terça-feira, 12 de novembro de 2013

Fabrício da Katy

Fabrício Carpinejar*
 
Ao casar-se, você deixará de ser você. Abandonará a exclusividade do nome. É líquido, certo, inegável e não tem saída. Será um casal daqui por diante. Todos lembrarão de sua esposa em qualquer lugar que vá.

É estar por um momento sozinho, que sou questionado:

– Cadê a Katy?

Nem cumprimentei direito e tenho que dar explicação. Não tirei o casaco e cumpro interrogatórios. Receberei olhares de pura curiosidade. Enfrentarei cem vezes a mesma pergunta. Nem preciso carregar aliança, encarno a aliança.

– Ela não pôde vir.

– Ela trabalha neste horário.

– Ela mandou um beijo.

Colegas não mais me separam dela. Perdi a identidade para assumir outra. Deixei a posição de pessoa física. Eu me transformei num relações-públicas de nosso amor, num produtor de nosso amor, num secretário de nosso amor.

Desacompanhado, os conhecidos me enxergam pela metade, desfalcado, insuficiente. Hoje não sou mais o Fabrício, sou o Fabrício da Katy.

Muitos pares não aguentam a simbiose pública. Entram em crise, esperneiam pela aparente falta de liberdade, pedem a separação. É preciso ser muito resolvido para não temer a dependência. A tendência é de se enxergar sufocado e pirar.

Não sofro dessa crise. Pelo contrário, me envaideço da condição: sempre quis ser de alguém. Não é escravidão ser a lembrança de Katy, é mérito. Fiz por merecer. Batalhei duro para conquistar sua confiança e assegurar sua tranquilidade.

Eu a represento, assim como ela me representa. Pode perguntar, que respondo com alegria.

É mais do que uma referência, é meu verdadeiro sobrenome. Ao mesmo tempo, é uma localização e um atestado de saúde: se estou com ela, é sinônimo para os amigos de que estou bem, de que nada aconteceu de errado, de que seguimos felizes.

Herdei a compreensão amorosa de meu avô. Ele fazia questão de ser enterrado ao lado da vó. Era sua única exigência no testamento.

Dizia que não queria ser lembrado sozinho, já que o seu melhor vinha dela.

Ele dizia ainda que gostaria de dormir de conchinha toda a eternidade.

E, por final, explicava:

– Ela sempre rezou por mim. Agora quando os filhos rezarem por mim, já rezam por ela. Vou oferecer carona de volta na oração.

Palavra tem força. Entre seus túmulos em Guaporé (RS), saltou uma raiz do chão. Não duvido que seja o braço de meu avô segurando as costas da nonna.
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* Poeta. Escritor.
Fonte: ZH on line, 12/11/2013
Imagem da Internet

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