Rodrigo Suzuki Cintra*
A vestimenta foi escolhida de última hora, apenas alguns momentos
antes de entrar pela primeira vez em cena. Deveria passar uma impressão
contraditória, desproporcional. As calças, grandes e largas demais, o
paletó, muito apertado e descosturado, o chapéu-coco pequeno e as botas
exageradamente grandes e desgastadas. Mas o figurino somente estaria
completo com a incorporação de uma bengala de bambu e um bigodinho
característico, em forma de trapézio.
Esses elementos, adereços que fundam toda uma simbologia, no entanto,
não podem exercer sua função cômica e de estranhamento sem um ator que
atribua significado a eles. Mesmo o jeito de andar peculiar, com as
pernas muito abertas, a mania de tirar o chapéu para cumprimentar todos,
inclusive objetos inanimados, os trejeitos com que sorri e faz pose
para a câmera não são suficientes para completar a equação que explique
um pouco de como Carlitos foi idealizado como um personagem
absolutamente desconcertante e único.
Trata-se de um vagabundo, não há dúvida, mas o mesmo sistema que o
põe à margem, que inviabiliza seu sucesso enquanto um homem bem
posicionado no universo do capital, tem que se curvar perante sua ética
pessoal, o que verdadeiramente o caracteriza. É o lado humano desse
maltrapilho que nos conquista, acostumados que estamos com uma ética que
pulveriza o social e estabelece um individualismo cruel. Carlitos não é
apenas um palhaço - o mais perfeito que o cinema pôde inventar. É, para
além da graça, o personagem mais crítico ao sistema de poder e
dominação que o século das imagens retratou.
Sua primeira aparição nas telas se deu logo no segundo filme de
Charlie Chaplin, "Corrida de Automóveis para Meninos", em 7 de fevereiro
de 1914. Chaplin, no entanto, ao recordar os momentos iniciais de sua
longa carreira, alega que a estreia do vagabundo se deu no terceiro
filme rodado pela Keystone Studios, "Carlitos no Hotel". Controvérsias à
parte, a verdade é que Chaplin, há cem anos, talvez tenha construído o
personagem ficcional mais famoso de todo o século XX.
Artista múltiplo, Charlie Chaplin não era, é preciso ressaltar,
apenas ator. Foi diretor, roteirista e produtor da maioria de seus
filmes. Pode-se acrescentar que foi um dançarino e músico formidável,
também. Um verdadeiro gênio, que dominava a sua arte, o cinema, como
nenhum outro.
Chaplin, com o seu Carlitos, foi completamente insuperável e
idolatrado na era do cinema mudo e seus trejeitos, como o seu famoso
pontapé para trás, foram reconhecidos e imitados pelo mundo afora.
Muitos, principalmente os críticos de cinema, se perguntaram se Chaplin
sobreviveria na era do cinema falado. Hoje, com o distanciamento que só o
tempo pode impor às grandes obras, pode-se perceber que a arte de
Chaplin não morreu com a introdução do som, mas impôs ao diretor novos
desafios para contar uma história. Chaplin, obviamente, venceu a parada.
Se por um lado, o personagem desaparece propositalmente das telas, com a
revolução que a fala representou, pode-se encontrar a lógica de
Carlitos em filmes como "O Grande Ditador" e "Luzes da Ribalta" (ambos
filmes essenciais).
O vagabundo é um tipo e tanto: balança uma bengala e faz pose de
cavalheiro, porém, não se furta a pegar e fumar bitucas de cigarro que
encontra pelo chão ou roubar docinhos de criança. Satiriza o poder
estabelecido e tem um jeito peculiar, às vezes meio de lado, às vezes de
frente, quase uma espécie de empurrão, de chutar o traseiro das
pessoas, principalmente os representantes da ordem e os poderosos.
Ninguém realmente se machuca com esses pontapés inofensivos, é bom que
se diga, mas em algum lugar o poder sofre um pouquinho. Pegos de
surpresa, os personagens que recebem os pontapés no traseiro não se
enganam: foram desrespeitados, não foi reconhecida a sua autoridade.
Ironia ou não, esse personagem marginal ao sistema não tem voz. Falar
não era o modo de expressão mais apropriado ao vagabundo. Então,
Carlitos tem que testar, a todo momento, os limites da linguagem. A
expressão corporal magistral possibilita o "timing" da piada. Mas a
maior de todas as subversões desse personagem é a maneira como o
vagabundo ressignifica os objetos de consumo, como revoluciona a sua
utilidade. Carlitos não faz aquisição nem destruição dos objetos do
desejo. Ele opera uma disfunção, uma perda do significado do objeto,
que, sendo feito para certo propósito, serve a outro completamente
diferente.
A bengala de bambu é um exemplo. Carlitos a balança da mesma maneira
que os policiais balançam cassetetes. Porém, se esses cassetetes
simbolizam a ordem, o sistema, a bengala de Carlitos, ao contrário, vem
ao mundo só para confundir e pregar peças. A bengala, que deveria servir
para se apoiar, para o vagabundo tem utilidades que ultrapassam - e
muito - o objetivo de impedir a queda. Ela torna as coisas distantes
mais próximas, por meio de um movimento peculiar com o qual Carlitos
puxa outros objetos se utilizando do gancho da bengala. Ela também serve
para dar arrastões em policiais, cutucar as pessoas - principalmente no
traseiro, local predileto do vagabundo para tirar sarro - e impedir que
indesejados cheguem muito perto. Varinha mágica?
"Em Busca do Ouro", obra-prima de Chaplin, mostra como a
ressignificação dos objetos operada pelo vagabundo, ao ser levada às
últimas consequências, imprime uma poética da imagem que ajudou a tornar
possível a compreensão do cinema como arte, nos primórdios do cinema,
ainda mudo.
Passando fome, confinado em uma cabana por causa da neve e do frio,
Carlitos resolve fazer uma refeição inusitada, quase um banquete, apesar
da ausência total de alimento. Come seu sapato, que cozinhou com
dedicação. Seriam os cravos espinhos de um suculento peixe? Os cadarços,
espaguetes?
No mesmo filme, uma cena banal, aparentemente simples, vai dar o tom
da beleza e registrar um dos momentos máximos da história do cinema.
Carlitos adormece e sonha que está conduzindo uma dança realizada por
dois pãezinhos presos por garfos (pernas). A dancinha dos pães lembra o
próprio andar do vagabundo - passos de dança harmoniosos, que flertam
com o balé, mas, ao mesmo tempo, desconcertantes, quase impossíveis. Uma
coreografia imaginária desse mestre, para quem o improviso também era
uma forma de técnica.
"Tempos Modernos" (1936) é o último filme em que se pode encontrar a
figura de Carlitos. Ali, é possível identificar uma série de questões
que tornam a produção o que o crítico francês André Bazin chamou de um
verdadeiro "filme de tese". A maquinização do cotidiano elevada à
potência da mecanização dos gestos, a questão social e política
(Carlitos é preso numerosas vezes nesse filme, sem ter feito mal
algum...), o universo do trabalho retratado pela lógica dos excluídos -
tudo é explosivo.
De caso pensado, Chaplin, que negou ao vagabundo a possibilidade da
fala durante toda a carreira, resolve, ao fim do filme, fazer o
personagem cantar. Carlitos, no entanto, vai cantar uma música em que as
letras não fazem sentido. Ele simplesmente inventa palavras, que,
apesar de parecer familiares, não existem. E conta uma história completa
apenas com os artifícios e manhas que adquiriu ao longo da construção
do mítico personagem burlesco. O espectador entende perfeitamente bem a
história inventada e cantada por Carlitos, apesar de faltarem as
palavras. Golpe na crítica, Chaplin provava que a arte mímica ainda
fazia todo sentido, ao mesmo tempo em que dava o primeiro passo para o
cinema falado. Seu filme seguinte foi "O Grande Ditador" (1940), uma
sátira aberta e ultracrítica de Hitler.
Curiosamente, Chaplin não precisou, nesse filme, alterar muito seu
figurino habitual. De fato, Hitler usava um bigodinho em forma de
trapézio muito parecido com o de Carlitos. O golpe ao ditador não
poderia ser, então, mais certeiro. Perante a tragédia máxima da ascensão
do nazismo e a manutenção do poder de Hitler, Chaplin apresentou uma
comédia mordaz. Entre o choro e o riso, em 1940, um bigode dividia o
mundo.
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* Rodrigo Suzuki Cintra é filósofo e doutor em direito pela USP, leciona na Universidade Mackenzie
Foto: Chaplin como Carlitos em "Corrida de Automóveis para Meninos": esse
artista múltiplo talvez tenha criado, em 1914, o personagem ficcional
mais famoso do cinema do século XX
Fonte: Valor Econômico online, 31/01/2014
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