"A crise do nosso tempo é uma crise global:
financeira, económica, social, política, moral, religiosa.
Mas é
fundamentalmente uma crise da morte.
Esta sociedade, para ser o que é,
teve de fazer
da morte tabu, esquecê-la."
"Ressuscitarão os mortos?", de Manuel Alberto
Pereira de Matos, apresenta-se como um «pequeno tratado da escatologia»,
termo que aplicado ao cristianismo se refere às realidades posteriores
à vida terrestre.
A obra, que se propõe «aprofundar a reflexão»
sobre a morte e a ressurreição, especialmente com recurso à Bíblia, é
prefaciada por Anselmo Borges, padre e professor da Universidade de
Coimbra, texto de que apresentamos alguns excertos.
À maneira de prefácio: a morte e o seu “depois”
Anselmo Borges
Anselmo Borges
(...) Só fica, para este prefácio, o caminho de
uma breve introdução a um tema que pertence ao núcleo da existência
cristã, como disse São Paulo, na Primeira Carta aos Coríntios: «Se
Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação e vã também a vossa fé.
Se nós temos esperança em Cristo apenas para esta vida, somos os mais
miseráveis de todos os homens. Se os mortos não ressuscitam, comamos e
bebamos, porque amanhã morreremos.» Evidentemente, a ressurreição
implica por si mesma uma meditação sobre a morte.
1. Na história gigantesca do universo, com 13 700
milhões de anos, o sinal distintivo de que há Homem, não já
simplesmente algo, mas alguém, são os rituais funerários. A partir daí,
já não estamos em presença de um animal qualquer, mas do ser humano,
que sabe que sabe, que tem consciência de si, consciência de que é
mortal, e que, nem que seja de modo confuso, espera para lá da morte. A
consciência da morte e a esperança constituem, portanto, na história
do mundo, uma novidade essencial e radical.
Perante a morte e a mortalidade, surge a
interrogação fundamental, que está na base das artes, das
&loso&as, das religiões: O que é o Homem? Sabemos que somos
mortais, mas ninguém sabe o que é morrer, ninguém sabe o que é estar
morto, nem sequer para o próprio morto. Face à morte, a linguagem
falha. Assim, dizemos, perante o cadáver do pai ou da mãe, de um amigo:
ele/ela está aqui morto/morta. Ora, o que falta é precisamente o pai, a
mãe, o amigo, pois o que ali está não passa de restos mortais e lixo
biológico. Ou dizemos que os levamos à sua última morada. Ora, quem se
atreveria a enterrar ou a cremar o pai, a mãe, um amigo? Também dizemos
que os vamos visitar ao cemitério. Ora, nos cemitérios, com exceção
dos vivos que lá vão, não há ninguém. O Evangelho é cru: nos
cemitérios, só há ossos e podridão. Então, o que há realmente nos
cemitérios, para serem considerados lugares sagrados, de tal modo que a
violação de uma sepultura constitui, em todas as culturas, uma
profanação e um crime nefando? O que há nos cemitérios não é senão essa
pergunta radical: O que é o Homem?, o que é ser Homem?
Mas hoje a morte é tabu. Disso pura e
simplesmente não se fala. É de mau tom chamar o tema à conversa. Se,
tradicionalmente, tabu era o sexo, atualmente, a morte é que é o tabu.
Mente-se às crianças, evita-se o luto, pois a grande mentira-ignorância
das sociedades contemporâneas, desenvolvidas, técnicas, é a morte.
Pela primeira vez na história da humanidade temos uma sociedade que se
funda no tabu da morte, com todas as consequências. De facto, não se
pense que a morte já não é problema. Pelo contrário, numa sociedade que
se julga omnipotente e é poderosíssima nos meios, mas sem finalidades
humanas, de tal modo a morte é problema, o único problema para o qual
não tem solução que a solução é precisamente ignorá-lo, viver como se
ele não existisse.
As razões do tabu são múltiplas.
Fundamentalmente, o que se passou é que a razão esqueceu as suas
múltiplas dimensões, ficando reduzida à razão instrumental, à
eficiência, ao cálculo, à técnica, e o que importa é o sucesso
imediato, o êxito, a juventude, o prazer, a eficácia, o consumismo sem
fim. Por outro lado, vai-se impondo a desafeição face à religião, a fé
vai rareando. Ora, perante a morte, o Homem faz a experiência de que
não é omnipotente, de que não pertence a si mesmo, mas ao Mistério.
Assim, perante a erosão da fé, cada vez se acredita menos na vida
eterna. Vivemos, pois, numa sociedade sem Eternidade. Ora, sem
eternidade, desfaz-se o tecido do tempo, que já não faz texto, pois só
ficam instantes que se devoram, na imediatidade do gozo do momento, que
se segue a outro momento, na voragem da repetição, do tédio e do sem
sentido.
A crise do nosso tempo é uma crise global:
financeira, económica, social, política, moral, religiosa. Mas é
fundamentalmente uma crise da morte. Esta sociedade, para ser o que é,
teve de fazer da morte tabu, esquecê-la.
Para reencontrar a sabedoria, impõe-se voltar ao
pensamento sadio da morte. Não para envenenar a vida, mas, pelo
contrário, para viver humana e autenticamente. O pensamento sadio da
morte dá-nos a consciência do limite, obrigando, portanto, a viver
intensamente cada momento como único. A existência e as suas decisões
não admitem adiamentos. Por outro lado, perante a morte, somos
remetidos para a liberdade e a ética e a urgência da existência
autêntica, pois o confronto com a morte leva à distinção entre o bem e o
mal, o justo e o injusto, o que verdadeiramente vale e o que não vale.
A consciência da mortalidade desperta para a compaixão e a consciência
da fraternidade humana: somos mortais; logo, somos irmãos. Quem quiser
saber o que vale um Homem e o que orienta verdadeiramente a sua vida
pergunte-lhe o que faria, se soubesse que ia morrer no dia seguinte.
2. Como disse Ernst Bloch, filósofo marxista, ao
mesmo tempo ateu e religioso — ele que esperava que a última música que
ouvisse não fosse a das pazadas de terra na sepultura —, «o
cristianismo, na concorrência com outros profetas da imortalidade e da
sobrevivência, venceu em grande parte graças à proclamação de Cristo:
“Eu sou a Ressurreição e a Vida.” Não propriamente graças ao Sermão da
Montanha. No século I depois do acontecimento do Gólgota, a
ressurreição foi referida ao Gólgota de uma forma inteiramente pessoal,
de tal modo que pelo batismo na morte de Cristo se experiencia a
ressurreição com Ele. Imperava então um desespero apaixonado, que hoje
nos parece incompreensível e representa um acentuado contraste com a
nossa indiferença. Mas nada impede que dentro de cinquenta anos (porque
não dentro de cinco?) volte essa neurose ou psicose de angústia da
morte, de tipo metafísico, com a pergunta radical: Para quê o esforço
da nossa existência, se morremos completamente, vamos para a cova e, em
última instância, não nos resta nada?»
Outro grande filósofo alemão, J. G. Fichte,
escreveu que o ser humano não deixará facilmente de resistir a uma vida
que consistisse em «eu comer e beber para apenas logo a seguir voltar a
ter fome e sede e poder de novo comer e beber até que se abra debaixo
dos meus pés o sepulcro que me devore e seja eu próprio alimento que
brota do solo»; como poderei aceitar a ideia de que tudo gira à volta
de «gerar seres semelhantes a mim, para que também eles comam e bebam e
morram e deixem atrás de si outros seres que façam o mesmo que eu fiz?
Para quê este círculo que gira sem cessar à volta de si?... Para quê
este horror, que incessantemente se devora a si mesmo, para de novo
poder gerar-se, gerando-se, para poder de novo devorar-se?»
Assim, para o ser humano é tão próprio saber que é mortal como esperar para lá da morte. Há aquelas perguntas in-finitas:
Porque há algo e não nada? Quem sou? Para onde vou? Onde estarei,
quando cá já não estiver, como inquiria Tolstoi? É insuportável andar,
na vida, de sentido em sentido e, no fim, afundar-se no nada. Se tudo
desembocasse no nada, que valor teria a distinção entre bem e mal,
honestidade e desonestidade, honradez e mentira, verdade e falsidade,
justiça e injustiça, já que, no fim, tudo se afundaria no nada e tudo
seria o mesmo: precisamente nada?
Há aquela pergunta in-finita, que
atravessa a História: Quem fará justiça às vítimas inocentes? Há um
clamor na História por causa da dívida para com as vítimas da injustiça
e do horror. Quem pagará essa dívida? Quem pode fazer a reconciliação
com tanta injustiça e sofrimento dos inocentes? Em diálogo com a Escola
Crítica de Frankfurt, tão sensível às vítimas da História e à
exigência de uma justiça universal cumprida, Bento XVI reconheceu que a
necessidade individual da realização plena e da imortalidade do amor
já é «um motivo importante para crer que o Homem está feito para a
eternidade», «mas só o reconhecimento de que a injustiça da História
não pode de modo nenhum ter a última palavra» convence da necessidade da
ressurreição dos mortos e da vida eterna. Perante a alternativa do
absurdo ou do mistério, é sensato optar, com razões, pelo Mistério que
salva, entregando-se-lhe confiadamente na fé, na esperança e no amor.
A curto, a médio, a longo prazo, todos foram
estando mortos. A curto, a médio, a longo prazo, todos iremos, todos
irão estando mortos, e, lá no final, só há uma alternativa, porque
todos caminhamos para a eternidade: a eternidade do nada ou a
eternidade da vida plena em Deus.
O cristianismo mantém-se ou afunda-se pela
verdade e a fé ou não no Jesus que foi crucificado e que é agora, para
sempre, o Vivente em Deus. Os discípulos que, como Jesus, confessavam
cada dia, na Shemoné Eshré, a fé no “Deus que ressuscita os mortos" e
que tinham acreditado em Jesus como o Messias continuaram a crer n’Ele,
após a Sua morte, uma morte que testemunhava o que foi o centro da Sua
vida e mensagem por palavras e obras até à morte: que Deus é Amor.
Depois da crucifixão, refletindo, aprofundaram a convicção avassaladora
de fé de que Jesus não morreu para o nada, mas para o interior da vida
de Deus, como promessa e esperança de vida plena e eterna para todos. O
Deus que tudo criou por amor a partir do nada, a quem Jesus se dirigia
como Abbá (Pai/Mãe), não é um Deus de mortos, mas de vivos. E disso
deram testemunho até à morte, testemunho que chegou até nós.
Desta fé dá testemunho nesta obra o padre Manuel
Alberto Pereira de Matos. Um testemunho refletido, pois a fé não é cega
e, como manda a Primeira Carta de Pedro, é preciso estar preparado
para «dar razões da esperança que está em nós». Com a sua profunda
preparação exegético-teológica e uma delicada e rara sensibilidade
pastoral, ousa também repensar as muitas questões ligadas com este
núcleo da fé cristã: a chamada escatologia “intermédia”, as “almas
penadas”, a reencarnação, o purgatório, o Inferno, o “corpo” da
ressurreição, que não é nem pode ser a reanimação do cadáver... Um
contributo estimável para o Ano da Fé.
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In Ressuscitarão os mortos?, ed. PaulusFonte: http://www.snpcultura.org/ressuscitarao_os_mortos.html 19.11.13
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