Marcelo Coelho*
Um clássico rabugento, no filme 'Pedalando com Molière', aprende algumas lições da vida
Quando eu era criança, estranhava muito que a primavera, em São Paulo,
não correspondia nada ao que me ensinavam na escola e nos desenhos
animados.
Nenhum despertar da natureza, nenhum degelo, nenhuma floração. Só mais
tarde aprendi que, nesta cidade, quem procura as flores não deve olhar
para baixo, para os canteiros e jardins, mas para o alto: são as árvores
que se cobrem de rosa, de azul, de roxo, de vermelho.
Já é alguma coisa, embora um rabugento possa dizer que não há tantas árvores assim, e que nem todas acompanham a nova estação.
Menino rabugento, certamente eu era, e tinha outras reclamações. Ao
contrário de um lindo longa-metragem com Zé Colmeia e Catatau, onde nas
cenas iniciais o sol derretia os pingentes de neve da caverna, deixando
as primeiras gotas de água gelada caírem no focinho dos ursos
adormecidos, em São Paulo a primavera não era sinônimo de sol.
De fato. Nada mais incerto que estes dias de outubro e de novembro.
Domingo, um calor brutal dava por inaugurada a época das compras
natalinas e das férias; segunda-feira, vento e chuva, luzes de casa
acesas às quatro da tarde.
Será o nosso "microclima"? A palavra, com sua irritante dose de
pedantismo, volta e meia aparece no filme "Pedalando com Molière", de
Philippe Le Guay, atualmente em cartaz.
A história se passa num lugar turístico do noroeste da França, a ilha de
Ré, em pleno inverno. A estância balneária sofre com o frio da baixa
estação; mas o sol aparece às vezes. É o nosso microclima, explica um
motorista de táxi, numa tagarelice simpática que nem sempre associamos
ao temperamento francês.
"No fundo, apesar de toda a história
de refinamento,
mesuras, perucas e palácios, facilitou-me a vida pensar
que os franceses são na verdade perfeitos italianos,
explosivos e
sanguíneos, só que falando
a língua de Racine e Molière."
Os franceses, pelo menos os de Paris, tiveram fases de extrema
antipatia. Depois, parece que houve alguma campanha (hipnose? Alguma
substância no vinho de consumo ordinário?) e eles melhoraram.
Passei a entendê-los melhor quando percebi que não eram propriamente
ferozes, mas apenas... nervosinhos. No fundo, apesar de toda a história
de refinamento, mesuras, perucas e palácios, facilitou-me a vida pensar
que os franceses são na verdade perfeitos italianos, explosivos e
sanguíneos, só que falando a língua de Racine e Molière.
Voltando ao filme. O bonitão Lambert Wilson (Plástica? Botox? Depilação
de sobrancelhas?) faz o papel de um célebre ator de telenovelas. Vai
procurar, na fria cidadezinha à beira-mar, um amigo mais velho (Fabrice
Luchini, magistral), que por desgosto abandonou os palcos e sets de
filmagem.
O objetivo da visita é convencer o amigo, que deseja o isolamento
completo, a voltar para o teatro. Encenariam juntos "O Misantropo",
comédia a bem dizer sombria de Molière. Na peça, dois amigos debatem
visões distintas sobre a humanidade. Alceste, o rabugento, não vê nos
homens senão "injustiça, interesse, malícia e traição". Retira-se do
convívio dos semelhantes.
O outro, Philinte, pede a Alceste alguma ternura; seria insensato querer
a correção do mundo, e por excesso de lucidez se pode errar também. No
filme, Lambert Wilson sugere ao ator mais velho que, quando
representarem a peça, alternem os papéis. Numa semana Lambert seria o
inimigo dos homens, na outra o amigo complacente.
Não estrago nenhuma surpresa se disser que, enquanto ensaiam a peça, os
dois atores também terminarão trocando de atitudes. O bonitão da TV,
querendo ficar bem com todo mundo, agirá às vezes como o misantropo
Alceste. O veterano ator, desenganado e recluso, pode aos poucos
impregnar-se da bonomia de Philinte.
São tantas as reviravoltas, tão matemática, tão francesa, a engrenagem
do filme, que de dez em dez minutos o espectador tem de se readaptar às
mudanças do "microclima" entre os dois personagens.
Sol e chuva se alternam rapidamente, e a fotografia de "Pedalando com
Molière" não poderia ser mais poética. O ator velho, no começo, se faz
de rogado, diz que não está interessado em participar de nenhum novo
projeto.
Pela janela, contudo, passa um raio de sol, quase branco, e seu rosto se
ilumina. A psicologia dessa cena, convenhamos, é tão legível quanto a
de uma comédia clássica: Fulano diz não quando quer dizer sim.
Mas, do mesmo modo que a leitura da peça vai se refinando conforme a
dupla se aplica mais e mais aos seus ensaios, também o filme vai
revelando camadas e mais camadas nos sentimentos de seus personagens.
O rabugento tem e não tem razões para desconfiar do mundo. A realidade, a
vida, a solidão, a sorte ou o azar no amor não cessam de lhe trazer
novas lições; só um morto pode gabar-se de convicções definitivas, e,
como na primavera paulistana, não perde quem levanta os olhos um pouco
acima do chão.
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* Escritor. Jornalista. Colunista da Folha.
coelhofsp@uol.com.brFonte: Folha on line, 06/11/2013
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