer outra obra. Revolta-se com o professor não por ser “perseguido”, mas porque não quer ler Marx. Acredita na lição meio que folclórica do próprio Pondé, de que tudo que vem “da esquerda” é utópico e que o que é utopia é ingenuidade que nos levará antes para o inferno que para o céu prometido. Ora, em um Brasil que está repetidamente nos últimos lugares dos exames internacionais, um lugar em que leitores da Folha de S. Paulo não conseguem distinguir que Antônio Prata fez um texto de ironia ao se dizer de direita, é bem possível que Pondé receba e-mails de jovens completamente despreparados para entender a importância da literatura marxista e da literatura com base marxista.

Isso ficou evidente em um e-mail publicado na imprensa recentemente, de um garoto que se dizia “liberal” e que, portanto, se acreditava no direito de não querer ler Marx na faculdade. Foi explicado para ele que Marx era um clássico. Foi explicado para ele o que é um clássico. Foi explicado para ele que um clássico nós levamos anos de estudos para começarmos a achar que podemos criticar. Mas ele não entendeu. Era mais cômodo para ele basear-se em jornalistas de direita, e talvez até subsumir Pondé nessa categoria, e então fugir de ter de enfrentar o calhamaço de O capital. Sabemos bem o quanto a mediocridade encontra razões nobres para se sustentar.

 

Isso quer dizer que a nossa universidade e o nosso ensino médio não tem professores cabeças de bagre que são marxistas antes por não terem lido outra coisa que Marx, e talvez nem Marx? Ora, eu conheço bem a universidade – aqui e no exterior. Há professores que são marxistas exatamente por nunca terem lido Marx, e que querem enfiar o marxismo vindo de “cartilha de partido” goela abaixo dos alunos. Mas, na universidade isso não se dá só com Marx, embora o marxismo ainda tenha lá seus fanáticos de carteirinha, cuja estupidez nos faz realmente sentir vergonha alheia. Toda faculdade tem professores que não entendem que aquilo que eles estudaram no mestrado e doutorado talvez não seja o que há de mais importante no mundo. Esses professores, não raro, dão aulas um tanto fanáticas a respeito do “seu assunto”.

Todavia, não estamos mais em uma época em que esse tipo de professor reina incólume. Aliás, estamos em uma época que nenhum professor reina, ao contrário, a maioria acaba cedendo a tudo que o aluno pede. Vivemos em uma situação deplorável do ponto de vista do respeito ao professor, tanto no ensino médio quanto na universidade. Há na mão do aluno um volume tão imenso de mecanismos contra o professor, hoje em dia, que chega até ser ridículo que alguém venha reclamar de estar sendo coibido ideologicamente em nossas escolas. Por muito menos os alunos recorrem a todo tipo de denúncia com respaldo legal, e talvez por isso mesmo muitos estejam saindo da escola do mesmo modo que entraram, ou seja, sem saber sequer distinguir que Marx faz parte, sim, da galeria de filósofos que, como Platão, é de conhecimento necessário.

Que fique claro: não adianta o aluno escrever na prova que ele não concorda com a “teoria da mais-valia de Marx”, e isso sem saber explicar tal teoria. Muitos alunos simplesmente acham que podem ser “críticos” se mantendo na ignorância do que criticam. Muitos desses alunos, contestados, não admitem ignorância, e escrevem para o Pondé. Acolher esse tipo de aluno vai levar o Pondé a ter uma legião de imbecis como leitores, ou melhor, seguidores. Leitores mesmo, esse pessoal não é.
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* Paulo Ghiraldelli, 56, filósofo, escritor, cartunista e professor da UFRRJ
Fonte:  http://ghiraldelli.pro.br/ponde-e-o-perigo-da-doutrinacao-nas-escolas/

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