Marcelo Coelho*
Versos do poeta romântico francês, tido como precursor do surrealismo, saem em nova tradução no Brasil
Cidalisas, Melusinas. Mirto e Cibele. Santa Gudula e Lusignan: belos
nomes, que pouquíssima gente conhece, enfeitam os versos de Gérard de
Nerval (1808-1855), que aparecem agora no Brasil em bonita tradução de
Mauro Gama para a Ateliê Editorial.
Existem poetas difíceis, poetas obscuros, poetas "modernos". Nerval cabe
em categoria ligeiramente diversa. Ele é um mestre do "oculto", do
"esotérico". Entre seus livros de cabeceira estava o "Dicionário
Mito-Hermético", de um certo Dom Pernety, e ele abusava de referências
cifradas à alquimia e ao tarô.
Natural que os surrealistas, quase um século depois, tomassem Nerval
como um precursor. Natural também que os editores e eruditos se
esfalfem, até hoje, para entender os seus poemas mais famosos.
A edição brasileira não se perde muito em detalhes, e deixa apenas que o
leitor comece a se familiarizar com a beleza cintilante e visionária de
alguns versos, que mesmo em português se impõem à memória do leitor.
"Eu sou o Tenebroso --o Viúvo-- o Inconsolado" começa o mais célebre
soneto de Nerval. Até aí, tudo bem; escritores brasileiros, como Carlos
Drummond, não deixaram de prestar homenagem às dores eróticas e
psíquicas do poeta, que se enforcou numa noite de inverno, na rua da
Velha Lanterna, em Paris.
Mas o verso seguinte do poema já nos deixa sem referências: Nerval se
compara "ao Príncipe da Aquitânia na torre derruída". A torre em ruínas,
diz a nota de uma edição francesa, é uma das cartas do tarô, e o
príncipe da Aquitânia é o próprio poeta, que se julgava descendente de
alguma nobreza imaginária. Essas explicações que nem sempre ajudam.
O mais importante é sentir que tudo se passa em outra esfera de
realidade. Nerval fala de personagens obscuríssimos como se todos nós os
conhecêssemos. A magia sonora do poema vai crescendo, e quando chegamos
às estrofes finais é como se as próprias palavras comuns, já sem
necessidade de notas explicativas, ganhassem um sentido que só o poeta
pode desvendar.
"Tenho o rosto ainda rubro ao beijo de uma Rainha.../Sonhei dentro da
grota onde a Sereia nada..." e na lira de Orfeu modulei "os suspiros da
Santa e os gritos da Fada".
Que Santa? Que Fada? Talvez não dê para saber exatamente a quem o poeta
se refere. Como essas palavras encerram o soneto, algo de definitivo se
pronuncia, e seu impacto cresce na mente do leitor.
Que uma fada grite, eis a principal surpresa; que a seus gritos se
alternem os suspiros de uma santa, é algo que se pode tentar
interpretar.
Tradutor do "Fausto" de Goethe, Nerval parece estar falando daqui de um
"eterno feminino" que é feito de carne e de espiritualidade. O grito de
uma fada só pode ser um grito de prazer; o suspiro da santa é um enlevo
de pureza.
Ao mesmo tempo, essa dualidade possui um significado histórico, dentro
de preocupações que Nerval compartilhava com seu contemporâneo Heine
(1797-1856), cujos escritos também traduziu.
A saber, o contraste entre o mundo pagão e o mundo do catolicismo
medieval. A fada, a sacerdotisa, a druida, a deusa grega ou egípcia,
sobrevive nas florestas, nos templos e nos cultos secretos dos
iniciados. "Os Deuses no Exílio", lindo livro em prosa de Heine, trata
dessa sobrevivência também --e também tem tradução brasileira, pela
editora Iluminuras.
Mas o mundo das santas medievais, das torres e dos castelos de província
também está em ruínas nos bosques europeus. O "viúvo", o
"desconsolado", é alguém que tenta, como Orfeu depois da morte de
Eurídice, trazer a amada de volta. Não mais da profundeza infernal, mas
de um paraíso que a indústria e a ciência do século 19 sepultaram.
Os poemas de Nerval parecem, assim, registrar numa língua quase
desconhecida a expectativa de que um mundo encantado, rapidamente
entrevisto em sonho, pudesse renascer.
Uma coisa é certa, diz Nerval num ciclo de sonetos igualmente famoso:
"Deus não existe", morreu, e o céu está vazio. Tais palavras, num lance
surpreendente, saem dos lábios de Jesus.
Em "Cristo no Jardim das Oliveiras", o filho de Deus tenta avisar os
apóstolos da "novidade"; todos dormem, menos Judas --que se afasta,
"amargo e pensativo", achando que lhe pagaram pouco pela traição. Jesus é
capturado pelos guardas, como um novo Ícaro; tragam-me esse louco, diz
Pilatos.
Enquanto isso, o Olimpo desaba; nenhum oráculo pagão irá decifrar o
enigma de Jesus --aquele que deu alma aos filhos do barro. Criaturas
que, na mitologia de Nerval, procurarão unir-se às filhas do fogo pagão.
Os enigmas de Nerval, o tenebroso, continuam brilhando na escuridão.
-----------------------
* Colunista da Folha
coelhofsp@uol.com.brFonte: Folha on line, 13/11/2013
Imagem da Internet
Nenhum comentário:
Postar um comentário