sábado, 18 de janeiro de 2014

DAS RAÍZES

 J. J. Camargo*
 
Existem os que viajam apenas para curtir, no final, um prazer insólito: o caminho da volta. Outros, menos afeitos a raízes, saem pelo mundo arrastando tralhas, sem compromissos com o que ficou para trás. Ninguém saberá se abdicaram de promessas de amor, nem se tinham algum afeto que justificasse voltar. Eles tratam a vida passada como mochilas usadas e, simplesmente, partem, sabe-se lá se por impulso ou desapego. Os mais conservadores, na construção de uma carreira profissional diferenciada, são muitas vezes impulsionados a sair em busca de refinamento técnico, mas ficam o tempo todo voltados para o que deixaram, e imaginando o que poderão trazer para justificar o investimento em saudade. São os aborígenes, com graus variados de incurabilidade.

Nunca se soube que estímulo levou Oscar Guillamondegui aos Estados Unidos depois de completado o curso de Medicina, com brilhantismo, em Buenos Aires. Mas o tamanho da ambição estava expresso na escolha do centro de treinamento: o MD Anderson, no Texas, um dos maiores centros de oncologia do mundo.

A carreira desenvolvida lá foi de fazer inveja ao americano mais ambicioso. Em poucos anos, se tornou chefe do serviço de cirurgia, casou-se, teve quatro filhos americanos, alistou-se no exército, onde chegou à condição de coronel médico, lutou na Guerra do Golfo, foi condecorado, e tornou-se um cirurgião respeitado internacionalmente.

Ocasionalmente, acusava uma fisgadinha sorrateira de saudade quando a Argentina era citada de passagem. Um dia, depois de tanto fisgar, desceu em Ezeiza e caminhou pelo centro velho de Buenos Aires, e ali entre a Suipacha e a Maipu, reconheceu a antiga sapataria, que visitara tantas vezes, na companhia saudosa do avô. Resolveu entrar. O dono, com idade próxima da sua, se identificou como a terceira geração na propriedade. “E Guillamondegui, sim, lembrava bem desse nome, era uma família muito querida pelo meu avô e meu pai. Gente boa, que sempre mandava fabricar seus sapatos aqui! A propósito, deixe-me ver no depósito, acho que tenho uma coisa que pode lhe interessar.”

Pouco depois, voltou com uma caixa de papelão com uma tarja: Oscar Guillamondegui. Dentro, uma sequência de moldes, onde se lia sete anos, 10 anos, 14 anos, adulto.

Certamente, para o velho sapateiro, não importava quantos caminhos aqueles pés, agora gigantes, tivessem cruzado. As raízes estavam fincadas ali, na velha Buenos Aires, sobre a calle Esmeralda, entre Suipacha e Maipu.

Quando saiu na calçada, só tinha uma certeza: estava na hora de voltar para casa. E não podia ser casualidade aquela agência de viagens, justo ali do outro lado da rua.
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* J. J. Camargo é cirurgião e chefe do Setor de Transplantes da Santa Casa de Misericórdia
Fonte: ZH online, 18/01/2014

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