João Pereira Coutinho*
Hoje vivemos o supremo paradoxo: nunca se tiraram tantas fotos; nunca elas tiveram tão pouco valor
1. Fotografias: haverá coisa mais preciosa? Em tempos arcaicos, talvez. A
minha avó costumava contar que o maior tesouro que trouxe da casa dos
pais eram as fotos de família. Álbuns e álbuns com fotos em preto e
branco, algumas coloridas (manualmente, claro) e impressas em cartão
grosso. Todas elas insubstituíveis. Estranho tempo, esse, em que os
retratos valiam tanto como ouro. Ou até mais que ouro.
Hoje vivemos o supremo paradoxo: nunca se tiraram tantas fotos; nunca elas tiveram tão pouco valor.
O jornal "Guardian" avisa que 2014 será o ano em que o mundo vai bater
recordes no número de fotos tiradas: qualquer coisa como 3 trilhões.
Esse excesso não pode ser coisa boa: a facilidade com que hoje se tiram
fotos é diretamente proporcional à facilidade com que nos esquecemos
delas.
Uma amiga, aliás, contava-me há tempos uma história instrutiva: em três
anos de maternidade, ela acumulara mais de mil fotos do primogênito. Até
descobrir que não tinha nenhuma para mostrar em papel ou em moldura
--permaneciam todas na memória do laptop, ou na câmera, ou no celular. À
espera de melhores dias.
Três trilhões de fotos para 2014, diz o "Guardian". E, no fim de contas,
é como se o mundo não tirasse uma única foto que realmente importe.
2. Só existem dois tipos de pessoas que se preocupam genuinamente com
Deus: os crentes e os ateus. Os primeiros por razões óbvias. E os
segundos por razões ainda mais óbvias: a não crença, sobretudo quando
levada a excessos de negação, converte-se sempre numa forma de crença e
até de afirmação.
O escritor Kingsley Amis é um bom exemplo. Um dia perguntaram-lhe por
que motivo ele não acreditava em Deus. Amis corrigiu a pergunta e
ripostou: "Não é bem não acreditar; é mais detestá-lo". Haverá forma
mais sofisticada de fé na transcendência?
Não admira por isso que já existam igrejas ateias nos quatro cantos do
mundo ocidental. Leio que a moda começou em Londres, com a Assembleia de
Domingo. A autora do artigo publicado no site Salon, Katie Engelhart,
foi assistir a uma "celebração". E encontrou um mimetismo perfeito das
celebrações religiosas tradicionais, com um "pastor", um "sermão",
momentos de "oração" --no fundo, a busca de um sentido de "comunhão"
para o rebanho ateu.
A coisa fez sucesso em Londres, espalhou-se pelo Reino Unido, emigrou
para os Estados Unidos (e para a Austrália) e, palavra de honra, até já
teve a sua primeira "reforma protestante": em Nova York, dissidentes da
Assembleia de Domingo resolveram fundar a sua própria "igreja" por
entenderem que a original não era suficientemente ateia.
Imagino que, no futuro, outras "igrejas" se seguirão, dispostas a
espalhar a "palavra" (mas qual "palavra"?) em adoração ao "não-deus". O
fenômeno é interessante e só confirma o que os clássicos da ciência
política sempre escreveram sobre o assunto: a negação da religião
estabelecida não liberta os homens da sua condição de "animais
religiosos".
Que o diga o filósofo Raymond Aron, por exemplo, para quem o nazismo e o
comunismo não eram mais do que "religiões seculares", dispostas a
oferecer aos seus "fiéis" o Reino da Raça (ou do Proletariado) em
substituição do Reino dos Céus.
As igrejas ateias, pelo menos, sempre me parecem mais inofensivas e até divertem na sua óbvia palhaçada.
3. Antes de Saramago ou de Cristiano Ronaldo, e sabendo-se que Fernando
Pessoa foi uma descoberta tardia da década de 1980, Portugal tinha dois
nomes para oferecer ao século 20: Amália Rodrigues e Eusébio.
Amália, a única fadista que verdadeiramente transcende o fado, morreu em
1999. Não deixou herdeiros, apesar de talentos maiores como Carminho ou
Camané.
Eusébio morreu agora, aos 71, e o país perdeu o segundo rosto que
iluminava a vida dos lusos nos tristes anos da ditadura salazarista.
Logicamente, nunca vi Eusébio jogar. Mas recordo as lágrimas do meu pai
sempre que ele relatava as lágrimas do próprio Eusébio depois da
eliminação de Portugal nas semifinais da Copa de 1966 pela Inglaterra.
Pergunto honestamente se, hoje, existe algum jogador profissional que,
perante uma eliminação idêntica, chore copiosa e sinceramente como
Eusébio no Estádio de Wembley. Duvido.
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* Jornalista, escritor, historiador e comentador e cientista político português.
Fonte: Folha on line, 07/01/2014
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