Um dos pais da fantasia juntamente com Edgar
Allan Poe e autor de mais de 80 obras publicadas, Lord Dunsany teve uma
vida semelhante aos personagens de histórias fantásticas. Nobre, herói
de guerra e morador do castelo mais antigo da Irlanda, ele é o elo
esquecido que inspirou J.R.R. Tolkien, C. S. Lewis e Neil Gaiman.
Entre as décadas de 20 e 50 o mercado editorial brasileiro foi
comandado por intelectuais heroicos como Monteiro Lobato e o próprio
José Olympio que, com tradutores da lavra de Carlos Drummond de Andrade,
selecionavam as publicações em um espectro canônico, mas excessivamente
acanhado em minha opinião pernóstica. Assim, por alguma razão que me
escapa, mas que suspeito tem a ver com uma predileção ideológica por uma
escritura mais “realista”, muitas obras importantes da literatura
fantástica ou, como chamam hoje, de fantasia, custaram a aparecer por
aqui.
A leitura precoce de Borges e das Histórias
Extraordinárias de Poe me fez ir pescando aqui e ali um conto do
Hawthorne, do Wells, uma novela gótica, um livro do Haggard, mas só
recentemente o mercado foi oferecendo, timidamente, mais opções.
Em parte por isto, só ouvi falar em Lord Dunsany há cerca de uns
quatro anos quando comprei uma coletânea organizada pelo Bráulio Tavares
na qual li o conto Carcassone. Agora, na Antologia da Literatura
Fantástica de Borges, Bioy Casares e Silvina Ocampo editada pela Cosac
Naify li Uma Noite na Taberna, uma espécie de micropeça em um ato, e
resolvi ir atrás dele.
Lord Dunsany: Nobreza e imaginação influenciaram Borges e Lovecraft
O que me surpreendeu de pronto foi o fato de um escritor que publicou
mais de 80 obras em estilos como o conto, a poesia e o teatro e gozou
de um sucesso relativamente alto em vida seja hoje praticamente
desconhecido – e, pelo que li, isso não se aplica apenas ao Brasil; o
espírito do tempo por alguma razão fantástica não o privilegiou.
Inspiração para Tolkien, Lewis e Gaiman
Lord Dunsany (1878 – 1957) nasceu Edward John Moreton Drax Plunkett
no último quadrante do século XIX de uma família irlandesa cuja
genealogia é anterior às invasões normandas. Décimo oitavo Barão de
Dunsany foi o herdeiro do segundo título de nobreza mais antigo da
Irlanda e habitava um castelo do século XII que é considerado a moradia
habitada mais velha do país. Lutou como oficial na Guerra dos Bôeres e
na I Guerra Mundial e foi exímio atirador, caçador, desenhista e um
gênio do xadrez: chegou a empatar com o Grão-Mestre Capablanca. Além de
tudo tinha porte de príncipe: era muito alto e muito bonito.
As lendas e o folclore irlandês, celta e do Norte Europeu, a
mitologia grega e oriental, os romances de cavalaria e os contos de
fadas dos irmãos Grimm e de Hans Christian Andersen foram sua
inspiração. Mas, ao ler seus contos e histórias curtas logo se nota que a
imaginação de Dunsany era uma fonte com manancial próprio. A força
simbólica, a prosa, ora lírica, ora bem humorada, e a vivacidade de suas
atmosferas o tornam um escritor cujo estilo aliava o dom para a criação
de enredos maravilhosos com a elegância da escrita.
Edição de The King of Elfland’s Daugther com introdução de Neil Gaiman
Dunsany não é apenas considerado um dos pais da fantasia, juntamente
com Poe, Willian Morris e Henry Rider Haggard; ele foi uma influência
basilar para mitos como J.R.R. Tolkien e C. S. Lewis. Estes eram
admiradores não só de seus contos, reunidos em livros como The Gods of
Pegana (1905) e The Sword of Welleran and Other Stories (1908), mas
também de seu romance mais famoso, The King of Elfland’s Daugther, que
conta a história de um casamento entre um homem mortal e uma princesa
elfo. A inspiração de Lord Dunsany iluminou também as páginas de Arthur C
Clarke, Neil Gaiman, Jorge Luis Borges, Ursula Le Guin e H. P.
Lovecraft, todos credores confessos de sua magia.
Acesse aqui obras de Lord Dunsany em inglês Abaixo duas histórias de Lord Dunsany traduzidas por mim. Ambas falam do divino; uma não poderia ser mais diferente da outra.
After the Dance do pintor pré-rafaelita J. W. Waterhouse,1876
UM MILAGRE
Publicado originalmente em Selections from the Writings of Lord Dunsany
Existe em Roma uma estrada que atravessa um templo antigo em que
outrora os deuses foram amados; ela se estende ao longo do cume de uma
grande muralha e o chão do templo, em mármore rosa e branco, encontra-se
muito abaixo dela.
Por sobre o chão do templo contei treze gatos famintos.
“Às vezes”, os ouvi sussurrar, “Foram deuses que viveram aqui, outras
vezes homens, e agora gatos. Então vamos aproveitar o sol sobre o
mármore quente antes que outro povo venha”.
Eu estava, pois, naquela hora de uma tarde quente em que minha
fantasia é capaz de ouvir vozes silenciosas. E a magreza terrível de
todos os treze gatos me impeliu a entrar em uma peixaria nas cercanias e
lá comprar certa quantidade de peixes. Depois retornei e os arremessei
sobre o parapeito no topo da grande muralha e eles caíram por trinta pés
e atingiram o mármore sagrado com um tapa
Ora, em qualquer outra cidade que não Roma, ou na mente de quaisquer
outros gatos, a visão de peixes caindo do céu teria certamente provocado
assombro. Levantaram-se lentamente, e se alongaram; então se dirigiram
preguiçosamente em direção aos peixes. “É só um milagre”, diziam em
seus corações.
Tradução de Ana Calazans
Oferenda ao Deus Pã do pintor brasileiro Pedro Weingärtner, 1894
Publicado originalmente em Fifty-One Tales
“Vejam”, disseram eles, “o antigo Pã está morto, vamos agora fazer um
túmulo e um monumento para que seu terrível culto ancestral possa ser
lembrado e rejeitado por todos.[1]”.
Assim falaram os povos das terras esclarecidas. E eles construíram um
poderoso túmulo de mármore branco. Lentamente, ele levantou-se sob as
mãos dos construtores e brilhava a cada noite após o poente com os raios
do sol moribundo.
Muitos choraram por Pã enquanto os construtores erguiam a tumba;
muitos os injuriavam. Alguns clamaram que cessassem a obra e chorassem
por Pã e outros para que eles não legassem a um deus [da natureza] tão
infame memorial. Mas os construtores seguiram com a obra.
E um dia tudo acabou e o túmulo lá estava como um íngreme penhasco
sobre o mar. E nele Pã foi esculpido com a cabeça humilhada sob o peso
dos pés dos anjos em seu pescoço. E quando a tumba foi concluída o sol
já havia se deitado, mas o brilho do entardecer permaneceu róseo no
imenso tronco de Pã.
E hoje todas as pessoas esclarecidas vieram e viram o túmulo e
lembraram Pã, que foi morto, e lastimaram-no e também à sua época ímpia.
Alguns, porém, choraram afastados sua morte.
Mas à noite quando saiu furtivamente da floresta, e deslizou
suavemente como uma sombra ao longo das colinas, Pã viu o túmulo e riu.
________________________
[1] O autor faz referência ao célebre trecho da obra De Defecto
Oraculorum (A Obsolescência dos Oráculos) do historiador Plutarco no
qual um viajante diz ter ouvido um grito “O Grande Pã está morto”, “Pan
ho megas tethneken” em grego. A expressão é uma espécie de símbolo e
síntese da mudança cultural e do inconsciente latino na época do fim do
paganismo. Séculos depois Nietzsche a atualizaria na célebre frase “Deus
está morto”.
----------------* Escritora.
Texto publicado em artes e ideias por Ana Calazans
Fonte: http://lounge.obviousmag.org/ordem_no_ruido/2013/11/
Nenhum comentário:
Postar um comentário