domingo, 3 de novembro de 2013

PRESENTE, PASSADO E FUTURO

 André Fernandes*
Dentre os males do homem atual, sobressai a sistemática elevação da violência como método particular e privilegiado para a resolução de conflitos. Basta abrir o jornal na coluna de sociedade ou no caderno internacional. Na raiz de um verdadeiro flagelo que o homem conhece desde que é homem e que, hoje, tomou uma proporção tal que ameaça a sobrevivência social, localizamos, dentre várias causas, a perda do sentido do valor, tanto do homem quanto das coisas que nos cercam.

Parece que a humanidade dividiu-se entre a minoria que acredita no mito prometeico, a onipotência humana, e a maioria que conhece a falta de qualquer poder como a principal experiência de vida, relegada à massa de manobra daquela minoria. Some-se a isso aquele vazio de valor do homem e das coisas e, assim, entramos num momento de ruptura da estrutura essencial de nossa civilização: seus elementos constitutivos transformaram-se num amálgama existencial, no qual não se consegue mais distinguir o bem do mal, o verdadeiro do falso, o certo do errado e assim por diante. Efeito prático: o poder constituído descamba para o arbítrio e o arbítrio para o totalitarismo.

Boa parte dessa confusão de línguas é fruto do niilismo, que tem em Nietzsche uma testemunha de vanguarda de nossas piores tentações existenciais. Um de seus fragmentos esclarece qualquer dúvida: “o niilismo não é apenas uma contemplação da inutilidade de tudo, nem apenas a convicção de que todas as coisas merecem cair em ruína. Pondo mãos à obra, manda-as para a ruína (...). A aniquilação com a mão acompanha a aniquilação com o juízo”. Palavras duras. Palavras proféticas. Como já disse para um fiel leitor, é impossível não ter uma certa afeição do Nietzsche que questiona o Estado tentacular, denuncia os graves problemas e as injustiças provocadas pelo capitalismo selvagem, ridiculariza a sede de dinheiro e o conforto material desmedido.

A confusão naqueles conceitos que construíram nossa existência ao longo de séculos — bem, mal, verdade, mentira, certo, errado — gera justamente a perda do valor específico de cada um deles, escapando de nossa capacidade de compreensão e tornando-se inútil para qualquer fim.
Aqui está um ponto-chave: saber compreender a realidade da existência atual. Não podemos nos satisfazer com uma espécie de determinismo existencial, que assume a aparência espúria de “necessidade histórica”; nem por explicações que retiram a noção de livre vontade do indivíduo no agir social, reduzindo-a a um mero efeito de uma ação bioquímica de uns neurotransmissores cerebrais e nem tampouco por uma compreensão rasteira dos fatos, conduzindo-nos à interpretação por meio de lugares-comuns que acabam por dizer mais do mesmo.

Compreender não significa diminuir o choque da experiência, mas, segundo Arendt, saber examinar e suportar conscientemente o fardo que nosso século colocou sobre nossos ombros e interpretar a realidade sem preconceitos, ao custo que for. Dessa maneira, no âmbito social, o crescente número de leis em defesa do idoso e da mulher é causado, em última análise, pela ausência do exercício de virtudes sociais no seio da família, como a solidariedade e a generosidade. E não por causa do patriarcalismo familiar ou do incremento das estatísticas policiais.

A violência praticada por menores aumenta consideravelmente e resolve-se propor, como a única resposta, a realização de plebiscito para a redução da maioridade penal, como se esse problema fosse restrito à questão biológica. A falta de compromisso nas relações sociais não é decorrente de um “imperativo do homem pós-humano que vive no seio da modernidade líquida”, mas porque se perdeu a ideia de família como uma dimensão estável.

Nesse problema compreensivo, a história já nos deu uma lição contundente. A questão judaica e o anti-semitismo, fenômenos de pequena magnitude na política mundial por muito tempo, transformaram-se em agente catalisador, primeiro, do nazismo; segundo, de uma guerra mundial e, ao fim, do holocausto. Hoje, a história oferece-nos outro desafio: o real poderio do homem moderno e nossa incapacidade de viver e compreender o sentido desse mundo criado por esse poderio. Nosso futuro depende dos caminhos por onde esse desafio será levado, mas também do resgate do valor do homem e das coisas com o abandono imediato desse crescente niilismo. Com respeito à divergência, é o que penso.
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*Juiz de Direito e professor do Instituto de Ciências Socias 
Email: agfernandes@tjsp.jus.br 
Fonte: Correio Popular on line, acesso 03/11/2013
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