Leonardo Boff*
“Gostaria de sugerir-vos a todos vós um medicamento – talvez alguns
pensem que o Papa agora é um farmacêutico -, um medicamento especial
para concretizar os frutos do Ano da Fé, que caminha para o fim: é um
medicamento de 59 grãos numa corda, um medicamento espiritual chamado
Misericordina” ( Papa Francisco - Oração do Angelus -17/11/2013)
Via de regra todos os operadores de saúde foram moldados pelo paradigma científico da modernidade que operou uma separação drástica entre corpo e mente e entre ser humano e natureza. Criou as muitas especialidades que tantos benefícios trouxeram para o diagnóstico das enfermidades e também para as formas de cura.
Reconhecido este mérito, não se pode esquecer que se perdeu a visão
de totalidade: o ser humano inserido no todo maior da sociedade, da
natureza e das energias cósmicas e a doença como uma fratura nesta
totalidade e a cura como uma reintegração nela.
Há uma instância em nós que responde pelo cultivo desta totalidade,
que zela pelo Eixo estruturador de nossa vida: é a dimensão do
espírito. De espírito vem espiritualidade. Espiritualidade é o cultivo
daquilo que é próprio do espírito que é sua capacidade de projetar
visões unificadoras, de relacionar tudo com tudo, de ligar e re-ligar
todas as coisas entre si e com a Fonte Originária de todo ser.
Se espírito é relação e vida, seu oposto não é matéria e corpo mas a
morte como ausência de relação. Nesta acepção, espiritualidade é toda
atitude e atividade que favorece a expansão da vida, a relação
consciente, a comunhão aberta, a subjetividade profunda e a
transcendência como modo de ser, sempre disposto a novas experiências e
a novos conhecimentos.
Neurobiólogos e estudiosos do cérebro identificaram a base biológica
da espiritualidade. Ela se situa no lobo frontal do cérebro. Verificaram
empiricamente que sempre que se captam os contextos mais globais ou
ocorre uma experiência significativa de totalidade ou também quando que
se abordam de forma existencial (não como objeto de estudo) realidades
últimas, carregadas de sentido e que produzem atitudes de veneração, de
devoção e de respeito, se verifica uma aceleração das vibrações em
hertz dos neurônios aí localizados. Chamaram a este fenômeno de “ponto
Deus” no cérebro ou da emergência da “mente mística”(Zohar, QS:
Inteligência espiritual, 2004). Trata-se de uma espécie de órgão
interior pelo qual se capta a presença do Inefável dentro da realidade.
Este fato constitui uma vantagem evolutiva do ser humano que,
enquanto homem-espírito, percebe a Realidade Fontal sustendando todas as
coisas. Dá-se conta de que pode, surpreendetemente, entabular um
diálogo e buscar uma comunhão íntima com ela. Tal possibilidade o
dignifica, pois o espiritualiza e o leva a graus mais altos de percepção
do Elo que liga e re-liga todas as coisas. Sente-se inserido no Todo.
Este “ponto Deus” se revela por valores intangíveis como mais
compaixão, mais solidariedade, mais sentido de respeito e de dignidade.
Despertar este “ponto Deus”, tirar as cinzas que uma cultura
demasiadamente racionalista e materialista o cobriu, é permitir que a
espiritualidade aflore na vida das pessoas.
No termo, espiritualidade não é pensar Deus mas sentir Deus mediante
este órgão interior e fazer a experiência de sua presença e atuação a
partir do coração. Ele é percebido como entusiasmo (em grego significa
ter um deus dentro) que nos toma e nos faz saudáveis e nos dá a vontade
de viver e de criar continuamente sentidos de existir.
Que importância emprestamos a esta dimensão espiritual no cuidado da
saúde e da doença? A espiritualidade possui uma força curativa própria.
Não se trata de forma nenhuma de algo mágico e esotérico. Trata-se de
potenciar aquelas energias que são próprias da dimensão espiritual tão
válidas como a inteligência, a libido, o poder, o afeto entre outras
dimensões do humano. Estas energias são altamente positivas como amar a
vida, abrir-se ao demais, estabelecer laços de fraternidade e de
solidariedade, ser capaz de perdão, de misericórida e de indignação face
às injustiças deste mundo como o faz exemplarmente o Papa Francisco.
Além de reconhecer todo o valor das terapias conhecidas existe ainda
um supplément d’ame como diriam os franceses. Ela quer sinalizar um
complemento daquilo que já existe mas que o reforça e enriquece com
fatores oriundos de outra fonte de cura. O modelo estabelecido de
medicina não detém, por certo, o monopólio do diagnóstico e da cura. É
aqui que encontra o seu lugar a espiritualidade.
A espiritualidade reforça na pessoa, em primeiro lugar, a confiança
nas energias regenerativas da vida, na competência do médico/a e no
cuidado diligente ou do enfermeiro/a. Sabemos pela psicologia do
profundo e da transpessoal, do valor terapêutico da confiança na
condução normal da vida. Confiar significa fundamentalmente afirmar: a
vida tem sentido, ela vale a pena, ela detém uma energia interna que a
autoalimenta, ela é preciosa. Essa confiança pertence a uma visão
espiritual do mundo.
Pertence à espiritualidade, a convicção de que a realidade que
captamos é maior do que as análises nos dizem. Podemos ter acesso a ela
pelos sentidos interiores, pela intuição e pelos secretos caminhos da
razão cordial. Percebe-se que há uma ordem subjacente à ordem sensível,
como o sustentava sempre o grande físico quântico, prêmio Nobel, David
Bohm, aluno predileto de Einstein.
Esta ordem subjacente responde pelas ordens visíveis e ela sempre
pode nos trazer surpresas. Não raro, os próprios médicos/as se
surpreendem, com a rapidez com que alguém se recupera ou mesmo como
situações, normalmente, dadas como irreversíveis, regridem e acabam
levando à cura. No fundo é crer que o invisível e o imponderável é
parte do visível e do previsível.
Pertence também ao mundo espiritual, a esperança imorredoura de que a
vida não termina na morte, mas se transfigura através dela. Nossos
sonhos de voltar à vida normal deslancham energias positivas que
contribuem na regeneração da vida enferma.
Força maior, entretanto, é a fé de sentir-se na palma da mão de
Deus. Entregar-se, confiadamente, à sua vontade, desejar ardentemente a
cura mas também acolher serenamente sua vontade de chamar-nos para si:
eis a presença da energia espiritual. Não morremos, Deus vem nos buscar
e nos levar para onde pertencemos desde sempre, para a sua Casa e para o
seu convívio. Tais convicções espirituais funcionam como fontes de água
viva, geradoras de cura e de potência de vida. É o fruto da
espiritualidade.
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* Leonardo Boff escreveu com Jean-Yves Leloup e outros, Espírito e Saúde, Vozes 2007.
Fonte: http://leonardoboff.wordpress.com/2013/11/16
Imagem da Internet
Pensamento do Papa, do Blog.
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