Luiz Felipe Pondé*
Somos seres do desejo, e não de razão. Devoramos tudo em consequência do desejo irracional
Depois de ler sobre pré-história, minha percepção do mundo mudou. Para
começo de conversa, o tema da violência na condição humana é melhor
compreendido quando olhamos para nossos ancestrais do Paleolítico
Superior do que quando tentamos compreendê-lo a partir de ideias como "o
modelo social está ultrapassado", apesar de saber que frases como essa
dão orgasmo em muita gente.
Somos seres do desejo, e não de razão. Com isso não quero dizer que não
sejamos racionais, mas sim que o desejo se impõe à razão. Freud e Lacan
bem sabem disso. Schopenhauer e Nietzsche também sabem isso. Devoramos
tudo à nossa volta por conta dessa força irracional chamada desejo.
O cineasta Stanley Kubrick (que aliás está "nos visitando" no Museu da
Imagem e do Som, o MIS) entendeu bem esse aspecto: é na pré-história e
no desejo que melhor entendemos nossa desorganização interna, nossas
contradições e a luta que temos cotidianamente contra elas. Refiro-me a
dois dos seus filmes, "2001, Uma Odisseia no Espaço", de 1968, e "De
Olhos Bem Fechados", de 1999.
O primeiro se abre com o momento descrito como "aurora". Nessa
sequência, dois bandos de homens pré-históricos disputam a posse de um
pequeno lago. O mais fraco perde. Depois, acuados, comem ervas embaixo
de uma pedra, atormentados por predadores à noite.
Um deles, na manhã seguinte, descobre que, tendo um osso nas mãos,
consegue ficar mais forte. Matam um animal grande e "se tornam"
carnívoros (o vegetarianismo é um comportamento ultrapassado
evolucionariamente).
Mais tarde, munidos de ossos nas mãos, atacam o bando que os haviam
expulsado do lago. O "novo homem", com uma arma na mão, retoma o lago.
Na cena seguinte, joga o osso para cima e este vira uma nave espacial.
Chegamos ao futuro da pré-história.
Já na última parte do filme, vemos o primeiro computador com
inteligência artificial se "revoltar" contra os dois astronautas da
nave. O que o filme nos revela? Que o "avanço técnico" seguramente está
associado à violência.
Isso não significa que seja "bonito". Hoje em dia, por causa do modo
como se dá o debate público, baseado em caricaturas do outro, difamação e
simplificação ridícula (tipo: quem não pensa como eu é racista,
"sequicista" e a favor da TFP), torna-se necessário fazermos reparos
como esse: reconhecer a relação de implicação entre melhoria material da
vida, avanço cultural e uma dose de violência não significa achar isso
bonito, mas sim reconhecer o grau de ambivalência que marca nossa
condição. Mas, num mundo de mimados, como é o nosso, dizer isso parece
ser "gostar" disso.
O que Kubrick está dizendo aqui é que provavelmente nossa história de
ganhos técnicos implica um alto grau de risco. O problema é que queremos
os ganhos, mas, no mundo da carochinha, no qual vivem os mimados,
parece ser possível zerar a ambivalência. Nada disso quer dizer que
devemos cultivar a violência, mas que não adianta pintar sua cara com
cores de anjo porque só vai convencer gente boba.
No outro filme, "De Olhos Bem Fechados", Kubrick dialoga profundamente
com Freud. O filme é baseado, em última instância, num sonho de Freud no
qual ele entra num trem e um aviso diz que ali só permanecem pessoas de
olhos bem fechados.
O sonho está dentro do processo de "autoanálise" de Freud, no qual ele
descobre o complexo de Édipo e sua vergonha pelo fato de o pai não ter
reagido a uma humilhação feita por um grupo de antissemitas testemunhada
pelo menino Sigmund. O tema envolve a ambivalência dos sentimentos e
desejos da criança para com os pais.
No filme, a mulher (a deusa Nicole Kidman) conta para o marido (Tom
Cruise) que um dia desejou fazer sexo violento com um oficial da Marinha
que ela tinha visto num hotel quando eles estavam num momento "família"
(quis ser a "puta" dele). Com isso, ela joga o marido num total
desespero, que só se encerra quando ela o chama para trepar ("let's
fuck").
O desejo da bela e bem comportada mulher revela ao marido que nem ela
escapa da desorganização do desejo sexual "ilegítimo". A vida ordenada
está sempre por um triz.
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* Filósofo. Escritor. Prof. Universitário
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