Entrevista com o filósofo Jacques Rancière
Fonte: http://goo.gl/nnVc1C
Entrevista com o filósofo francês Jacques Rancière (foto) sobre as potências e os problemas do novo paradigma da política cidadã e não partidarista que emergiu a partir do 15-M.
Querido Jacques Rancière,
A questão é que me parece que em seu trabalho existem contribuições muito valiosas para pensar o 15-M (o movimento dos “indignados”)
e suas diferentes implicações, prolongações e metamorfoses (“mareas”,
movimento contra os despejos, etc). E, de fato, você é um dos poucos
filósofos (digo entre os muito conhecidos) que prestou atenção e deu
valor ao movimento, sem considerá-lo a partir de suas “limitações”, mas a
partir de suas “potências”.
Para além dos acampamentos, com o 15-M emergiu
fortemente a possibilidade de se pensar uma nova política, cidadã e não
partidarista, que se estende um pouco por todas as partes (mesmo que sem
se nomear como 15-M) e que abriu muitos
questionamentos para todos. E justamente em torno delas é que preparei o
questionário, sem esperar tanto respostas, mas muito mais inspiração
para repensar as próprias perguntas.
Eu posso imaginar a carga de trabalho que você terá e da
quantidade de solicitações desse tipo que receberá. A única coisa que me
atrevo a dizer, para animá-lo, é que poucas vezes houve, na Espanha
dos últimos tempos, tanta necessidade e desejo de ler, conversar e
pensar. Tomara que as perguntas estejam em sintonia com as questões que
você está trabalhando, nesse momento, e que respondê-las possa lhe ser
útil de alguma maneira.
Saudações,
Amador
Amador
A entrevista é de Amador Fernández-Savater, publicada por ElDiario.es, 24-01-2014. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
1. Sobre a inclusividade e a “política do qualquer um”. O
primeiro 15-M das praças chamou de “inclusividade” a algo que poderia
ecoar naquilo que você nomeou como uma “política do qualquer um”. Em
suas formas de agir e dizer, sempre procurou encaixar qualquer um, de
interpelar a qualquer um, sem se dirigir aos blocos ou grupos
determinados (sociológicos ou ideológicos), mas, sim, em pessoas
singulares e a um 99% simbólico. As bandeiras e as siglas (e, em geral,
todos os sinais de identidade que provocavam divisão) ficaram, desde o
primeiro momento, fora da Puerta del Sol.
Entretanto, há quem pense que esse “nós aberto” foi
conquistado ao preço de apagar ou ocultar as diferenças e os conflitos
internos. Por exemplo, as diferenças de acesso a esse “nós” entre
cidadãos legalizados e imigrantes em situação irregular. O qualquer um
que você menciona é abstrato? Nas manifestações da “política do qualquer
um”, que você pesquisou, como se pensa e se elabora essa relação entre o
qualquer um e as identidades-diferenças particulares?
É importante compreender que há duas imagens do “qualquer um”. Em
primeiro lugar, o sujeito da política é o sujeito criado pela própria
ação política, o sujeito criado por uma manifestação e uma enunciação
coletiva, o sujeito que se cria quando a ação política diz “nós”.
Isso significa que uma subjetivação não é definida por uma identidade
prévia, mas pelos atos que gera, pela modificação que esses atos
ocasionam no tecido normal das identidades, os lugares e as ocupações [o
que Rancière chamou a “partilha do sensível”].
Assim, o “nós” se distingue do sujeito político concebido na forma
clássica da classe e da vanguarda, porque não se define por um conjunto
de propriedades, nem por uma interioridade compartilhada que se
traduziria em ações exteriores. Não preexiste, são, sim, suas próprias
ações as que o criam.
Em segundo lugar, essa afirmação coletiva se dirige a indivíduos
qualquer, aos quais se propõe incluir sem se preocupar em conhecer sua
pertença social. Aqueles que se incluem podem fazer isso tanto como
“pessoas”, membros de um grupo de afinidades pessoais ou como militantes
desse ou daquele coletivo. O essencial é que o “nós” possa estar aberto
a qualquer um que o deseje. De fato, a suspensão das identidades
particulares marca geralmente o início dos movimentos, assim como o
retorno dos conflitos entre grupos indica muitas vezes seu declive.
Por outro lado, é claro que nem todo o mundo é igual de entrada, no
que se refere à possibilidade de se manifestar e a disponibilidade para
ocupar a rua. A questão é que não se sintam excluídos pela forma das
ações.
Em todo caso, é preciso evitar tratar a relação entre os 99% e o 1%
em termos estatísticos. E, sem dúvida, podemos discutir inclusive sobre a
pertinência da fórmula. Não são 99% contra 1%, mas uma imagem do povo
contra outra. A imagem de um povo a ser construída sobre a base da
pressuposição igualitária contra o povo que nossos governantes
administram, assim como também contra as “maiorias silenciosas” para as
quais apelam ou contra o povo identitário que se concentra em
manifestações como a “mani para todos”, convocada pelos que se opõem ao
casamento homossexual na França.
2. Sobre a imagem do inimigo. O 15-M estreitou muitíssimo a
figura do inimigo: é o 1% da oligarquia financeira, política e
midiática. E isso não apenas “teoricamente” ou nos discursos, mas também
nas ruas. Por exemplo, na prática do “Stop despejos”, a interpelação
firme, mas humana em relação ao outro (bombeiro, chaveiro, também o
policial), produziu numerosas fissuras sob os uniformes e as funções
atribuídas.
Como pensar, hoje, a imagem do inimigo para além da lógica da
luta de classes? Quem é, atualmente, o inimigo? É preciso confrontá-lo,
destruí-lo ou simplesmente esquivar dele? Em resumo, como entender esta
frase sua: “(a política cria) cenários de interlocução que reconhecem o
inimigo como parte integrante da mesma comunidade”?
A pergunta contém vários problemas. Em primeiro lugar, a diferença
entre a política e a guerra. A política é uma maneira de incluir o
inimigo. Não se trata de generosidade. A própria forma da ação política
institui uma esfera de universalidade, e a constituição dessa esfera
serve de teste sobre a capacidade própria das partes em luta.
Um exemplo. Pesquisei, especialmente, essas situações que pertencem
ao nascimento da greve no século XIX, onde os operários instituíam com
os patrões um cenário de discussão pública que, para os patrões, não
existia, porque a negociação das condições de trabalho era para eles um
assunto privado entre pessoas. Os patrões não tinham nenhuma razão para
aceitar esse cenário de discussão, mas essa rejeição significava uma
inversão dos papéis: o coletivo operário afirmava sua potência como
sujeito intelectual frente aos que não viam nele mais do que uma matilha
brutal, ao passo que a capacidade dos patrões simplesmente ficava
reduzida às armas da polícia.
É correto que esta imagem de interlocução estava muito vinculada a
uma lógica da política como luta de classes. Hoje, existe uma política
da luta de classes desenvolvida pela classe capitalista sob a bandeira
da economia e a necessidade econômica, mas por outro lado não existe
nada que corresponda ao que foi a política operária da luta de classes. É
esta situação a que traduz exatamente, ao seu modo, a fórmula dos 99%
contra o 1%, a partir do ponto de vista estatístico.
Isto significa, concretamente, que não há na atualidade uma imagem
forte de inclusão do inimigo. Por um lado, há uma figura de separação
que outorga maior importância à afirmação de autonomia que às
estratégias do conflito e, por outro lado, existe uma imagem das ações
violentas simbólicas (de tipo enfrentamento com a polícia e destruição
de caixas eletrônicos no final das manifestações) que, inversamente,
outorga maior importância à designação do inimigo do que à afirmação
coletiva. Contudo, também existem essas ações que sua pergunta evoca, no
curso das quais se fissura a frente dos representantes da autoridade.
Não há resposta geral. É na própria ação que podemos conhecer o
inimigo e saber como nos comportar em relação a ele. Não se pode
“evitar” o inimigo. A questão é como nos diferenciarmos dele:
privilegiando uma visão estratégica dos golpes que lhe dirigimos ou
privilegiando a diferença de formas de pensamento, de vida e de ação que
lhe opomos. Eu considero que é possível adquirir mais força por esta
segunda via.
3. Sobre a subjetividade e subjetivação. Você colocou muita
ênfase na importância da subjetivação. A política não “expressa” um
sujeito latente ou pré-constituído (como ocorre, por exemplo, na teoria
de Toni Negri sobre as “multidões”), mas o cria. Cria um “espaço de
sujeito” onde qualquer um pode ser contado.
Como pensar a relação entre nossa vida cotidiana e esse
processo de subjetivação? A subjetivação é ruptura e criação, mas
criamos a partir de nossa experiência cotidiana (no trabalho, na cidade,
nas redes). O filósofo Cornelius Castoriadis utilizava o termo
“elaboração” para pensar a mesma questão no movimento operário: a
subjetivação operária, dizia Castoriadis, “elabora criativamente” a
experiência cotidiana do trabalho na fábrica.
Para você, faz sentido pensar que relação há entre
experiência cotidiana e subjetivação? Serve para algo estudar as
situações de vida para pensar a política?
É claro que a subjetivação política não nasce como uma emergência
radical, se concordamos que ela não opõe um grupo a outro, mas um mundo a
outro. A formação desse mundo tem uma dupla origem. Por um lado, é
fruto do processo de separação que a própria ação produz ao criar outro
uso do tempo e do espaço, outros laços entre os indivíduos, outros
possíveis no pensamento. Porém, também é o resultado de uma
multiplicidade de transformações nas práticas e nas formas de vida e de
pensamento.
Há dois grandes tipos de transformações “subjetivadoras” deste tipo.
Em primeiro lugar, a criação de laços por meio das experiências
concretas de solidariedade no trabalho, na luta, mas também por meio das
formas de troca que as pessoas podem experimentar na vida cotidiana ou
por meio dos diferentes serviços que podem prestar entre si. E, em
segundo lugar, as diferentes maneiras pelas quais as pessoas escapam dos
rigorismos de sua identidade, mediante a aprovação de uma cultura
diferente, como, por exemplo, entre os autodidatas que estudei, ou
atualmente mediante a experiência das viagens e da multiplicidade de
culturas.
Uma subjetivação política é o encontro destes dois componentes: o
laço que se opõe à separação dos indivíduos e o tornar-se outro, que
rompe com a atribuição identitária. Pensar as transformações e as
interações entre esses dois componentes nos permite sair das oposições
rígidas entre o individual e o coletivo, entre o cotidiano e a política.
Não há oposição entre esses dois termos, mas sempre certo trançado do
individual e o coletivo, do tempo cotidiano e o tempo do mundo.
4. Deixar de ser, politizar o que se é. A política como
subjetivação consiste, de alguma maneira, em “deixar de ser o que há que
ser” e inventar um corpo novo, capaz de outras coisas. Por exemplo,
você estudou como a subjetivação operária inventou novos corpos capazes
de falar ou escrever, deixando de ser, assim, simples “mulas de carga”.
Em meio ao 15-M e seus desdobramentos, vimos médicos,
professores ou jornalistas que, mais do que deixar de ser o que são,
ativavam-se politicamente a partir de sua posição. Mais do que abandonar
seu lugar e função, politizavam-no, defendendo o direito universal à
saúde ou à educação. Podemos entender essas formas de politização como
subjetivações?
“Politizar uma função” é uma expressão ambígua. A defesa do direito
universal à saúde ou à educação não é uma reivindicação específica da
profissão médica ou docente, mas uma reivindicação igualitária geral.
É claro, o exercício da medicina, do ensino, do jornalismo ou da
magistratura, coloca-nos questões muito específicas de opressão e
liberdade, de igualdade e desigualdade, que suscitam energias
militantes. No entanto, um médico que milita pelo direito ao aborto,
contra o confinamento psiquiátrico ou que participa de um consultório
gratuito, não realiza isso unicamente como médico, mas vinculando sua
prática da medicina a uma ideia de igualdade dos sexos, de liberdade dos
indivíduos ou de solidariedade social.
Entre os militantes dos movimentos sociais e revolucionários, sempre
existiram médicos, advogados ou professores que participaram da ação
política sobre a base de sua experiência profissional. Portanto, não se
deve fazer desses compromissos uma novidade que significaria o alcance
do movimento operário em novas categorias sociais ou o alcance da
militância universal em uma militância das especificidades.
5. Sobre o comum e as comunidades. Você escreveu que a ideia
de socialismo contém a ideia de uma gestão associativa e democrática dos
bens comuns (a educação, a saúde, os transportes, a água, etc.).
Que formas de comunidade são necessárias para isso? São
suficientes essas “comunidades de emergência, fortuitas e aleatórias”
que, segundo você, surgem nos “momentos políticos”?
Pensar formas cotidianas de gestão democrática e associativa
do comum, não nos obriga a pensar em um tecido social sólido, com
relações duradouras, compromissos fortes e instituições estáveis? Isso é
compatível com as subjetivações móveis, intermitentes e não
identitárias das comunidades de emergência?
Em definitivo, pode se estabilizar um “poder de qualquer um”
(ou dos 99%)? Isso pode acontecer sem se recair nas formas hierárquicas
de divisão do trabalho e distribuição das funções? Você tem experiências
disso em mente?
De imediato, não é minha tarefa encontrar a solução dos problemas em
torno dos quais tantos movimentos coletivos, de ontem e de hoje,
tropeçaram.
Há um primeiro nível da questão sobre o qual se pode responder o
seguinte: a experiência demonstrou que as formas de gestão comum dos
problemas que atingem a comunidade não podem ser adiadas sem prejuízo a
um futuro subordinado às estratégias de tomada e ocupação do poder. Não
se pode separar a luta pelo comum e a organização do comum.
Uma vez dito isso, surgem outros problemas. Por um lado, a questão de
quais formas alternativas de sociedade igualitária podem ser
estabelecidas no próprio seio da sociedade desigual. E, por outro, a
questão de quais são as formas de organização que isso requer.
Sabemos que no passado existiram – por exemplo, nos movimentos
anarquistas ou comunistas e, especialmente, no movimento anarquista
espanhol – formas fortes de sociedades alternativas: cooperativas de
produção, formas de vida coletivas, instituições educacionais e
culturais. É evidente que tudo isso fazia parte de uma força coletiva
que se traduzia também em meios poderosos de luta e em uma visão clara
do futuro.
Os movimentos democráticos recentes voltaram a colocar na ordem do
dia o aspecto das instituições alternativas, mas parece que é como se
incumbisse a eles constituir, do nada, o terreno do comum, ao passo que
no passado era o terreno do comum que fundava as instituições
alternativas. É um problema que não será resolvido apelando à
espontaneidade ou à organização, nem querendo substituir uma militância
de classe por uma militância das comunidades.
Os compromissos estáveis de ontem dependiam mais da solidez dos
horizontes de esperança do que das disciplinas de organização. As
“comunidades de emergência” estão atravessadas pela oposição entre
identidade e subjetivação. E a constituição de um comum vivido vai além,
forçosamente, da acumulação de forças que os objetivos militantes
específicos requerem.
6. Sobre política e tecnologia. O “clima” político dessa nova
política cidadã se comunica, estende e se amplia por meio da Internet e
suas redes sociais (as mais vulgares e massivas, como Twitter e
Facebook).
Há dez anos, observamos uma correspondência entre a
socialização das ferramentas comunicativas, para além do âmbito ativista
(do Indymedia aos blogs e redes sociais), e a emergência de processos
de nova politização protagonizados por gente comum (desde o “não à
guerra” e a resposta social após o atentado do dia 11 de março de 2004
até o 15-M). É como se as redes tivessem ajudado a tornar mais
participativa e móvel a coisa política.
Como pensar o uso político das tecnologias? Existe o ponto de
vista da neutralidade: a tecnologia é um instrumento neutro que serve
para o bem e para o mal. E existe o ponto de vista determinista: a
tecnologia, por si só, suscita transformações sociais (revolucionárias
ou catastróficas). Essa questão lhe interessa? Parece-lhe relevante?
Poderia haver um terceiro ponto de vista?
Temos elementos suficientes para destacar os limites dos dois pontos
de vista. Um instrumento técnico que serve como meio de comunicação
nunca pode ser, simplesmente, um meio neutro para qualquer fim.
A questão dos “meios” [de comunicação] sempre foi sobredeterminado
pela relação entre os que vivem no universo dos fins e os que estão
confinados no universo dos meios: a quem eram chamados, por essa, razão
homens “mecânicos”. Dito de outro modo, qualquer novidade técnica entra
no seio de uma determinada partilha do sensível, onde a própria eficácia
técnica é modulada por uma distribuição das capacidades e papéis
sociais. De maneira tal que uma novidade técnica não basta a si mesma
para definir uma nova partilha do sensível.
A tese catastrofista reaparece frente a cada novo meio: cinema,
rádio, televisão, internet, redes sociais. Apesar do que se possa tomar
emprestado das profundidades filosóficas heideggerianas ou do rigor
científico e político do marxismo, essa tese sempre remete ao velho mito
da caverna, que apresenta os ignorantes manipulados por aqueles que
movem os fios.
Agora bem, apesar de todos aqueles que assimilam Internet à
vigilância totalitária, as redes sociais serviram-na China, por exemplo,
para construir formas de informação e circulação das ideias que se
opõem ao monopólio do Estado policial. E em nossos países, supostamente
entregues ao individualismo consumidor, permitiram que as pessoas,
separadas entre si pelas novas formas de trabalho, comuniquem-se,
encontrem-se e reconheçam o que lhes une e ganhem confiança. Desse modo,
proporcionaram uma figura material ao poder dos anônimos.
Porém, esse efeito não é inerente ao meio técnico. A cada dia
constatamos que o próprio meio é também uma via de expressão e difusão
de todos os fantasmas identitários, racistas, sexistas e outros.
7. Sobre a subjetividade neoliberal. Se o poder consiste na
produção de subjetividade, qual é a subjetividade que se produz hoje em
dia? Existe algo como uma “subjetividade neoliberal”? Em que consiste?
Poderíamos falar, nesse sentido, de um poder que não está fora de nós,
mas que nos atravessa e conforma, no entanto, evitando os efeitos
“despotenciadores” de “naturalização”, “vitimização” ou
“culpabilização”?
É preciso resistir todas as descrições do mundo contemporâneo que o
apresentam como um mundo homogeneizado pela lei do mercado, que
constitui uma pequena burguesia globalizada. Muito ao contrário, o que
chamamos neoliberalismo é um processo de diferenciação extrema.
Qual é a subjetividade “neoliberal” dos operários e as operárias de
Bangladesh que fabricam – por um salário que recentemente alcançou os 65
dólares por mês – os suéteres que são vendidos em nossos supermercados?
E dos operários migrantes chineses, submetidos a um regime de
passaportes interno que recorda as cartilhas operárias do século XIX na
Europa?
Em nossos próprios países europeus, o neoliberalismo não costuma
produzir as formas de consciência “liberais”, supostamente homogêneas em
relação ao culto da livre empresa e da livre circulação de capitais e
mercadorias. A violência das manifestações contra o casamento
homossexual na França, o furor evangélico dos anti-abortion nos Estados
Unidos ou as recentes leis contra o aborto na Espanha provam a impostura
das teses dominantes sobre a correspondência entre liberalismo
econômico e liberdade sexual.
Há, de fato, formas múltiplas de conexão e desconexão entre
diferentes tipos de liberdade. Por exemplo, as campanhas em favor do
consumo instruído e responsável, que são desenvolvidas por diferentes
associações de consumidores e grupos ambientalistas, que se apresentam
como contrários ao sistema dominante, muitas vezes reforçam o modelo
dominante de “liberdade” proposto pelo sistema: o da liberdade como
instância de escolha, guiada pelo conhecimento.
Por outro lado, certa interiorização do modelo neoliberal teve como
efeito – positivo, ao fim e ao cabo – o questionamento de uma fé muito
simples das consciências progressistas de minha geração, que
consideravam a potência coletiva como algo já dado e identificavam muito
ligeiramente o socialismo e a gestão estatal dos meios de produção. E
criou formas de consciência e de ação militantes para as quais a
potência coletiva não é algo dado, mas a ser construída na própria ação.
8. O que é uma vitória ou um êxito na política? O 15-M
produziu infinitos efeitos na sensibilidade e percepção de mundo,
deslocando os limites do visível e o invisível, do possível e o
impossível, do tolerável e o intolerável (o exemplo dos despejos é muito
claro: agora é uma questão de rejeição social generalizada, ao passo
que antes era completamente invisível e estava absolutamente normalizado
e naturalizado).
No entanto, como (ainda) não se conseguiu nenhum grande
“êxito tangível” (nas leis, na esfera macroeconômica ou do poder
político), o discurso a respeito do 15-M é muito negativo,
“despotencializador”, triste e pessimista (“não se conseguiu nada”,
etc.). E esse relato tem efeitos depressivos terríveis.
Como podemos ver e valorizar (e fazer ver e valorizar,
comunicar) essas outras “conquistas” ou “êxitos” da política, como a
transformação da experiência vital e subjetiva, sensível e perceptiva
(sem a qual, de fato, as demais mudanças não são possíveis)?
É uma contradição inerente às formas atuais dos movimentos
democráticos. Inclusive, quando surgem de problemas muito concretos e
localizados, como as árvores do parque Gezi, em Istambul. São movimentos
fundamentalmente diferentes dos movimentos reivindicativos que podem
contar suas vitórias em termos de modificações inscritas na lei.
Pode-se estar contente ou decepcionado com aquilo que os poderes
públicos concedem, quando recebem a solicitação de alguma coisa
concreta. Quando não lhes é pedido nada, quando se constrói a ação sobre
a própria distância em relação a essas demandas, fica claro que, se o
velho mundo não se afunda por si mesmo, espreita-nos a depressão que nos
leva a dizer: nada pode mudar, ou melhor, é preciso voltar aos velhos
modelos das organizações revolucionárias ou progressistas.
A questão que se apresenta aqui é saber o que entendemos por um
movimento autônomo. Efetivamente, é muito importante insistir sobre o
aspecto da transformação subjetiva e sobre a necessidade de preservar,
por sua vez, a autonomia dos movimentos em relação às organizações
político-sindicais e ao sistema de demandas dirigidas ao Estado que
funciona como marco de sua ação.
No entanto, essa transformação não pode se manter por si só como
propriedade de um coletivo. Deve se verificar constantemente. E isso se
faz por meio das ações que desenvolve, como essas lutas contra os
despejos, ou as formas concretas do comum que cria, mas também através
de sua capacidade para realizar campanhas públicas pela transformação
das leis e as instituições.
É possível atuar como uma força autônoma que consegue vitórias
inscritas na lei e nas instituições, mantendo-se, ao mesmo tempo,
distância da disputa que pretende obter lugares no aparato de Estado.
Ou, em todo caso, é possível tentar unir a autonomia do movimento e a
ação que define objetivos por alcançar na relação de forças, tal e como
esta se inscreve também na lei e nas instituições.
Contudo, o problema mais importante é saber como a conquista de
momentos de igualdade no mundo da desigualdade se articula com a
perspectiva de um novo mundo de igualdade. Para além das banalidades
sobre a espontaneidade e a organização, há um problema que já pode ser
encontrado nos movimentos de emancipação do passado: a emancipação é uma
maneira de viver como iguais no mundo da desigualdade. E essa maneira
de viver bem pode ser autossuficiente. Quer dizer que, talvez, aqueles e
aquelas que viveram esses momentos de igualdade não desejem mais nada.
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Fonte: IHU online, 29/01/2014
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