NARRATIVA TRANS-HISTÓRICA
Professor antecipa tom de encontro na UFRGS que discutirá origens, desenvolvimento e apropriações da ferramenta cultural usada desde a Antiguidade para interpretar o poder, suas imagens e ideologias
O mito
do herói é a mais poderosa ferramenta cultural produzida na Antiguidade
para a interpretação do poder, suas imagens e ideologias. É também
estrutura de narrativa trans-histórica, presente em geografias
aparentemente desconectadas, entre Oriente e Ocidente, relevante em
todas as culturas e etnias conhecidas. Atualizado como linguagem, o mito
do herói é assunto perene das artes, da mais antiga épica, de
Gilgamesh, entre sumérios do terceiro milênio a.C., ao Mediterrâneo,
dali à espiral grega e desta a todas as vertentes e gêneros artísticos,
inclusive cinema e comics. Entre a ciência política e o marketing, o
mito do herói subsidia artimanhas de vendilhões inescrupulosos, por
vezes combinado com sua variante hebraica, o messianismo. O nome de um
herói, Édipo, funda a psicanálise de Freud e a antropologia estrutural
de Lévi-Strauss; o nome de outro, Ajax, ajuda na limpeza doméstica. A
montaria heroica, herdada de Marco Aurélio, serve a caudilhos de todo o
mundo, e enfeita o encontro entre as avenidas
Azenha e João Pessoa, em Porto Alegre.
A palavra “herói” é nossa versão para uma cultura plenamente helênica. Em Os Trabalhos e os Dias, Hesíodo (séc. VII a.C.) acrescenta a idade dos heróis na cronologia das 4 eras metálicas, entre os homens da idade de bronze e os da era de ferro, em que o aedo lastimava viver. Os heróis de Homero, assim, ganhavam um elo histórico, podendo integrar a linhagem das casas da Grécia arcaica e clássica. É assim que o herói chega à tragédia grega, no século 5 a.C., e é escrutinado por Ésquilo, Sófocles e Eurípides com os olhos de uma polis que se moderniza e redimensiona seus modelos. A tragédia grega examina heróis e, surpreendentemente, heroínas, como Antígona, Clitemnestra, Electra e Medeia, estranhas mulheres poderosas em um cultura falocrática. A tragédia, ademais, deixa clara a perspectiva com que a democracia deve ver a liderança heroica: tipos desmesurados, problemáticos, ameaçadores. A polis isonômica se fez herdeira do cinismo de filósofos e poetas arcaicos, como aquele proto-macunaíma, Arquíloco de Paros (c. 680-645 a.C.), sempre pronto a ironizar as figuras pretensiosas dos heróis homéricos, aparentados dos aristocratas com quem esse mercenário independente tinha que lidar. Vem daí um conveniente cinismo contra as lideranças: se acham...
A tragédia é também expressiva de uma moralidade cultural que evolui na idade arcaica (séculos 7-6 a.C.), a síndrome trágica, central na cultura grega. A personalidade poderosa, levada a uma situação de opulência e saciedade, ambiciona além de sua medida, age com arrogância e, neste momento transgride (hybris), invade seara divina e se expõe à vindicta, encaminhando-se um destino de erros, punições e catástrofes, por fim, a queda: exílio ou morte. Esta síndrome trágica faz na Grécia antiga, e faz no Brasil atual, com que se espere ou até mesmo se comemore a queda de personagens do poder, sobretudo aqueles que em algum momento abusaram do poder. Tal moralidade trágica foi emprestada também à visão da história, e faz com que muitos ainda estejam esperando ou até já comemorando a queda dos EUA, seguindo a lógica trágica com que Tucídides leu a queda de Atenas. Neste caso, a personalidade e o destino heroico servem de modelo dramatúrgico para o destino histórico.
Na Grécia antiga, o culto heroico era um dos três grandes campos da religiosidade, junto com a piedade olímpica e os mistérios. Os ancestrais, cercados de mitos e ritos, eram fonte de um poder protetor ou ameaçador sobre o território em que estavam sepultados. Recebiam, por isso, devoção temerosa, homenageados com o sacrifício de reses anegradas, ao entardecer, em um banquete invertido, em que se comiam as entranhas. Os cultos a ancestrais alimentavam a autoridade patriarcal e sua forma de família e de Estado. O culto heroico reaparece no drama local na imaginação transplantada de Augusto Comte, pródiga na celebração de guias da humanidade, e logo na ambição de perenidade e glória de próceres como Julio de Castilhos e Israel Pinheiro Machado; suas tumbas, no Cemitério da Santa Casa, ostentam piras funerárias similares àquelas que ornamentam as guardas da Ponte da Azenha, símbolos de uma façanha heroica ali havida, a batalha de 20 de setembro de 1835.
No humanismo contemporâneo, analisa-se vasta quantidade de material cultural contendo o mito do herói, de sagas antigas e medievais aos variados folclores modernos. As tentativas de síntese começam com Von Hahn (1871) e se arrematam com a descrição enumerada do padrão heroico por Lord Raglan, em The Hero, A Study in Tradition, Myth and Drama (1936):
1) A mãe do herói é uma virgem de sangue real;
2) Seu pai era um rei;
3) Fruto de um amor incestuoso ou ilegal;
4) As circunstâncias de sua concepção são incomuns;
5) Ele é também considerado filho de um deus;
6) Ao nascer ocorre um atentado contra a sua vida, geralmente cometido por um membro da família, ou por sua ordem;
7) Ele é salvo e levado embora;
8) Criado por pais adotivos em um lugar distante;
9) Quase nada sabemos de sua infância;
10) Ao se fazer homem, ele volta (ou vai) para o seu futuro reino;
11) Depois de vitória sobre o rei e/ou sobre um gigante ou dragão ou fera...
12) Ele se casa com uma princesa, que pode ser filha/parente do seu predecessor;
13) E se torna rei;
14) Por algum tempo, reina pacificamente.
15) Promulga leis;
16. Porém, perde o favor dos deuses ou de seus súditos;
17) Após o que é retirado do trono e do reino.
18) Sua morte é misteriosa;
19) Comumente no topo de uma montanha;
20) Seus filhos, se os tem, não o sucedem;
21) Seu corpo não é enterrado;
22) Mesmo assim ele tem um ou mais sepulcros.
Segue-se escore em que triunfam
Édipo e Krishna (21)
seguidos de Moisés e Teseu (20) e,
em terceiro, Artur, Dioniso e Jesus (19);
Harry Potter, 8 pontos.
Se uma personagem faz mais de 6 pontos, é provável que seja uma ficção estruturada como narrativa heroica por suas comunidades de autores, editores e leitores.
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POR FRANCISCO MARSHALL HISTORIADOR E ARQUEÓLOGO
A palavra “herói” é nossa versão para uma cultura plenamente helênica. Em Os Trabalhos e os Dias, Hesíodo (séc. VII a.C.) acrescenta a idade dos heróis na cronologia das 4 eras metálicas, entre os homens da idade de bronze e os da era de ferro, em que o aedo lastimava viver. Os heróis de Homero, assim, ganhavam um elo histórico, podendo integrar a linhagem das casas da Grécia arcaica e clássica. É assim que o herói chega à tragédia grega, no século 5 a.C., e é escrutinado por Ésquilo, Sófocles e Eurípides com os olhos de uma polis que se moderniza e redimensiona seus modelos. A tragédia grega examina heróis e, surpreendentemente, heroínas, como Antígona, Clitemnestra, Electra e Medeia, estranhas mulheres poderosas em um cultura falocrática. A tragédia, ademais, deixa clara a perspectiva com que a democracia deve ver a liderança heroica: tipos desmesurados, problemáticos, ameaçadores. A polis isonômica se fez herdeira do cinismo de filósofos e poetas arcaicos, como aquele proto-macunaíma, Arquíloco de Paros (c. 680-645 a.C.), sempre pronto a ironizar as figuras pretensiosas dos heróis homéricos, aparentados dos aristocratas com quem esse mercenário independente tinha que lidar. Vem daí um conveniente cinismo contra as lideranças: se acham...
A tragédia é também expressiva de uma moralidade cultural que evolui na idade arcaica (séculos 7-6 a.C.), a síndrome trágica, central na cultura grega. A personalidade poderosa, levada a uma situação de opulência e saciedade, ambiciona além de sua medida, age com arrogância e, neste momento transgride (hybris), invade seara divina e se expõe à vindicta, encaminhando-se um destino de erros, punições e catástrofes, por fim, a queda: exílio ou morte. Esta síndrome trágica faz na Grécia antiga, e faz no Brasil atual, com que se espere ou até mesmo se comemore a queda de personagens do poder, sobretudo aqueles que em algum momento abusaram do poder. Tal moralidade trágica foi emprestada também à visão da história, e faz com que muitos ainda estejam esperando ou até já comemorando a queda dos EUA, seguindo a lógica trágica com que Tucídides leu a queda de Atenas. Neste caso, a personalidade e o destino heroico servem de modelo dramatúrgico para o destino histórico.
Na Grécia antiga, o culto heroico era um dos três grandes campos da religiosidade, junto com a piedade olímpica e os mistérios. Os ancestrais, cercados de mitos e ritos, eram fonte de um poder protetor ou ameaçador sobre o território em que estavam sepultados. Recebiam, por isso, devoção temerosa, homenageados com o sacrifício de reses anegradas, ao entardecer, em um banquete invertido, em que se comiam as entranhas. Os cultos a ancestrais alimentavam a autoridade patriarcal e sua forma de família e de Estado. O culto heroico reaparece no drama local na imaginação transplantada de Augusto Comte, pródiga na celebração de guias da humanidade, e logo na ambição de perenidade e glória de próceres como Julio de Castilhos e Israel Pinheiro Machado; suas tumbas, no Cemitério da Santa Casa, ostentam piras funerárias similares àquelas que ornamentam as guardas da Ponte da Azenha, símbolos de uma façanha heroica ali havida, a batalha de 20 de setembro de 1835.
No humanismo contemporâneo, analisa-se vasta quantidade de material cultural contendo o mito do herói, de sagas antigas e medievais aos variados folclores modernos. As tentativas de síntese começam com Von Hahn (1871) e se arrematam com a descrição enumerada do padrão heroico por Lord Raglan, em The Hero, A Study in Tradition, Myth and Drama (1936):
1) A mãe do herói é uma virgem de sangue real;
2) Seu pai era um rei;
3) Fruto de um amor incestuoso ou ilegal;
4) As circunstâncias de sua concepção são incomuns;
5) Ele é também considerado filho de um deus;
6) Ao nascer ocorre um atentado contra a sua vida, geralmente cometido por um membro da família, ou por sua ordem;
7) Ele é salvo e levado embora;
8) Criado por pais adotivos em um lugar distante;
9) Quase nada sabemos de sua infância;
10) Ao se fazer homem, ele volta (ou vai) para o seu futuro reino;
11) Depois de vitória sobre o rei e/ou sobre um gigante ou dragão ou fera...
12) Ele se casa com uma princesa, que pode ser filha/parente do seu predecessor;
13) E se torna rei;
14) Por algum tempo, reina pacificamente.
15) Promulga leis;
16. Porém, perde o favor dos deuses ou de seus súditos;
17) Após o que é retirado do trono e do reino.
18) Sua morte é misteriosa;
19) Comumente no topo de uma montanha;
20) Seus filhos, se os tem, não o sucedem;
21) Seu corpo não é enterrado;
22) Mesmo assim ele tem um ou mais sepulcros.
Segue-se escore em que triunfam
Édipo e Krishna (21)
seguidos de Moisés e Teseu (20) e,
em terceiro, Artur, Dioniso e Jesus (19);
Harry Potter, 8 pontos.
Se uma personagem faz mais de 6 pontos, é provável que seja uma ficção estruturada como narrativa heroica por suas comunidades de autores, editores e leitores.
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POR FRANCISCO MARSHALL HISTORIADOR E ARQUEÓLOGO
Fonte: ZH on line, 23/11/2013
Na foto, monumento a Júlio de Castilhos na praça central da cidade de... Júlio de Castilhos
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