quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

3 Poemas de Juan Gelman*














claro que morrerei

claro que morrerei e hão de levar-me
em ossos ou cinzas
e dirão palavras e cinzas
e eu hei de morrer totalmente

claro que isto acabará
minhas mãos pelas tuas alimentadas
hão de pensar-se de novo
na umidade da terra

eu cá não quero caixão
nem roupa

que o barro aceite minha cabeça
e que os bichos me devorem
agora
despido de ti


Mi Buenos Aires querido

Sentado na borda de uma cadeira sem tampo,
enjoado, doente, vivo por pouco,
escrevo versos previamente chorados
pela cidade onde nasci.
Tenho de segurá-los, também aqui
nasceram doces filhos meus
que me adoçam belamente no meio de tanto castigo.
É preciso aprender a resistir.


Não a partir nem a ficar,
mas a resistir,
embora seja seguro
que hão de vir mais penas e olvido.


Chuva

hoje chove muito, muito,
dir-se-ia que estão a lavar o mundo.
o meu vizinho do lado vê a chuva
e pensa em escrever uma carta de amor
uma carta à mulher com quem vive
e lhe faz a comida e lava a roupa e faz amor com ele
e se parece com a sua sombra
o meu vizinho nunca diz palavras de amor à mulher
entra em casa pela janela e não pela porta
por uma porta entra-se em muitos sítios
no trabalho, no quartel, na prisão,
em todos os edifícios do mundo
mas não no mundo
nem numa mulher / nem na alma
quer dizer / nessa caixa ou nave ou chuva que chamamos assim
como hoje / que chove muito
e me custa escrever a palavra amor
porque o amor é uma coisa e a palavra amor é outra coisa
e só a alma sabe onde as duas se encontram
e quando / e como
mas que pode a alma explicar

por isso o meu vizinho tem tempestades na boca
palavras que naufragam
palavras que não sabem que há sol porque nascem e morrem na
mesma noite em que ele amou
e deixam cartas no pensamento que ele nunca escreverá
como o silêncio que existe entre duas rosas
ou como eu / que escrevo palavras para regressar
ao meu vizinho que vê a chuva
e à chuva
ao meu coração desterrado

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* Juan Gelman (Buenos Aires, 3 de Maio de 1930; Cidade do México, 14 de janeiro de 2014) foi um poeta, jornalista e tradutor argentino. É um dos mais importantes poetas da Argentina das últimas décadas, vencedor do Prémio Cervantes em 2007.
Tem uma pequena colectânea de poemas publicada em Portugal em 1998 pela editora Quetzal, No avesso do mundo.
No Brasil há três edições de sua poesia: Amor que serena, termina? (antologia traduzida por Eric Nepomuceno), Isso (traduzido por Leonardo Gonçalves e Andityas Soares de Moura) e Com/posições (traduzido por Andityas Soares de Moura).
In
No avesso do mundo
Fonte:  http://cronicasderobertolima.blogspot.com.br/2011/01/3-poemas-de-juan-gelman.html

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