Miguel Sanches Neto*
O mercado brasileiro do livro entra em um estágio mais profissional,
criando novas expectativas tanto por parte dos editores quanto para
aqueles que escrevem. Por outro lado, os mais puristas se assustam com
os comportamentos editoriais menos inocentes. O fato é que a última
década vai ficar como uma zona de passagem entre uma literatura com os
defeitos e as qualidades do artesanato de linguagem para o momento ainda
nebuloso de descoberta da produção industrial.
Nos bastidores de prêmios, bolsas de criação, seleção para
antologias, espaços nos jornais, convites para festas literárias, enfim,
na ampla rede literária que se instalou meio caoticamente, como é
próprio no Terceiro Mundo, há uma briga de foice para se definir qual é o
conceito de escritor no Brasil. E aí parece residir o grande equívoco
comportamental de um sistema literário afeito a visões monocromáticas,
porque centralizado em poucas instâncias de consagração.
Em um levantamento ligeiro, poderíamos chegar a algumas variações do conceito de escritor:
1. O clérigo, geralmente o que tem mais valor artístico agregado.
Nessa concepção, o escritor é um devoto cultor da palavra, que se coloca
a seu serviço. Escrever é defender uma forma literária, um idioma que
corre o risco de desaparecer em tempos de barbáries linguísticas. O tipo
de texto aqui valorizado pode ser o inovador, o clássico, o bem
escrito, o hermético, o dito profundo etc.
2. O ativista, agora em franca ascensão simbólica em função das
ideologias em voga. Para ele, ser escritor é quase como invadir
repartições públicas, fazer protesto nas grandes avenidas, esfregar nas
fuças dos bem pensantes a dura realidade dos excluídos. O leque de
textos desse grupo é imenso: vai das conversas desbocadas de boteco aos
rosários de palavrões em forma de narrativa, da escrita por atores
sociais às sociologias dos autores universitários.
3. Outra manifestação do escritor é a dos que escrevem como
passatempo, nas horas de folga, nas aposentadorias. Tendem a exigir
menos da literatura e a encaram como algo secundário, como colecionar
selos, cultivar um jardim ou fazer viagens a lugares famosos. A
circunstância dessa escrita não a desmerece enquanto fator de
constituição de um sistema heterogêneo. Talvez alguns desses livros,
escritos sem as pressões do prestígio ou da venda, também fiquem como
referenciais.
4. Outra forma de ser escritor é a de quem se sente assim em tempo
integral e tudo faz em nome da mãe literatura, não deixando de pensar
nela em nenhum de seus momentos existenciais. A vocação é quase uma
corcunda. Mas esse autor não escreveu ainda nenhum livro, porque se
guarda para o grande romance que um dia mudará o que entendemos por
arte.
5. Mais recente, impôs-se a ideia de que escrever literatura pode ser
sim uma profissão como outra qualquer. E que escritor é aquele que, na
sua declaração de Imposto de Renda, computa quase somente os ganhos
oriundos dessa atividade. É um escritor multitarefa, que escreve livros,
faz resenhas, tem coluna em jornal, participa de júris, desenvolve
projetos especiais, cultiva a aparição em eventos, traduz, escreve obras
infanto-juvenis que correspondam aos valores pedagógicos vigentes,
organiza antologias e um etc. imprevisível. Cada vez mais, tem gente se
profissionalizando literariamente à brasileira. Sem altas vendagens, o
escritor não pode contar apenas com os direitos autorais, então vive,
para usar o trocadilho criado por João Antônio, de seus tortos
editoriais. A esses os clérigos geralmente chamam de "os vendidos ao
mercado".
"Defendo aqui que não existe uma literatura brasileira.
E cada vez
mais gêneros baixos vão exercer
seu poder sobre a produção
autonomeada
séria."
Felizmente, a literatura brasileira é tudo isso junto e bem
misturado. Qualquer tentativa de valorizar apenas uma dessas vertentes
levará a uma visão unilateral de um fenômeno que é por natureza
múltiplo. Em vez de construir discursos de seleção editorial, parece-me
mais producente aceitar que os vários tipos de escritor interagem entre
si, num contexto propício a interferências.
Gosto de imaginar que a personagem Macabéa, do romance "A Hora da
Estrela", de Clarice Lispector, tenha nascido do contato da autora com
um livro que ainda hoje, em certos círculos, é negado. Conta Clarice ao
repórter Júlio Lerner, na TV Cultura, em 1977, que esse seu romance de
maior sucesso (publicado naquele ano) era sobre "uma miséria anônima".
Também afirma ela que usou como referência sua infância pobre no Recife,
além de ter visitado um aterro onde nordestinos se reuniam em São
Cristóvão, no Rio.
No entanto há, se minha intuição estiver certa, um antecedente
editorial que criou uma sensibilidade para essa sua personagem e, dentro
do clima de participação política da época, ao qual Clarice aderiu, foi
determinante para que ela desse uma grande guinada na sua literatura,
afastando-se dos dramas de uma classe média que ela tão bem conhecia
para enxergar melhor as vidas em estado de abandono. Em 1961, ao lançar
"A Maçã no Escuro" num evento coletivo, a Semana Paulista, Clarice se
encontra com a autora que era a sensação do momento e recebe dela um
livro muito diferente, com uma dedicatória nada literária. Esse livro é
"Quarto de Despejo": "A ilustrada e culta escritora Clarice Lispector.
Desejo-te felicidades na vida, Carolina Maria de Jesus. São Paulo,
17-7-1961".
A favelada pouco alfabetizada dá o diário sobre a sua condição de
catadora de lixo que passava fome e assim confronta sua vida de excluída
com a vida de uma escritora cosmopolita. É um diálogo além da
literatura, que não pode ter deixado de produzir efeitos na percepção
estética de Clarice. Assim, nessa minha hipótese, Macabéa é uma leitura
clariciana de "Quarto de Despejo" que, um ano e pouco depois do
lançamento, já tinha vendido 80 mil exemplares.
Defendo aqui que não existe uma literatura brasileira. E cada vez
mais gêneros baixos vão exercer seu poder sobre a produção autonomeada
séria. E qualquer forma de resistência revelará sempre uma postura
conservadora, de idolatria de um conceito de literatura que é fruto de
canonizações acadêmicas.
Se há um risco para a literatura produzida hoje no Brasil, ele está
em certa tendência para um isolacionismo cultural. O afastamento leva o
escritor que se vê como exceção a viver em um universo e em uma
linguagem artificiais. Isso desarma as tensões de quem deve estar dentro
de situações sociais reais. Ernest Hemingway, quando não precisou mais
trabalhar como jornalista por causa do sucesso de seus livros, sempre se
envolvia em algum conflito, que podia ser uma guerra, uma caçada, uma
pescaria. Mas esse mesmo enfrentamento direto do mundo pode acontecer
num emprego obscuro, numa repartição pública, numa agência de
publicidade, numa sala de aula, na redação de um jornal etc. Sem a
convivência intensa com os seres comuns, que Clarice chamava de "pessoas
sólidas", a literatura tende a ser fazer desnecessária.
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* Miguel Sanches Neto é ficcionista, autor, entre outros, dos
romances históricos "Um Amor Anarquista" (Record, 2005) e "A Máquina de
Madeira" (Companhia das Letras, 2012)
Fonte: Valor Econômico online, 17/01/2014
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