quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

O Papa não é vaticanocêntrico.

Leonardo Boff*

“O Papa Francisco não conheceu o capitalismo central e triunfante da Europa, mas o capitalismo periférico, subalterno, agregado e sócio minoritário do grande capitalismo mundial. O grande perigo nunca foi o marxismo, mas a selvageria do capitalismo não civilizado. Este tipo de capitalismo tem gerado, em nosso Continente latino-americano, uma escandalosa acumulação de riqueza para poucos à custa da exclusão e pobreza para a grande maioria do povo”

Quem escuta as diferentes intervenções do bispo de Roma e atual papa sente-se em casa, e na América Latina. O Papa não é eurocêntrico, nem romântico e muito menos vaticanocêntrico. É um pastor “vindo do fim do mundo”, da periferia do velho cristianismo europeu, decadente e agônico (hoje apenas 24% dos católicos são europeus); proveniente de um cristianismo novo que tem sido elaborado ao longo de 500 anos na América Latina, com uma cara própria e com sua teologia.

O Papa Francisco não conheceu o capitalismo central e triunfante da Europa, mas o capitalismo periférico, subalterno, agregado e sócio minoritário do grande capitalismo mundial. O grande perigo nunca foi o marxismo, mas a selvageria do capitalismo não civilizado. Este tipo de capitalismo tem gerado, em nosso Continente latino-americano, uma escandalosa acumulação de riqueza para poucos à custa da exclusão e pobreza para a grande maioria do povo.

Seu discurso é direto, explícito, sem o álibi das metáforas frequentemente usadas no discurso oficial e “equilibrista” do Vaticano, que acaba por enfatizar mais a segurança e a equidistância do que a verdade e a clareza de sua própria posição.

A posição do Papa Francisco pelos pobres excluídos é muito clara: “Não devem subsistir dúvidas nem explicações que debilitem esta mensagem” visto que “existe um vínculo indissolúvel entre a nossa fé e os pobres” (Exortação nº48). De forma contundente faz a denúncia: “o sistema social e econômico é injusto na sua raiz” (nº59); “devemos dizer não a uma economia da exclusão e da desigualdade social”. “Esta economia mata (...) O ser humano é considerado, em si mesmo, como um bem de consumo que se pode usar e depois jogar fora. (...) Os excluídos não são ‘explorados’, mas resíduos, ‘sobras’”. (nº53)

Além disto, não se pode negar que estas formulações do Papa Francisco lembram o magistério dos bispos latino-americanos de Medellín (1968), Puebla (1979) e de Aparecida (2005), assim como o pensamento comum da teologia da libertação, que tem como eixo central a opção pelos pobres, o fim da pobreza e a favor da vida e da justiça social.

Há uma perceptível afinidade com o economista húngaro-norteamericano Karl Polanyi, o primeiro a denunciar a “Grande Transformação” (título do seu livro de 1944), que transforma a economia de mercado em uma sociedade de mercado. Nela tudo passa a ser uma mercadoria, até mesmo as coisas mais sagradas e mais vitais. Tudo é objeto de lucro. Tal sociedade se rege estritamente pela competição, pelo prevalecimento do individualismo e pela ausência de qualquer limite. Por isto não respeita nada e cria um caldo de violência, intrínseco à forma como ela se constrói e funciona. Duramente criticada pelo Papa Francisco (nº53), ela tem tido um efeito atroz. Nas palavras do Papa: “desenvolveu-se uma globalização da indiferença. Quase sem dar-nos conta, tornamo-nos incapazes de nos compadecer e ouvir os clamores alheios, já não choramos à vista do drama dos outros, nem nos interessamos em cuidar deles” (nº54).  Em uma palavra, vivemos tempos de grande desumanidade, impiedade e crueldade. Será que podemos nos considerar realmente civilizados, se entendermos por civilização a humanização do ser humano? Na verdade, trata-se de um retorno as formas primitivas de barbárie.

A conclusão final que o Pontífice decorre deste investimento é a de que “não podemos mais confiar nas forças cegas e na mão invisível do mercado” (nº204). E, desta maneira, ataca o coração ideológico e falso do sistema que impera.

E onde buscará por alternativas? Não irá beber da esperada Doutrina Social da Igreja. Respeita-a, mas observa: “não podemos evitar em ser concretos – sem pretender entrar em detalhes – para que os grandes princípios sociais não fiquem em meras generalidades que não interpelam ninguém”. (nº182). Buscará na prática humanitária do Jesus histórico. Não entende sua mensagem como uma regra petrificada no passado, mas como uma inspiração aberta para a história em constante mudança.  Jesus é alguém que nos ensina a viver e a conviver, a “reconhecer o outro, a curar as feridas, a construir pontes, a estreitar laços e a nos ajudar ‘a carregar as cargas uns dos outros’” (mº67).  Ao personalizar seu propósito disse: “A mim, interessa-me apenas procurar por aqueles que vivem escravizados por uma mentalidade individualista, indiferente e egoísta, para que possam libertar-se dessas cadeias indignas e alcancem um estilo de vida e de pensamento mais humano, mais nobre, mais fecundo, que dignifique a sua passagem por esta terra” (nº 208). Esta intenção assemelha-se a Carta da Terra que aponta para valores e princípios de uma nova humanidade, que habita com cuidado e com amor o planeta Terra.

O sonho de Papa Francisco atualiza o sonho de Jesus histórico, o do Reino da justiça, do amor e da paz. Não estava na intenção de Jesus criar uma nova religião, já que eram muitas as que existiam em seu tempo, mas pessoas que amam, solidarizam-se, mostram misericórdia, e tomam a todos como irmãos e irmãs, porque todos são filhos e filhas para o Filho.

Este tipo de cristianismo não tem nada de proselitismo, mas conquista pela atração de sua bela e profunda humanidade. Tais valores são os que podem dar outro rumo à sociedade mundial.
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*Escreve Leonardo Boff , teólogo, filósofo e escritor. O artigo é publicado no sítio Religión Digital, 03-01-2014. A tradução é do Cepat.
Fonte:http://goo.gl/8H0VAA
IHU online, 08/01/2014

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