Enzo Bianchi*
É decisivo que os cristãos experimentem hoje,
mais do que nunca, juntamente com os outros homens, buscar caminhos em
que a paridade dos direitos e da dignidade das pessoas, a justiça
económica, a igualdade de todos os cidadãos, seja qual for a fé ou a
ética a que pertençam, se possam realizar na polis: nisto se decide,
mais uma vez ainda, a sua fidelidade ao evangelho. Mas tal acontecerá
se souberem viver e realizar três condições (...).
O primado da fé
A revelação de Deus foi-nos dada através da
existência humana de Jesus: por isso, é na adesão a esta existência
humana que se afere todo o discurso sobre Deus. Hoje, os cristãos são,
de facto, capazes de compreender que também o «está escrito» pode ser
ambíguo, e que o critério de discernimento derradeiro continua a ser
apenas a conformidade com o Deus de que Jesus Cristo nos fez a
narrativa. Penso que, se os crentes souberem verdadeiramente chegar a
este conhecimento da fé e partilhar o acontecimento de salvação, que
foi a humanização de Deus em Jesus Cristo, saberão então opor-se
verdadeiramente a toda a possível deriva idolátrica. Pôr, de novo, no
centro a humanidade de Jesus é o que permite recuperar a gramática
humana de base necessária para a transmissão hodierna da fé, mas
necessária também para conter a barbárie que se difunde na sociedade,
uma barbárie que já não parece encontrar obstáculos. Sim, reafirmar o
primado da fé em Jesus Cristo, e também da existência cristã, significa
preservar o cristianismo de toda a recaída ou redução a religião.
A reserva escatológica
O segundo ponto pelo qual os cristãos se devem
medir é a necessidade de integrarem, na sua vivência, as realidades
últimas. É aquilo que chamamos a reserva escatológica, no sentido de
que a vida se não pode limitar ao nosso horizonte mundano. É
inaceitável reduzir a valoração do anúncio que os cristãos fazem à
eficácia concreta, ao êxito das suas intervenções, ao número das
multidões que enchem as ruas e as praças. Seria render-se à lógica
mundana da sociedade do espectáculo, àquela lógica perversa que
identifica o viver com o realizar actividades, e actividades de êxito
prescindindo da sua finalidade, do seu real carácter incisivo. Pelo
contrário, a dimensão escatológica relativiza toda a realização na
expectativa do regresso do Senhor e da instauração da sua justiça. É,
pois, muito importante acolher esta verdade: que o nosso hoje se não
identifica com o «ainda não», mas, se for vivido com responsabilidade
cristã e fidelidade aos homens, pode tornar-se aceleração do «ainda
não», do Reino de Deus. Isto, sim, é «relativismo cristão», capaz de
ler todas as coisas em relação com o momento em que a história será
ostensivamente julgada e as obras dos homens surgirão no seu autêntico
valor.
Uma arte da comunicação
Só pela recentração do primado da fé na
humanidade de Jesus e pela recuperação da dimensão escatológica da fé -
o melhor antídoto contra o mortífero oximoro da posse da verdade - se
pode agora compreender de novo o tema da comunicação e do diálogo sob
dois aspectos: o estilo da «sinodalidade» a nível intra-eclesial e o do
diálogo com os homens na história. De facto, a sinodalidade, o
«caminhar conjuntamente» no seio da Igreja acompanha a capacidade dos
cristãos para dialogar com os outros homens. Não é credível uma Igreja
que se diz em diálogo com os homens não cristãos e com as religiões,
mas não é capaz de suscitar em si debates, confrontos sérios na
liberdade e na aceitação recíproca. Pois cada cristão que cultive a sua
pertença a Cristo mediante a inserção na experiência orante e eclesial
está autorizado a falar com a necessária franqueza na comunidade: o
diálogo entre cristãos e não cristãos exige, por isso, franqueza e
humildade, também no seio da própria communitas. Sem estas
atitudes, não se edifica nenhuma casa de comunhão e não se elabora
nenhuma ética partilhada. E quem sofre com isso é, efectivamente, a
sociedade inteira.
Adesão ao evangelho e escuta dos homens
Na situação actual, (...) muitos auspiciam um
cristianismo vivido segundo o paradigma da religião forte e encarnado
em minorias activas e convincentes, capazes de garantir identidade e
visibilidade que se impõem, porque pensadas numa estratégia defensiva e
de concorrência. Quanto a mim, afirmo, ao invés, que só vivendo a
diferença cristã na companhia dos homens se inicia uma dinâmica que
abala a indiferença à fé cristã e às suas exigências, típica também de
muitos autoproclamados católicos. Se, pelo contrário, nos contentarmos
com um cristianismo «mínimo», com a existência de «um rosto popular do
catolicismo», com «uma presença capilar do catolicismo na sociedade»,
em prejuízo da qualidade cristã da vida e, por conseguinte, do
testemunho, corre-se o risco de ele se tornar sal que perde o seu
sabor, de se ver esmorecer a força do reino que, como fermento, faz
fermentar toda a massa, de ser uma cidade situada no monte, mas privada
de esplendor que atrai o olhar, de se descobrir como lâmpada posta no
candelabro, mas incapaz de iluminar seja quem for.
Creio, por isso, que, em vista de uma recuperação
do primado da fé, da expectativa das coisas últimas e de uma arte da
comunicação autêntica, continua a ser indispensável a leitura e o
conhecimento do evangelho entre todos os que fazem parte da comunidade
cristã. De facto, se é verdade que o cristianismo não é a religião do
Livro, é igualmente verdadeiro que só o evangelho permite o
conhecimento de Jesus Cristo, centro e coração do cristianismo. «A
ignorância das Escrituras é ignorância de Cristo», afirmava S.
Jerónimo, uma expressão que foi retomada propositadamente pelo Concílio
Vaticano II. Que figura de cristão poderá, alguma vez, emergir sem um
conhecimento directo de Jesus Cristo e da sua humanidade exemplar, como
a que pode derivar da leitura e da familiaridade com os evangelhos? Um
cristianismo em que o evangelho não inspira a vida, a esperança e a
linguagem dos crentes, como evitará tornar-se ritual, devocional, como
deixará de se reduzir a facto cultural ou social, se é que não mesmo a
fenómeno folclórico ou supersticioso? Só com a leitura pessoal e
directa da Bíblia - e, em primeiro lugar, dos evangelhos - poderá o
cristão alimentara sua fé e robustecer a sua capacidade de dela dar
testemunho.
Neste sentido, seria, pois, desejável um percurso
de sério aprofundamento na comunidade cristã que, em suma, se dê conta
de duas exigências. A primeira consiste em pôr o acento no evangelho,
naquele texto que o Concílio quis e soube colocar de novo nas mãos dos
católicos na sua integridade e riqueza, após séculos em que a Escritura
esteve exilada da catequese e da pregação: uns espantam-se, outros
lamentam-se perante o facto de que nem sequer um quinto dos italianos
afirma ter lido os quatro evangelhos. Como é possível, ignorando o
evangelho, conhecer Jesus Cristo e ver nele o Senhor? Como se pode
apreender a sua humanidade exemplar, a humanização de Deus, «para nos
ensinar a viver como homens neste mundo», segundo a expressão de S.
Paulo? Como perceber que a meta da humanização de Deus é a autêntica
humanização do homem?
A segunda exigência é a escuta da humanidade de
hoje, de homens e mulheres: uma escuta que deve ter lugar através da
emergência da dimensão antropológica. Sim, na conjunção do evangelho e
do homem, da fé e da dimensão antropológica, joga-se hoje o futuro da
fé cristã. Se houve e existe um fracasso, é o da transmissão, da
«tradição» da fé, mas o antídoto consiste apenas no restabelecimento do
primado do evangelho e da escuta do humano. Num período em que tudo
está posto em causa - a concepção da relação com o seu corpo, com o
outro sexo, com o sofrimento, com o tempo, com a natureza ... - é
necessário elaborar respostas de sabedoria que digam quem é o ser
humano e como se pode humanizar mediante uma qualidade de vida pessoal e
de convivência.
A religião precisa do exercício da razão
para não cair em formas paganizantes, mágicas ou supersticiosas, mas
reclama também que este exercício racional tenha lugar, não sem os
outros mas com os outros, todos habitantes da mesma polis. Em conjunto,
cristãos e não cristãos, devemos levantar a questão antropológica:
quem é o homem? Para onde vai? Como pode viver numa sociedade que luta
contra a barbárie e a favor da humanização? Das respostas que cada
qual, a partir do seu património espiritual, souber dar depende, sem
dúvida, o nosso futuro, mas também, já desde hoje, a qualidade da nossa
vida pessoal e da convivência civil.
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* Monge. Escritor. Prior de Bose
In Para uma ética partilhada, ed. Pedra Angular
Fonte: http://www.snpcultura.org/vol_tres_apelos_aos_cristaos.html 15.09.09 |
In Para uma ética partilhada, ed. Pedra Angular
Fonte: http://www.snpcultura.org/vol_tres_apelos_aos_cristaos.html 15.09.09 |
Imagem: Antoni Gaudí i Cornet foi um arquiteto catalão e figura de ponta
do Modernismo catalão. As obras de Gaudi revelam um estilo único e
individual e estão na sua maioria concentradas na cidade de Barcelona.
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