Marcelo Coelho*
No filme de Frédéric Fonteyne, a masculinidade pode ser, quando estereotipada, uma prisão
O menino tem 15 anos, mas, como é comum nos países europeus, ainda
parece estar na pré-adolescência. Volta machucado da escola; tinha
entrado numa briga.
A mãe, que é enfermeira num hospital, está atrasada para o trabalho; dá
um afago no garoto e se despede, recomendando que ele faça o curativo
sozinho. Você sabe onde fica o estojo de primeiros socorros, diz ela, e
bate a porta.
A cena poderia ter se encerrado aí. Mas "Tango Livre", filme que entra
em cartaz nos próximos dias, prolonga um pouco a situação. A câmera
chega até o rosto do menino, que aproveita o ventilador ligado para
refrescar a pele em carne viva.
Masculinidade e desamparo são sentimentos que dançam o tempo todo em
volta dos personagens desse drama bonito, dolorido e otimista. Ainda que
o diretor seja homem, muitas vezes um olhar feminino pousa sobre os
personagens.
Quase tão frágil quanto o filho da enfermeira, Jean-Christophe (François
Damiens) é guarda numa prisão, e leva uma vida solitária. Sua maior
companhia é o peixinho vermelho do aquário, que no filme surge quase
como outro detento, no cotidiano obscuro da classe baixa belga.
Jean-Christophe aprende tango nas horas vagas, e nessas aulas acaba conhecendo a enfermeira, que lhe vira a cabeça.
Na "Carmen", de Bizet, o pobre soldado José acaba seduzido pela cigana
linda e magnética que dá seu nome à ópera. Liberta-a da prisão, foge com
ela para o esconderijo dos criminosos, e termina preterido no coração
de Carmen, que já se inclina para o toureiro Escamillo.
Alice, a enfermeira do filme, não é especialmente bonita, nem perigosa
como Carmen. Simplesmente as coisas acontecem à sua volta. De todo modo,
seu mistério e seu charme latino são capazes de perturbar mais
marmanjos do que o pobre carcereiro. Ela tem dois maridos, e ambos estão
presos, sob a guarda de Jean-Christophe.
Contando o filho, são quatro homens em torno da personagem, vivida pela
atriz Anne Paulicevich, que também escreveu o roteiro do filme.
Alguns escritores homens são elogiados por "entender a alma feminina".
No caso de "Tango Livre", a autora do roteiro entende admiravelmente a
"alma masculina", e seu diretor, Frédéric Fonteyne, parece ter pleno
domínio do "olhar feminino" sobre as coisas.
Como se sabe, o tango originalmente era dançado apenas entre homens. A
situação se reproduz no filme, do modo mais insólito: são os presos que
resolvem aprender o tango, com alguns condenados argentinos que formam
um grupinho à parte na cadeia.
Trata-se de um recurso dos dois maridos para não dar ao carcereiro
Jean-Christophe, razoável dançarino, uma vantagem no coração de Alice.
Muita coisa ainda vai acontecer em "Tango Livre", mas as cenas de dança
na prisão, com as autoridades penitenciárias belgas sem saber muito como
reagir ao fenômeno, já valem o filme inteiro.
A agressividade e a confiança, o machismo e a ternura, o feminino e o
masculino se concentram e harmonizam no rosto de cada personagem. A
extrema tensão de um presídio, aliada à outra tensão de uma múltipla
rivalidade amorosa, parecem se formalizar numa dança que se faz sem
música, só acompanhada pelo bater de palmas dos detentos.
Quem está livre, quem está preso numa situação dessas? Alice vive
cercada, vigiada por seus homens. Ao mesmo tempo, exerce um calmo
domínio sobre todos eles. São meninos, no fundo: com vários crimes nas
costas, ou carregando apenas uma mochila de colegial, sofrem de uma
insegurança permanente, engalfinham-se, xingam, fazem as pazes e querem
colo.
Será que é isso, o "masculino"? Penso numa dificuldade extrema para
amadurecer. Ao mesmo tempo, veremos no filme de que modo o filho de
Alice se defronta, da noite para o dia, com o mundo real.
Saber que o mundo real não corresponde aos nossos sonhos é uma coisa.
Outra coisa é conduzir a vida de acordo com essa percepção.
Masculinidade e amadurecimento se confundem nesse processo.
Talvez o segredo, para os autores de "Tango Livre", possa ser dominado
como os passos dessa dança argentina. Nela, os homens por vezes se
feminizam, sem deixar de ser homens o tempo todo; as mulheres seduzem,
dominando, e cedem quando menos se espera.
Os papéis sexuais não deixam, quando estereotipados, de constituir uma
prisão; nada menos maduro do que o menino assombrado pelas próprias
dúvidas sexuais, tentando uma macheza que sua sensibilidade não permite.
Guardas, criminosos, meninos, mulheres, se entendem melhor com um pouco
de jogo de cintura. Dentro de uma prisão belga talvez seja mais fácil;
quanto aos cárceres brasileiros, talvez seja mesmo o caso de tocar um
tango argentino.
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* Colunista da Folha
coelhofsp@uol.com.brFonte: Folha online, 29/01/2014
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