sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Ressuscitarão os mortos?

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"A crise do nosso tempo é uma crise global: financeira, económica, social, política, moral, religiosa. 
Mas é fundamentalmente uma crise da morte. 
 Esta sociedade, para ser o que é, teve de fazer 
da morte tabu, esquecê-la."

"Ressuscitarão os mortos?", de Manuel Alberto Pereira de Matos, apresenta-se como um «pequeno tratado da escatologia», termo que aplicado ao cristianismo se refere às realidades posteriores à vida terrestre.

A obra, que se propõe «aprofundar a reflexão» sobre a morte e a ressurreição, especialmente com recurso à Bíblia, é prefaciada por Anselmo Borges, padre e professor da Universidade de Coimbra, texto de que apresentamos alguns excertos.

À maneira de prefácio: a morte e o seu “depois”
Anselmo Borges

(...) Só fica, para este prefácio, o caminho de uma breve introdução a um tema que pertence ao núcleo da existência cristã, como disse São Paulo, na Primeira Carta aos Coríntios: «Se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação e vã também a vossa fé. Se nós temos esperança em Cristo apenas para esta vida, somos os mais miseráveis de todos os homens. Se os mortos não ressuscitam, comamos e bebamos, porque amanhã morreremos.» Evidentemente, a ressurreição implica por si mesma uma meditação sobre a morte.

1. Na história gigantesca do universo, com 13 700 milhões de anos, o sinal distintivo de que há Homem, não já simplesmente algo, mas alguém, são os rituais funerários. A partir daí, já não estamos em presença de um animal qualquer, mas do ser humano, que sabe que sabe, que tem consciência de si, consciência de que é mortal, e que, nem que seja de modo confuso, espera para lá da morte. A consciência da morte e a esperança constituem, portanto, na história do mundo, uma novidade essencial e radical.

Perante a morte e a mortalidade, surge a interrogação fundamental, que está na base das artes, das &loso&as, das religiões: O que é o Homem? Sabemos que somos mortais, mas ninguém sabe o que é morrer, ninguém sabe o que é estar morto, nem sequer para o próprio morto. Face à morte, a linguagem falha. Assim, dizemos, perante o cadáver do pai ou da mãe, de um amigo: ele/ela está aqui morto/morta. Ora, o que falta é precisamente o pai, a mãe, o amigo, pois o que ali está não passa de restos mortais e lixo biológico. Ou dizemos que os levamos à sua última morada. Ora, quem se atreveria a enterrar ou a cremar o pai, a mãe, um amigo? Também dizemos que os vamos visitar ao cemitério. Ora, nos cemitérios, com exceção dos vivos que lá vão, não há ninguém. O Evangelho é cru: nos cemitérios, só há ossos e podridão. Então, o que há realmente nos cemitérios, para serem considerados lugares sagrados, de tal modo que a violação de uma sepultura constitui, em todas as culturas, uma profanação e um crime nefando? O que há nos cemitérios não é senão essa pergunta radical: O que é o Homem?, o que é ser Homem?

Mas hoje a morte é tabu. Disso pura e simplesmente não se fala. É de mau tom chamar o tema à conversa. Se, tradicionalmente, tabu era o sexo, atualmente, a morte é que é o tabu. Mente-se às crianças, evita-se o luto, pois a grande mentira-ignorância das sociedades contemporâneas, desenvolvidas, técnicas, é a morte. Pela primeira vez na história da humanidade temos uma sociedade que se funda no tabu da morte, com todas as consequências. De facto, não se pense que a morte já não é problema. Pelo contrário, numa sociedade que se julga omnipotente e é poderosíssima nos meios, mas sem finalidades humanas, de tal modo a morte é problema, o único problema para o qual não tem solução que a solução é precisamente ignorá-lo, viver como se ele não existisse.

As razões do tabu são múltiplas. Fundamentalmente, o que se passou é que a razão esqueceu as suas múltiplas dimensões, ficando reduzida à razão instrumental, à eficiência, ao cálculo, à técnica, e o que importa é o sucesso imediato, o êxito, a juventude, o prazer, a eficácia, o consumismo sem fim. Por outro lado, vai-se impondo a desafeição face à religião, a fé vai rareando. Ora, perante a morte, o Homem faz a experiência de que não é omnipotente, de que não pertence a si mesmo, mas ao Mistério. Assim, perante a erosão da fé, cada vez se acredita menos na vida eterna. Vivemos, pois, numa sociedade sem Eternidade. Ora, sem eternidade, desfaz-se o tecido do tempo, que já não faz texto, pois só ficam instantes que se devoram, na imediatidade do gozo do momento, que se segue a outro momento, na voragem da repetição, do tédio e do sem sentido.

A crise do nosso tempo é uma crise global: financeira, económica, social, política, moral, religiosa. Mas é fundamentalmente uma crise da morte. Esta sociedade, para ser o que é, teve de fazer da morte tabu, esquecê-la.

Para reencontrar a sabedoria, impõe-se voltar ao pensamento sadio da morte. Não para envenenar a vida, mas, pelo contrário, para viver humana e autenticamente. O pensamento sadio da morte dá-nos a consciência do limite, obrigando, portanto, a viver intensamente cada momento como único. A existência e as suas decisões não admitem adiamentos. Por outro lado, perante a morte, somos remetidos para a liberdade e a ética e a urgência da existência autêntica, pois o confronto com a morte leva à distinção entre o bem e o mal, o justo e o injusto, o que verdadeiramente vale e o que não vale. A consciência da mortalidade desperta para a compaixão e a consciência da fraternidade humana: somos mortais; logo, somos irmãos. Quem quiser saber o que vale um Homem e o que orienta verdadeiramente a sua vida pergunte-lhe o que faria, se soubesse que ia morrer no dia seguinte.

2. Como disse Ernst Bloch, filósofo marxista, ao mesmo tempo ateu e religioso — ele que esperava que a última música que ouvisse não fosse a das pazadas de terra na sepultura —, «o cristianismo, na concorrência com outros profetas da imortalidade e da sobrevivência, venceu em grande parte graças à proclamação de Cristo: “Eu sou a Ressurreição e a Vida.” Não propriamente graças ao Sermão da Montanha. No século I depois do acontecimento do Gólgota, a ressurreição foi referida ao Gólgota de uma forma inteiramente pessoal, de tal modo que pelo batismo na morte de Cristo se experiencia a ressurreição com Ele. Imperava então um desespero apaixonado, que hoje nos parece incompreensível e representa um acentuado contraste com a nossa indiferença. Mas nada impede que dentro de cinquenta anos (porque não dentro de cinco?) volte essa neurose ou psicose de angústia da morte, de tipo metafísico, com a pergunta radical: Para quê o esforço da nossa existência, se morremos completamente, vamos para a cova e, em última instância, não nos resta nada?»

Outro grande filósofo alemão, J. G. Fichte, escreveu que o ser humano não deixará facilmente de resistir a uma vida que consistisse em «eu comer e beber para apenas logo a seguir voltar a ter fome e sede e poder de novo comer e beber até que se abra debaixo dos meus pés o sepulcro que me devore e seja eu próprio alimento que brota do solo»; como poderei aceitar a ideia de que tudo gira à volta de «gerar seres semelhantes a mim, para que também eles comam e bebam e morram e deixem atrás de si outros seres que façam o mesmo que eu fiz? Para quê este círculo que gira sem cessar à volta de si?... Para quê este horror, que incessantemente se devora a si mesmo, para de novo poder gerar-se, gerando-se, para poder de novo devorar-se?»

Assim, para o ser humano é tão próprio saber que é mortal como esperar para lá da morte. Há aquelas perguntas in-finitas: Porque há algo e não nada? Quem sou? Para onde vou? Onde estarei, quando cá já não estiver, como inquiria Tolstoi? É insuportável andar, na vida, de sentido em sentido e, no fim, afundar-se no nada. Se tudo desembocasse no nada, que valor teria a distinção entre bem e mal, honestidade e desonestidade, honradez e mentira, verdade e falsidade, justiça e injustiça, já que, no fim, tudo se afundaria no nada e tudo seria o mesmo: precisamente nada?

Há aquela pergunta in-finita, que atravessa a História: Quem fará justiça às vítimas inocentes? Há um clamor na História por causa da dívida para com as vítimas da injustiça e do horror. Quem pagará essa dívida? Quem pode fazer a reconciliação com tanta injustiça e sofrimento dos inocentes? Em diálogo com a Escola Crítica de Frankfurt, tão sensível às vítimas da História e à exigência de uma justiça universal cumprida, Bento XVI reconheceu que a necessidade individual da realização plena e da imortalidade do amor já é «um motivo importante para crer que o Homem está feito para a eternidade», «mas só o reconhecimento de que a injustiça da História não pode de modo nenhum ter a última palavra» convence da necessidade da ressurreição dos mortos e da vida eterna. Perante a alternativa do absurdo ou do mistério, é sensato optar, com razões, pelo Mistério que salva, entregando-se-lhe confiadamente na fé, na esperança e no amor.

A curto, a médio, a longo prazo, todos foram estando mortos. A curto, a médio, a longo prazo, todos iremos, todos irão estando mortos, e, lá no final, só há uma alternativa, porque todos caminhamos para a eternidade: a eternidade do nada ou a eternidade da vida plena em Deus.

O cristianismo mantém-se ou afunda-se pela verdade e a fé ou não no Jesus que foi crucificado e que é agora, para sempre, o Vivente em Deus. Os discípulos que, como Jesus, confessavam cada dia, na Shemoné Eshré, a fé no “Deus que ressuscita os mortos" e que tinham acreditado em Jesus como o Messias continuaram a crer n’Ele, após a Sua morte, uma morte que testemunhava o que foi o centro da Sua vida e mensagem por palavras e obras até à morte: que Deus é Amor. Depois da crucifixão, refletindo, aprofundaram a convicção avassaladora de fé de que Jesus não morreu para o nada, mas para o interior da vida de Deus, como promessa e esperança de vida plena e eterna para todos. O Deus que tudo criou por amor a partir do nada, a quem Jesus se dirigia como Abbá (Pai/Mãe), não é um Deus de mortos, mas de vivos. E disso deram testemunho até à morte, testemunho que chegou até nós.

Desta fé dá testemunho nesta obra o padre Manuel Alberto Pereira de Matos. Um testemunho refletido, pois a fé não é cega e, como manda a Primeira Carta de Pedro, é preciso estar preparado para «dar razões da esperança que está em nós». Com a sua profunda preparação exegético-teológica e uma delicada e rara sensibilidade pastoral, ousa também repensar as muitas questões ligadas com este núcleo da fé cristã: a chamada escatologia “intermédia”, as “almas penadas”, a reencarnação, o purgatório, o Inferno, o “corpo” da ressurreição, que não é nem pode ser a reanimação do cadáver... Um contributo estimável para o Ano da Fé.
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In Ressuscitarão os mortos?, ed. Paulus
Fonte: http://www.snpcultura.org/ressuscitarao_os_mortos.html 19.11.13

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