Marcelo Gleiser*
Se o Cosmo é determinístico, a "máquina" existe além de nossa capacidade de cálculo, como uma versão de Deus
Na Semana passada, escrevi sobre a questão do livre-arbítrio, se somos
ou não agentes de nossas próprias decisões. Essa reflexão foi despertada
pelo livro de Sam Harris sobre o assunto e por minha participação numa
mesa redonda sobre o tema. Harris, que tem doutorado em neurociências, é
um autor conhecido nos EUA. No livro, diz que a sensação que temos de
controlar nossas ações não passa de uma ilusão.
Harris não tirou sua conclusão do nada. Vários experimentos realizados
nas últimas duas décadas mostram que a decisão é tomada antes que o
sujeito tenha consciência disso. Nesses experimentos, o cérebro age
antes da mente.
Argumentei que a questão não é tão simples, que não pode ser reduzida a
um simples sim (o livre-arbítrio existe) ou não (escolhas são todas de
forma subconsciente). Há todo um espectro de decisões que tomamos na
vida que exige ponderação mais profunda. Esses casos são muito
diferentes dos investigados no laboratório. E, aqui sim, me parece que o
livre-arbítrio, compreendido como nossa habilidade de fazer escolhas
mesmo sob uma série de condições, tem seu papel.
Porém, não mencionei a questão do determinismo, essencial numa discussão
sobre o livre-arbítrio. Na física, um sistema é determinístico se seu
comportamento futuro (e passado) pode ser obtido de seu comportamento
presente. Na prática, sistemas físicos determinísticos são descritos por
equações que permitem esse avanço preciso no tempo.
A imagem que temos é a de um relógio que vai avançando seguindo as leis
da mecânica. Daqui vem a metáfora do Universo-relógio, que foi tão
importante nos séculos 18 e 19, culminando com a declaração do francês
Pierre Laplace: se uma supermente conhecer a posição e a velocidade de
todas as partículas existentes no Cosmo em um determinado instante,
poderá prever suas posições futuras com precisão. Nesse caso, tudo é
predeterminado pelas leis da mecânica: eu ter escrito este ensaio, o
país que ganhará a Copa, a inflação no ano 2045.
Felizmente, esse determinismo é impossível. Não podemos saber a posição e
velocidade de todas as partículas que existem num mesmo instante: como
medir à distâncias de bilhões de anos-luz? Ademais, sistemas com
interações complexas (do Sistema Solar a um cérebro) são sensíveis à
precisão com que sabemos a posição e velocidade de seus componentes.
Como nenhuma medida tem precisão absoluta, não podemos prever o futuro
distante.
A física quântica também impõe limites na precisão das medidas de
posição e velocidade de uma partícula. Do nosso ponto de vista, o
determinismo é inviável, especialmente para sistemas complexos como o
cérebro ou a sociedade.
A alternativa é que o Cosmo seja determinístico e que nós sejamos
incapazes de saber como isso ocorre. A "máquina" existiria além de
nossos instrumentos ou capacidade de cálculo. Me parece que esse tipo de
determinismo é uma outra versão de Deus: onisciente, inescrutável e
impossível de ser comprovado.
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