Deus fez Adão do
barro, depois tirou da costela de Adão sua companheira, Eva. Então, ao
menos até o Pecado Original, esses três únicos habitantes do mundo
paradisíaco viveram em completa harmonia entre si. Mais que isso, eles
estiveram como um trio de irmãos siameses.
Sentiam e pressentiam e “conversavam” juntos, sem mediações,
como se fossem Lloyd e Floyd de Nabokov.
Sentiam e pressentiam e “conversavam” juntos, sem mediações,
como se fossem Lloyd e Floyd de Nabokov.
O Pecado Original foi a operação de
separação dos três, pensada impossível até então. Imaginava-se que não
havia tecnologia para tal, mas a ciência é algo sem ética, vem dos
lugares onde o mal não tem barreiras. Então, o médico Lúcifer conseguiu
com bom bisturi a laser colocar em liberdades os três siameses.
O povo antigo que criou essa lenda
conhecia a tecnologia da cerâmica. Desse modo, pensou Deus como quem
trouxe para si um objeto feito pelas suas próprias mãos, o homem feito
como que um vaso. Este objeto jamais se separaria dele. Afinal, o
criador lhe deu o significado para além do que poderia significar para
outros. Deus esteve sempre em comunhão com Adão, e sendo Eva uma peça do
próprio Adão, assim se estabeleceu o contato sempre imediato entre os
três. Não se esperava nenhuma avaria nesse mostrengo de três cabeças.
Mas um monstro de três cabeças é um
monstro. Lúcifer surgiu, então, em nome da estética, para fazer o
desligamento. Obcecado pelo belo ou, melhor, por uma perfeição incapaz
de conviver com o acaso, que nada é senão Deus, Lúcifer não podia
aceitar no mundo paradisíaco um monstro. Foi adiante com a sua “estética
da destruição”.
Mas não podia fazer isso se surgisse
como médico, então, veio como animal. Um animal é sempre alguém muito
tolo para fazer alguma coisa como uma sofisticada operação. Mas, na
condição de serpente, passou despercebido por Deus e por Adão, enquanto
trocava ali algumas palavras com Eva. Despertou a moça para aquilo que a
mulher tem de propriamente como uma sua característica: o homem é menos
resignado que a mulher, no entanto, segue ordens, a mulher segue ordens
até que você diga para ela que não pode espiar em um lugar, não pode
contar uma fofoca, não pode namorar fulano de tal e, principalmente, não
pode comer determinada coisa. Não dá outra: falou isso, é como que
pedir para a mulher esquecer sua resignação e ir fazer o que lhe foi
proibido. A mulher destrói facilmente um reino para fazer algo fútil que
lhe é proibido.
Lúcifer contou para Eva que Deus
escondia um poder. Claro que era um poder poderoso o de conversar por
fora da relação de siameses, ou seja, o de usar o mistério da
objetividade, de conhecer aquilo que não foi feito por nós e de falar
sobre tal coisa sem necessariamente conhece-la em sua intimidade. Esse
saber, que era o saber da árvore do conhecimento, completamente
dispensável no paraíso, era um falso dom para quem estivesse fora do
paraíso, ainda que cedesse aparente poder para quem viesse a imaginar
possuí-lo e planejar contar essa novidade para outros. Aliás, era também
a porta de saída do paraíso. Lúcifer disse quase tudo isso a Eva, mas
não precisava tanto, qualquer curiosidade outra que ele despertasse em
Eva, e ela desobedeceria Deus e tentaria comer do fruto da árvore do
conhecimento.
Quando Adão e Eva provaram a liberdade
usufruindo da desobediência, deixaram de pressentir e sentir Deus de
modo imediato, e também um ao outro. A liberdade que se iniciou com a
desobediência, então, se completou com a individualidade. Assim, ouviram
Deus como uma voz exterior. Ouviram a si mesmos como vozes exteriores.
Notaram que existia algo em seus corpos que se movia sem que eles o
comandassem. O pênis de Adão tinha ereção e os seios de Eva entumeciam e
ela sentia uma estranha movimentação no interior da vagina, e esta foi
tornada capaz de molhar como que uma boca que produz saliva. Tudo isso,
como Santo Agostinho bem disse, já era praticamente o castigo divino de
imediato. Uma vez como membros separados do corpo de Deus, o corpo
triplo, passaram a experimentar o quão vergonhoso é ter membros de um
corpo que passam a agir por conta própria. Deus ficou condoído quando
viu seus parceiros xipófagos sendo separados dele, e tão isso foi
ocorrendo e ele foi mostrando para Adão e Eva o quão dolorido era ter um
membro de um corpo tomando decisões por si só. Não à toa a maior parte
da filosofia nunca foi outra coisa que a capacidade de se autodominar, e
a religião, então, pouco coisa a mais que isso. Sempre foram tentativas
de reparar essa desunião.
Quando Deus apareceu para Adão e Eva já
como elemento exterior, e eles ouviram sua voz fora de suas circulações
sanguíneas, ficaram apavorados com o som e ao mesmo tempo se cobriram,
pois sentiram vergonha de não mais controlar o próprio corpo. A harmonia
tripla havia se quebrado. Com o fim dos irmãos siameses, eles já
estavam fora do Paraíso. Quando Deus os expulsou oficialmente, eles já
estavam fora, e a expulsão formal só foi necessária porque nela Deus
disse algumas palavras de como seriam as normas de vida dali para
diante. Lembrou a Adão e Eva que teriam de trabalhar e que não seriam
mais mortais. Eis aí a vida objetiva. Lembrou também que iram padecer da
concupiscência, ou melhor, de todo o embaraço, brigas, desavenças,
ciúmes, injustiças, mortes que ela provocaria. Eis aí a vida subjetiva.
A narrativa da Queda é uma das alegorias
mais antigas e mais belas que temos. Muitos a tomaram literalmente
durante anos, até porque não a metáfora, mas a consciência da metáfora é
alguma coisa de complexo e tardio na linguagem humana. Claro que,
quando o homem se viu diante do alegórico e metafórico de um lado, tendo
do outro o literal, ele notou aquilo que sabia por intuição, que a
narrativa bíblica da Queda era um conto moral, não uma descrição capaz
de se tornar um modelo sobre “como nasceu o mundo e o homem” etc. Mas,
além de conto moral, dava uma ideia de como é a esfera imunológica,
para usar uma expressão de Sloterdijk. A esfera como um ambiente
completamente endorfinado, um espécie de útero, e esse ambiente ficou na
consciência dos homens em forma de uma utopia, uma cidade de completa
segurança, nenhum esforço e toda a felicidade.
Algumas pessoas não sentem saudades do
útero, e não pensam que seja necessário ter em mente uma utopia,
exatamente porque não passaram pela Queda. Elas se imaginam em harmonia
paradisíaca com Deus, como um dia Adão e Eva estiveram. Em alguns
momentos, elas se sentem como o próprio Deus, quando Adão e Eva lhe
faziam companhia como irmãos siameses.
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* Filósofo. Prof. Universitário. Escritor.
Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/oriundos-da-queda/25/01/2014
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