"Ser desconhecido é uma volúpia"
Entrevista indefinida publicada no extinto suplemento cultural Mais!, da Folha de São Paulo (12/02/1995)
Foi
assim que consegui resolver o meu problema e tudo isso foi necessário
para viver sem exercer uma profissão. Mas tudo isso acabou, os moços,
hoje, não têm mais essa possibilidade. Tem moços que vêm me visitar e
que me dizem que gostariam de viver como eu. Mas é tarde demais. Tudo
isso desapareceu, está acabado agora.
Pergunta - Mas o sr. continuou a trabalhar, a escrever ainda assim, o sr. publica bastante na Nouvelle Revue Française.
Cioran
- É verdade. Não se pode viver totalmente no paraíso —quer dizer, na
parasitagem. Eu compreendi que era preciso escrever e isso certamente
correspondia a uma necessidade. Assim, publiquei meu primeiro livro em
francês, Précis de Décomposition (Breviário de Decomposição).
Depois
disso, tinha algumas vagas intenções e já me perguntava na época por
que multiplicar livros. Por quê? De todo modo, das pessoas só restam
algumas frases, não é? Mas é preciso dizer ainda que os dias são longos
demais, e depois havia certamente também uma forma de vitalidade em
jogo, uma necessidade de manifestação. Fui totalmente desconhecido por
30 anos, meus livros não tinham a menor saída. Eu aceitei muito bem essa
condição e ela correspondia também à minha visão das coisas, até o
momento em que vieram os livros de bolso. Acho que essa é a única
maneira de tocar de verdade os leitores que se interessam por você.
E
depois é o mecanismo de toda carreira literária; mas os únicos anos
importantes são os de anonimato. Ser desconhecido é uma volúpia; tem
lados amargos às vezes, mas é um estado extraordinário. Durante anos,
fui apresentado nos salões —porque teve um tempo em que gostava de beber
uísque e, como não podia comprar, ia às recepções— como o amigo de
Ionesco e de Beckett. Aceitava muito bem essa condição. Por que não? Por
que ser conhecido?
Pergunta - Por que resolveu de repente escrever em francês?
Cioran
- Eu tinha tomado a decisão de não voltar mais para a Romênia. Para
mim, estava acabado, tudo isso, na verdade, me parecia fazer parte do
passado, no sentido absoluto do termo. Eu estava num lugar perto de
Dieppe, no litoral, em 1936, e tentava traduzir Mallarmé para o romeno.
E, de repente, disse para mim mesmo: Não tenho o menor dom para isso, e
foi subitamente que tomei a decisão de escrever em francês.
Até
então, curiosamente, eu tinha negligenciado o francês, enquanto que
estudava bastante o inglês, cheguei até a seguir o curso para a agrégation
na Sorbonne. A decisão de escrever em francês —decisão tomada num
minuto— revelou-se muito mais difícil de realizar do que eu pensava. Foi
realmente um suplício. Escrevi quatro vezes meu primeiro livro, o que
me deu até enjôo de escrever. Depois de escrever o Breviário de Decomposição, me dizia portanto que não valia a pena continuar a me atormentar. Publiquei os Silogismos da Amargura por cansaço. Não vale a pena fazer frases etc.
Depois, o processo continuou, apesar de tudo, e é preciso dizer também que Jean Paulhan me pedia o tempo todo para colaborar na Nouvelle Revue Française.
Eu prometia, para depois me arrepender, depois queria cumprir minha
promessa e foi assim que entrei numa espécie de engrenagem. Aceitava
perfeitamente ficar na periferia.
Era
totalmente desconhecido, mas isso não tem nada de desagradável, no fim
das contas. São esses os anos de vida de um escritor, o escritor sem
leitor —que conhece algumas pessoas e mais nada; isso tem lados
desagradáveis no plano prático, mas é a época da verdadeira escritura,
porque você tem a impressão de escrever para você mesmo.
Pergunta - Houve também uma motivação política que o levou a se desligar do romeno, da Romênia?
Cioran
- O que é que eu vou fazer com o meu romeno em Paris? Eu tinha rompido
com a Romênia: ela não existia mais para mim. Eu tinha prometido, na
Romênia, que faria uma tese —coisa que nunca fiz. De todo modo, a
Romênia para mim só representava o passado. Então para que escrever em
romeno? E para quem?
E
depois, o que eu escrevia nunca teria sido aceito pelo regime. Hoje
eles aceitam os meus escritos e publicam o tempo todo meus artigos nas
revistas.
Pergunta - É verdade que o sr. foi aberta e fanaticamente antidemocrata no fim dos anos 40?
Cioran
- Sabe, a democracia na Romênia não era uma verdadeira democracia. Eu
era antidemocrata porque a democracia não sabia se defender. Ataquei a
democracia por causa da sua debilidade. Era um regime que não tinha
instinto de conservação. E eu ataquei alguém por quem tinha a maior
estima, Juliu Maniu, o chefe dos democratas romanos. Escrevi um artigo
em que dizia que Maniu, que é o maior democrata do mundo, devia ter sido
chefe de partido na Suécia, no país dos nórdicos. Mas não num país como
a Romênia.
A democracia tem que se defender com todos os métodos e dar provas de vitalidade. Mas Maniu só lutava com conceitos puros e esses conceitos não têm nenhuma chance nos Balcãs. A democracia foi realmente deficiente na Romênia, não esteve à altura da situação histórica. Não se pode seguir gente assim, é a utopia encarnada nos Balcãs, não é possível. Houve democracia na Romênia, o partido liberal de Maniu, mas nas situações difíceis esse tipo de partido não aguenta, eles foram completamente ultrapassados pela história.
A democracia tem que se defender com todos os métodos e dar provas de vitalidade. Mas Maniu só lutava com conceitos puros e esses conceitos não têm nenhuma chance nos Balcãs. A democracia foi realmente deficiente na Romênia, não esteve à altura da situação histórica. Não se pode seguir gente assim, é a utopia encarnada nos Balcãs, não é possível. Houve democracia na Romênia, o partido liberal de Maniu, mas nas situações difíceis esse tipo de partido não aguenta, eles foram completamente ultrapassados pela história.
Pergunta - E a democracia ocidental?
Cioran
- Há um certo automatismo no Ocidente, seja como for, porque a
democracia nasceu aqui, ela pode sobreviver a si mesma. Mas pode
desmoronar, nunca se sabe. O drama do liberalismo e da democracia é que
nos momentos graves eles estão perdidos! Já se viu isso. A carreira de
Hitler é o resultado da fraqueza democrática. A sua história é muito
simples.
Pergunta - Qual é a ponte no seu pensamento entre o indivíduo e a história?
Cioran
- Ela se fixa muito mal, pelo mal-estar. Não há ponte e o mal-estar se
torna a solução. Temos que ser lúcidos como indivíduos sabendo, ao mesmo
tempo, que o excesso de lucidez torna a vida insuportável. A vida só é
suportável se não formos às últimas consequências.
Pergunta
- Isso é o pensamento indiano que penetrou, para dizer assim, a sua
obra? É o sr., de que o sr. fala sempre? Isso marca uma renúncia com
relação à lucidez e à nostalgia de uma filosofia adormecida?
Cioran
- Eu estou além disso também, mas o budismo desempenhou, realmente, há
uns dez anos, um papel muito importante para mim. Eu sempre fui um pouco
budista, se é possível ser um pouco. Para lhe dizer a verdade: se
tivesse escolha, se pudesse optar por uma religião entre todas, seria
budista. Deixando de lado alguns pontos, o budismo me parece aceitável e
até confortável.
Pergunta - Mas é possível escolher lucidamente uma religião?
Cioran
- É por afinidade secreta, apesar de tudo, que essa escolha é feita; há
pontos muito precisos como a visão do sofrimento, que eu aceito; mas a
transmigração ou outros aspectos do budismo, como aceitá-los?
É
preciso pertencer a uma tradição para poder subscrever esse tipo de
coisa, é preciso partilhar de um certo tipo de pensamento, de concepção
do mundo. Como acreditar na metempsicose, nas etapas da vida, por
exemplo? Os dogmas não são aceitáveis, mas o espírito é, perfeitamente.
Tudo o que o budismo constata sobre o sofrimento, sobre a morte etc., é
aceitável, o lado negativo. E foi esse lado que levou Buda a deixar o
mundo.
E depois disso, é a religião que demanda menos fé. O cristianismo e o judaísmo exigem coisas muito precisas e se você se recusa a acreditar nelas está perdido, acabou; o budismo não, aceita compromissos. As razões que levaram Buda a deixar o mundo, podemos aceitá-las sem dificuldade, com a condição de ter a coragem de ir às últimas consequências. O budismo não lhe pede nenhum voto, nenhum reconhecimento, e é por isso que ele está a ponto de ultrapassar o cristianismo.
E depois disso, é a religião que demanda menos fé. O cristianismo e o judaísmo exigem coisas muito precisas e se você se recusa a acreditar nelas está perdido, acabou; o budismo não, aceita compromissos. As razões que levaram Buda a deixar o mundo, podemos aceitá-las sem dificuldade, com a condição de ter a coragem de ir às últimas consequências. O budismo não lhe pede nenhum voto, nenhum reconhecimento, e é por isso que ele está a ponto de ultrapassar o cristianismo.
Pergunta - O sr. ainda passeia muito?
Cioran - Sim, claro.
Pergunta - E vai sempre aos cemitérios?
Cioran
- Não só aos cemitérios. Eu tenho, é verdade, um fraco por cemitérios;
mas hoje em dia os cemitérios não são mais bonitos, estão
sobrecarregados. Quando vejo amigos, mas também desconhecidos passarem
por momentos de abatimento, de desespero, só tenho um conselho a dar:
Passe 20 minutos num cemitério, vai ver que a sua tristeza não vai
desaparecer, mas vai ser quase superada.
Outro
dia, encontrei uma moça que eu conheço, desesperada por causa de um
problema amoroso, e lhe disse: Você não está muito longe de
Montparnasse, vá lá, passe por ali meia hora, vai ver que a sua tristeza
lhe parecer tolerável.
É
muito melhor do que ir no médico. Um passeio no cemitério é uma lição
de sabedoria quase automática. Eu mesmo sempre pratiquei esse tipo de
método; não parece muito sério, mas é relativamente eficaz. O que é que
você vai dizer a alguém que está num desespero profundo? Nada ou mais ou
menos nada. A única maneira de suportar realmente esse tipo de vazio é
ter consciência do nada. Sem isso, a vida não é suportável.
Se você tem consciência do nada, tudo o que lhe acontece é de proporção normal e não assume as proporções dementes que caracterizam o exagero do desespero.
Se você tem consciência do nada, tudo o que lhe acontece é de proporção normal e não assume as proporções dementes que caracterizam o exagero do desespero.
Pergunta - É uma espécie de solução catártica que o sr. está recomendando?
Cioran
- Certamente. Precisamos ver o que somos. Eu conheci, por exemplo,
muitos jovens escritores que queriam se suicidar por não ter sucesso, o
que eu compreendo, a rigor. Mas é muito difícil acalmar alguém que
chegou nesse ponto. O que é terrível na vida é o fracasso, e isso
acontece com todo mundo...
Pergunta - Mas se tira alguma coisa do fracasso? Quando se sobrevive...
Cioran
- - É uma lição extraordinária; mas tem muita gente que não a suporta, e
isso em todos os níveis, empregados e gente importante. No fim das
contas, a experiência da vida é o fracasso.
São
principalmente os ambiciosos, os que fazem um plano de vida que ficam
tocados, os que pensam no futuro. É por isso que eu mando as pessoas
para o cemitério. É a única maneira de minimizar uma situação trágica.
Pergunta - O sr. disse que agora não escreve mais. Acha que isso vai durar?
Cioran
- Eu não sei de nada, mas é muito possível que não escreva mais. Tenho
horror de ver todos esses livros que saem... esses autores que publicam
pelo menos um livro por ano... é doentio. Eu acho que não se deve
escrever mais, que é preciso saber renunciar.
Hoje isso já não me diverte mais, num certo sentido. É preciso um mínimo de entusiasmo, é preciso que haja uma expectativa. E depois eu me digo que já chega de imprecar contra o mundo e contra Deus, não vale a pena...
Hoje isso já não me diverte mais, num certo sentido. É preciso um mínimo de entusiasmo, é preciso que haja uma expectativa. E depois eu me digo que já chega de imprecar contra o mundo e contra Deus, não vale a pena...
Pergunta - Mas, em pensamento, o sr. continua a imprecar?
Cioran
- Forçosamente. Há uma espécie de resignação que é o fruto da idade e o
cansaço é agora um estado muito real que é preciso levar em conta.
Podemos sempre escrever e dizer tudo, mas se esse ato não corresponde
mais a uma necessidade interior, não passa de literatura.
E
isso é o que eu não quero, talvez porque sempre acreditei —é o meu lado
ingênuo— no que escrevia. Isso não é bom, vai mesmo contra a minha
visão das coisas, mas tanto pior! É evidente que, se temos consciência
do nada, é absurdo escrever um livro, é até ridículo. Por que escrever e
para quem? Mas há necessidades interiores que escapam a essa visão,
elas são de outra natureza, mais íntimas e mais misteriosas,
irracionais; levada ao extremo, a consciência do nada não é compatível
com coisa nenhuma, com gesto algum; a idéia de fidelidade, de
autenticidade etc, tudo desaparece.
Mas,
ainda assim, existe essa vitalidade misteriosa que o leva a fazer
alguma coisa. E talvez, no fundo, a vida seja isso: fazemos coisas às
quais aderimos sem acreditar —é, é mais ou menos isso...
Tradução de LEDA TENÓRIO DA MOTA
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Fonte: http://emcioranbr.wordpress.com/2013/11/27/insonia-da-razao-mais/
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