domingo, 19 de janeiro de 2014

?É uma tarde fria...? (continuação)

 Rubem Alves*
 
(Sem data) “...É uma tarde fria, tempestade de neve... que me deixa apenas a alternativa de ficar em casa... mas não sozinho. Bach: Greatest Hits me faz companhia (quantas centenas de vezes eu ouvi aquele álbum? )... e as nuvens do incenso que sobem... chamando para esse quarto uma multidão de pessoas queridas... memórias de tempos passados. E, não obstante... há uma enorme área vazia no meu coração — ‘Jesus: alegria dos desejos dos homens’ ... sim... sim... — mas não é verdade que existe também uma inescapável solidão nessa ‘alegria do desejo’?

Sinto uma dúvida crescente sobre a paixão de Jesus. Certamente muito do que se diz foi inventado depois que as coisas aconteceram, você não concorda?

‘Não a minha vontade mas a tua’— isso parece ter sido copiado de um texto de teatro... Você acredita nisso? Esse texto falsifica o que aconteceu que, para Jesus, tinha de ser muito doloroso... a escuridão do não saber. Duvidar de Deus... Mas onde estão as partituras para essas canções de amor que nos convidam a cantar? O amor está no meu coração... Eu sinto dentro de mim uma profunda conexão de tudo isso com a vida. No entanto... como é que vamos cantar as notas? Onde está a coreografia para essa dança?”

* * *
“Fiquei à janela essa manhã... Fiquei observando a presença do sol iluminando os céus escuros atrás árvores envoltas em múltiplos lençóis de neve.. Por quanto tempo ele tem estado lá... sorrindo... milhões de manhãs de sábado, e eu vi um coelhinho... pulando e pulando nessa luz que nascia. E um plátano solitário brilhando com reflexos cor de rosa... Senti o calor do plátano me queimando e penetrando nos meus ossos... plátanos que, em tempos passados, enchiam essas montanhas ...”

(Nota: Traduzi por plátano mas, na realidade é “aspen”, uma árvore não conhecida no Brasil e que é abundante nas Montanhas Rochosas.)

* * *
“Esse foi um ano duro para mim, Rubem. Estive preso na maior parte do Verão e da Primavera pelo crime de orar nos lugares das trevas. Minha última presença orante... foi numa base da força aérea na Dakota do Sul onde bombas atômicas são guardadas prontas para serem colocadas em bombardeiros B-1. Fui então para a Georgia do Sul para cuidar de um velho amigo que estava morrendo de câncer... para que ele pudesse realizar o seu desejo de morrer na sua casa. Foram meses duros, Rubem, mas também cheios com as memórias preciosas desse meu amigo que cresceu à sombra da escravidão vivendo como ‘meieiro’ na lavoura... O Tom tinha uma fé forte e sua tranqüila aceitação da morte me é uma fonte de inspiração.”

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“Depois de meses de tensão estou de novo de volta às Montanhas Rochosas... nesse vale que amo... onde há um mosteiro trapista. Por mais de 18 anos tenho sido amigo desse pequeno grupo de 12 monges. Não tenho interesse algum em monasticismo mas eu amo esse vale por suas oportunidades de silêncio e solidão. Na próxima semana vou caminhar pela neve, subindo a montanha até um planalto bem no alto, para uma semana de silêncio e solidão. Sim, a mesma cabana onde estive no ano passado, de onde lhe escrevi logo depois. Lá vou ouvir uma vez mais a música do futuro.” (continua)
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* Educador. Teólogo. Filósofo. Escritor.
Fonte: Correio Popular online, 19/01/2014
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