Paulo Ghiraldelli*
Karl Marx era contrário ao ensino da filosofia e outras disciplinas de humanidades na escola básica.
Sua justificativa era aquilo que nós, hoje, chamaríamos de
“positivista”. Ele entendia que o ensino básico tinha de ensinar aquelas
matérias menos sujeitas aos comprometimentos de interesses
doutrinários, as ciências mais “neutras”.
Marx nunca fez restrições ao ensino no
âmbito universitário. Paradoxalmente, nessa sua época era comum a
universidade ter um professor de filosofia capaz de ensinar antes de
tudo o seu próprio sistema. Em sua época, o professor de filosofia
universitário era, acima de tudo, um filósofo. Mas a universidade não se
furtava em ter mais de um professor, garantindo assim uma pluralidade
mínima de ideias.
Diferentemente de mim, meu amigo Luis
Felipe Pondé é um marxista, ao menos quanto ao ensino. Pois no artigo
“Eu acuso” (Folha de S. Paulo) ele reclama de um ensino em que o
professor, como um juiz malandro, torce por um dos times em jogo e,
descaradamente, começa a marcar pênalti “que não foi” a todo o momento.
Só que nesse caso seria um juiz com poder supremo não só sobre o campo,
mas sobre o estádio todo, podendo obrigar a torcida a se calar diante de
suas manobras. Era isso que Marx temia!
A reclamação de Pondé não é só em
relação ao ensino médio, mas também ao universitário e, para a surpresa
dos leitores mais informados sobre educação, quanto ao ENEM. Pondé
reclama de uma suposta coerção subjetiva que estaria havendo no Brasil
todo. A nossa população jovem estaria sendo obrigada a fingir-se
marxista para poder passar nas provas. Até para entrar na universidade,
via ENEM, haveria a necessidade de se fingir marxista, dado que a prova
estaria comprometida ideologicamente.
Não vou falar aqui do que Pondé disse do
ENEM. Nesse comentário, ele realmente escorregou. Não checou, não leu o
ENEM e falou. Aliás, quanto a esse último ENEM, a maioria dos
especialistas foi unânime em dizer que se pareceu muito com o vestibular
tradicional. Poucas questões deram margem a dúvidas a respeito do
apontado no gabarito. E depois, sobre essa história de fingir-se
marxista para ser aprovado nas escolas hoje … bem, nessa parte Pondé
tropeçou. Vamos pular isso então.
Creio que Pondé caiu em uma armadilha
que ele mesmo construiu. Penso que ele se informa sobre as salas de aula
do país, e inclusive sobre educação em geral, pelo que escuta de alunos
que se deixaram levar não pelo seu ensino, mas pelos seus exageros
editoriais. Esse aluno que manda e-mail para o Pondé, reclamando do
professor que ensina Marx, certamente é um aluno afinado com Pondé,
todavia, afinado com os exageros e rompantes do meu amigo, que é um
estilo de quem, por razões variadas, gosta de “jogar para a plateia”. O
aluno que chama o Pondé é o tipo de aluno que, baseado nesses exageros,
acaba não entendendo a diferença entre um clássico e qualquer outra
obra. Revolta-se com o professor não por ser “perseguido”, mas porque
não quer ler Marx. Acredita na lição meio que folclórica do próprio
Pondé, de que tudo que vem “da esquerda” é utópico e que o que é utopia é
ingenuidade que nos levará antes para o inferno que para o céu
prometido. Ora, em um Brasil que está repetidamente nos últimos lugares
dos exames internacionais, um lugar em que leitores da Folha de S. Paulo
não conseguem distinguir que Antônio Prata fez um texto de ironia ao se
dizer de direita, é bem possível que Pondé receba e-mails de jovens
completamente despreparados para entender a importância da literatura
marxista e da literatura com base marxista.
Isso ficou evidente em um e-mail
publicado na imprensa recentemente, de um garoto que se dizia “liberal” e
que, portanto, se acreditava no direito de não querer ler Marx na
faculdade. Foi explicado para ele que Marx era um clássico. Foi
explicado para ele o que é um clássico. Foi explicado para ele que um
clássico nós levamos anos de estudos para começarmos a achar que podemos
criticar. Mas ele não entendeu. Era mais cômodo para ele basear-se em
jornalistas de direita, e talvez até subsumir Pondé nessa categoria, e
então fugir de ter de enfrentar o calhamaço de O capital. Sabemos bem o quanto a mediocridade encontra razões nobres para se sustentar.
Isso
quer dizer que a nossa universidade e o nosso ensino médio não tem
professores cabeças de bagre que são marxistas antes por não terem lido
outra coisa que Marx, e talvez nem Marx? Ora, eu conheço bem a
universidade – aqui e no exterior. Há professores que são marxistas
exatamente por nunca terem lido Marx, e que querem enfiar o marxismo
vindo de “cartilha de partido” goela abaixo dos alunos. Mas, na
universidade isso não se dá só com Marx, embora o marxismo ainda tenha
lá seus fanáticos de carteirinha, cuja estupidez nos faz realmente
sentir vergonha alheia. Toda faculdade tem professores que não entendem
que aquilo que eles estudaram no mestrado e doutorado talvez não seja o
que há de mais importante no mundo. Esses professores, não raro, dão
aulas um tanto fanáticas a respeito do “seu assunto”.
Todavia, não estamos mais em uma época
em que esse tipo de professor reina incólume. Aliás, estamos em uma
época que nenhum professor reina, ao contrário, a maioria acaba cedendo a
tudo que o aluno pede. Vivemos em uma situação deplorável do ponto de
vista do respeito ao professor, tanto no ensino médio quanto na
universidade. Há na mão do aluno um volume tão imenso de mecanismos
contra o professor, hoje em dia, que chega até ser ridículo que alguém
venha reclamar de estar sendo coibido ideologicamente em nossas escolas.
Por muito menos os alunos recorrem a todo tipo de denúncia com respaldo
legal, e talvez por isso mesmo muitos estejam saindo da escola do mesmo
modo que entraram, ou seja, sem saber sequer distinguir que Marx faz
parte, sim, da galeria de filósofos que, como Platão, é de conhecimento
necessário.
Que fique claro: não adianta o aluno
escrever na prova que ele não concorda com a “teoria da mais-valia de
Marx”, e isso sem saber explicar tal teoria. Muitos alunos simplesmente
acham que podem ser “críticos” se mantendo na ignorância do que
criticam. Muitos desses alunos, contestados, não admitem ignorância, e
escrevem para o Pondé. Acolher esse tipo de aluno vai levar o Pondé a
ter uma legião de imbecis como leitores, ou melhor, seguidores. Leitores
mesmo, esse pessoal não é.
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* Paulo Ghiraldelli, 56, filósofo, escritor, cartunista e professor da UFRRJ
Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/ponde-e-o-perigo-da-doutrinacao-nas-escolas/
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