MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS
"A memória é a busca da identidade, podendo-se nela
remodelar tanto os fatos vividos do passado como
os fatos do futuro. Só o
presente é rígido, inflexível".
East Lansing (Michigan), 1976
CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA
Em 1976, aos 23 anos, estudante do programa de mestrado em comunicação
da Michigan State University, tive a chance de entrevistar Jorge Luis
Borges, então professor visitante no departamento de Espanhol e
Português.
Na época, eu atuava como correspondente dos Diários Associados nos EUA.
Um de meus editores, o poeta e jornalista Álvaro Alves de Faria, já era
um especialista em Borges e me incentivou muito a entrevistar o
escritor, de quem até então eu não havia lido nada.
Ele próprio, Álvaro, no mesmo ano, passara 12 horas em conversas com o
autor de "O Aleph", em sua casa em Buenos Aires. Mas, como me relatou
agora: "... [Borges] falava muito bem da ditadura argentina e por
extensão da brasileira; guardei a entrevista por 25 anos, até que virou
livro em 2001" --"Borges: o Mesmo e o Outro"[Escrituras, R$ 16, 80
págs.].
Meu texto, "Borges, uma Vida por Viver", saiu em 14 de março de 1976, na capa do "Jornal de Domingo" do "Diário de S. Paulo".
O grande escritor argentino tinha perdido a mãe, dona Leonor, oito meses
antes, e, aos 76 anos, estava apaixonado por María Kodama, a quem havia
pedido em casamento pouco antes de viajar para Michigan. Segundo o
biógrafo Edwin Williamson, no livro "Borges - Uma Vida" [Companhia das
Letras, R$ 68, 672 págs.], o escritor o fez sob o argumento de que seria
"um escândalo" os dois viverem juntos nos EUA sem estarem casados. Mas
eles só viriam a se casar, de fato, em 1986, pouco antes da morte dele.
Não me lembro de ter visto Kodama durante a entrevista. Williamson
relata que os dois moraram num apartamento de dois quartos no campus da
universidade.
Minha recordação é de ter sido recebido numa casa grande, fora do
campus, talvez a de Donald Yates, tradutor de Borges para o inglês e
professor de espanhol em Michigan, que havia sido o anfitrião do
escritor em dezembro de 1975, na ocasião de um seminário sobre sua obra.
Além de Borges, só me lembro da presença de Dennis Soebbing, um amigo
meu, que fotografou o encontro.
Chegamos no início da tarde. Conversamos (em inglês, por iniciativa de
Borges) mais ou menos por duas horas. A sala logo ficou escura --em
Michigan, no inverno, o sol se põe cedo--, e eu tive dificuldade para
tomar notas. Borges, já cego, não tomou a iniciativa de acender nenhuma
luz. Nem eu.
Ele foi muito simpático, elogiou Camões, antes de recitar versos dos
"Lusíadas" de cor, Eça de Queiroz e Euclydes da Cunha. Não se recusou a
falar sobre nenhum tema: cegueira, política argentina, Neruda --seu
antigo desafeto.
Mas nem mesmo essa extraordinária oportunidade para um jovem jornalista
fez com que meu interesse pela obra de Borges despertasse ali, nem nos
oito anos seguintes.
Em 1984, como secretário de Redação da Folha, tive nova chance de
conversar com Borges, junto com colegas, alguns admiradores
entusiasmados do poeta, como Caio Túlio Costa e Augusto Massi.
Borges viera a São Paulo a convite deste jornal e da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Foi um grande happening sua
palestra para mais de mil pessoas no pátio do estacionamento da Folha.
Após este encontro, afinal comecei a ler Borges. Mas pouco.
Só fui conhecer realmente sua obra a partir de 1999, quando o cineasta
Hector Babenco leu uma resenha minha do livro "There Is no Borges"
(Borges não existe), do alemão Gerhard Köpf. Segundo o romance, Borges
teria sido um personagem criado por Adolfo Bioy Casares, interpretado
por um ator.
Babenco se entusiasmou com a história e me pediu para escrever um
argumento para um possível filme. Foi então que mergulhei nos escritos e
na biografia de Borges. O filme não saiu. Mas o aprendizado com o
personagem inesquecível que conheci há 38 anos tem sido enormemente
enriquecedor.
Ao tentar reconstituir aquele encontro em Michigan, dei-me conta de como
é verdadeira uma frase que Borges disse em 13 de agosto de 1984, no
estacionamento da Folha, em voz baixa, em meio ao barulho dos
automóveis: "A memória é a busca da identidade, podendo-se nela
remodelar tanto os fatos vividos do passado como os fatos do futuro. Só o
presente é rígido, inflexível".
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Fonte: Folha online, 12/01/2014
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