sábado, 2 de novembro de 2013

A APARÊNCIA QUE TEMOS

 J. J. Camargo*
 
O entendimento de que a autoestima faz parte obrigatória do conceito global de saúde é relativamente recente. Até o final dos anos 1980 era frequente que pessoas jovens, portadoras, por exemplo, de defeitos congênitos da parede torácica fossem vasculhadas em busca de eventuais disfunções cardíacas ou pulmonares e, não as encontrando, como ocorria na maioria dos casos, esses jovens eram no máximo encaminhados para algum tipo de exercício físico que pudesse, supostamente, ajudá-los. Era de se ver o desespero com que recebiam a notícia de que eram “sadios” e que não havia com que se preocupar. Incrível que se pudesse ignorar o quanto estavam doentes estes jovens que faziam de tudo para evitar qualquer tipo de exposição física, odiavam a ideia de ir à praia, tinham aversão a tardes na piscina e que, frequentemente, protelavam a iniciação sexual.

O entendimento de que qualquer peculiaridade física que fizesse o portador se sentir diminuído aos olhos dos seus pares devia ser tratada como doença significou uma grande virada conceitual e passou a reger os procedimentos, cirúrgicos ou não, que pudessem restabelecer o equilíbrio emocional que depende, criticamente, não apenas de como somos, mas de como nos sentimos ser.

Convivi com os extremos onde transitavam jovens com defeitos leves que atribuíam toda a infelicidade a deformidades quase imperceptíveis e outros, com malformações grotescas, que se serviam delas para diversão, como um jovem que confessou que sabia que tinha agradado quando a namorada colocava champanha na depressão do esterno, para comemorar, depois de uma gincana sexual.

A avaliação psicológica desses pacientes é indispensável para entender o real significado da condição e, principalmente, identificar aqueles que nutrem, em relação ao resultado estético, fantasias inalcançáveis.

Um dos erros médicos mais frequentes é tentar convencer um jovem que venceu a barreira da marcação da consulta e assumiu, perante sua família, o seu nível de sofrimento de que a correção não vale a pena, ou que a relação benefício/custo não compensa. Esse descompasso grosseiro entre o que o paciente sente e o que o médico tenta racionalizar implode a relação e, com certeza, outro profissional será procurado.

No início dos anos 1980, os cirurgiões torácicos operavam doenças, não aparências anatômicas insatisfatórias. O Julio Cesar tinha 17 anos na época e foi uma das vítimas deste conceito retrógrado. Depois de receber a notícia de que todos os exames de função pulmonar e cardíaca eram normais e que, portanto, nenhuma cirurgia se justificava, desceu as escadas e, pendurado num orelhão, aos prantos, contou para a mãe que nós não queríamos tratá-lo e que não sabia o que seria da vida dele.

De passagem, ouvi este trecho da conversa, tomei-o pelo braço e voltamos. Naquele dia aprendi, e definitivamente, que o prefixo de infelicidade pode ser uma boa indicação cirúrgica.
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* Médico
Fonte: ZH on line, 02/11/2013
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