quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Sol e chuva

Marcelo Coelho*
Um clássico rabugento, no filme 'Pedalando com Molière', aprende algumas lições da vida 

Quando eu era criança, estranhava muito que a primavera, em São Paulo, não correspondia nada ao que me ensinavam na escola e nos desenhos animados. 

Nenhum despertar da natureza, nenhum degelo, nenhuma floração. Só mais tarde aprendi que, nesta cidade, quem procura as flores não deve olhar para baixo, para os canteiros e jardins, mas para o alto: são as árvores que se cobrem de rosa, de azul, de roxo, de vermelho. 

Já é alguma coisa, embora um rabugento possa dizer que não há tantas árvores assim, e que nem todas acompanham a nova estação. 

Menino rabugento, certamente eu era, e tinha outras reclamações. Ao contrário de um lindo longa-metragem com Zé Colmeia e Catatau, onde nas cenas iniciais o sol derretia os pingentes de neve da caverna, deixando as primeiras gotas de água gelada caírem no focinho dos ursos adormecidos, em São Paulo a primavera não era sinônimo de sol. 

De fato. Nada mais incerto que estes dias de outubro e de novembro. Domingo, um calor brutal dava por inaugurada a época das compras natalinas e das férias; segunda-feira, vento e chuva, luzes de casa acesas às quatro da tarde. 

Será o nosso "microclima"? A palavra, com sua irritante dose de pedantismo, volta e meia aparece no filme "Pedalando com Molière", de Philippe Le Guay, atualmente em cartaz. 

A história se passa num lugar turístico do noroeste da França, a ilha de Ré, em pleno inverno. A estância balneária sofre com o frio da baixa estação; mas o sol aparece às vezes. É o nosso microclima, explica um motorista de táxi, numa tagarelice simpática que nem sempre associamos ao temperamento francês. 

 "No fundo, apesar de toda a história de refinamento, 
mesuras, perucas e palácios, facilitou-me a vida pensar 
 que os franceses são na verdade perfeitos italianos, 
explosivos e sanguíneos, só que falando 
a língua de Racine e Molière."

Os franceses, pelo menos os de Paris, tiveram fases de extrema antipatia. Depois, parece que houve alguma campanha (hipnose? Alguma substância no vinho de consumo ordinário?) e eles melhoraram.
Passei a entendê-los melhor quando percebi que não eram propriamente ferozes, mas apenas... nervosinhos. No fundo, apesar de toda a história de refinamento, mesuras, perucas e palácios, facilitou-me a vida pensar que os franceses são na verdade perfeitos italianos, explosivos e sanguíneos, só que falando a língua de Racine e Molière. 

Voltando ao filme. O bonitão Lambert Wilson (Plástica? Botox? Depilação de sobrancelhas?) faz o papel de um célebre ator de telenovelas. Vai procurar, na fria cidadezinha à beira-mar, um amigo mais velho (Fabrice Luchini, magistral), que por desgosto abandonou os palcos e sets de filmagem. 

O objetivo da visita é convencer o amigo, que deseja o isolamento completo, a voltar para o teatro. Encenariam juntos "O Misantropo", comédia a bem dizer sombria de Molière. Na peça, dois amigos debatem visões distintas sobre a humanidade. Alceste, o rabugento, não vê nos homens senão "injustiça, interesse, malícia e traição". Retira-se do convívio dos semelhantes. 

O outro, Philinte, pede a Alceste alguma ternura; seria insensato querer a correção do mundo, e por excesso de lucidez se pode errar também. No filme, Lambert Wilson sugere ao ator mais velho que, quando representarem a peça, alternem os papéis. Numa semana Lambert seria o inimigo dos homens, na outra o amigo complacente. 

Não estrago nenhuma surpresa se disser que, enquanto ensaiam a peça, os dois atores também terminarão trocando de atitudes. O bonitão da TV, querendo ficar bem com todo mundo, agirá às vezes como o misantropo Alceste. O veterano ator, desenganado e recluso, pode aos poucos impregnar-se da bonomia de Philinte. 

São tantas as reviravoltas, tão matemática, tão francesa, a engrenagem do filme, que de dez em dez minutos o espectador tem de se readaptar às mudanças do "microclima" entre os dois personagens. 

Sol e chuva se alternam rapidamente, e a fotografia de "Pedalando com Molière" não poderia ser mais poética. O ator velho, no começo, se faz de rogado, diz que não está interessado em participar de nenhum novo projeto. 

Pela janela, contudo, passa um raio de sol, quase branco, e seu rosto se ilumina. A psicologia dessa cena, convenhamos, é tão legível quanto a de uma comédia clássica: Fulano diz não quando quer dizer sim. 

Mas, do mesmo modo que a leitura da peça vai se refinando conforme a dupla se aplica mais e mais aos seus ensaios, também o filme vai revelando camadas e mais camadas nos sentimentos de seus personagens. 

O rabugento tem e não tem razões para desconfiar do mundo. A realidade, a vida, a solidão, a sorte ou o azar no amor não cessam de lhe trazer novas lições; só um morto pode gabar-se de convicções definitivas, e, como na primavera paulistana, não perde quem levanta os olhos um pouco acima do chão. 
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* Escritor. Jornalista. Colunista da Folha.
coelhofsp@uol.com.br
Fonte: Folha on line, 06/11/2013
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