Paul Singer*
Reconhecer a pancadaria ao redor de nossa política econômica como luta
de classes é necessário para que o público que vai decidir essa parada
nas urnas não seja levado a pensar que se trata de uma contenda entre
peritos e jovens ingênuos
Desde que a presidenta Dilma Rousseff denunciou a "guerra psicológica"
que estaria sendo travada contra os esforços de seu governo para
acelerar o crescimento da economia brasileira, os adversários acirraram
suas críticas à política econômica vigente, tornando o debate sobre
essas questões um dos mais importantes pomos de discórdia que animam os
embates entre os candidatos à Presidência nas próximas eleições.
É interessante observar como esses debates --travados num país como o
nosso, em pleno emprego há cinco anos-- não se distinguem na essência
dos debates travados na maioria dos países capitalistas que são
democráticos.
Nestes países, quase sempre o desemprego é o mais importante problema
social, causa de profundo sofrimento dos que se sustentam mediante
trabalho assalariado, tanto dos que têm emprego e temem perdê-lo como
dos que foram demitidos e enfrentam grandes dificuldades em conseguir
outro.
Isso se aplica tanto a países tidos como "falidos", como a Grécia e
outros da periferia sul da Europa, como aos Estados Unidos e outros que
hospedam poderosas multinacionais financeiras e utilizam seu poderio
político-econômico para impor a países esmagados por portentosas dívidas
públicas ruinosas políticas de "austeridade", cujo efeito é produzir
recessões sucessivas, que ampliam o desemprego e a desgraça dos que não
são donos de empresas nem sequer de instrumentos de trabalho que lhes
permitiriam ganhar a vida por conta própria.
A maior parte das divergências que atualmente alimentam as controvérsias
giram ao redor da questão do emprego e do tamanho e destino do gasto
público e de como o ônus dele decorrente é repartido entre as classes
sociais que compõem o universo dos contribuintes.
Ao lado desses dois temas, aparecem assuntos correlatos: como os ganhos
de produtividade do trabalho são repartidos entre lucros e salários,
como a inflação responde ou não aos aumentos de salários e como a
valorização cambial da moeda nacional afeta as exportações e as
importações.
A base da maioria dessas controvérsias está no tamanho do poder do
Estado em controlar e conduzir a economia nacional, tendo por objetivo
atender mais ou menos as reivindicações da maioria pobre da população,
que constitui também a maioria do eleitorado.
A classe dominante é formada pelos capitalistas que têm por objetivo a
sua "liberdade" de fazer o que quiserem com o câmbio, com a localização
geográfica de seus investimentos, com os preços e juros que eles cobram
dos clientes. Para tanto, eles reivindicam a exclusão do Estado da arena
econômica.
A esse respeito, os interesses dos capitalistas e das classes
trabalhadores não podem deixar de se contrapor. O povo trabalhador
depende das políticas ditas "sociais" que tomam a forma de serviços
públicos essenciais: saúde, segurança, transporte, energia,
telecomunicações, educação de crianças, jovens, adultos e idosos,
habitação social, previdência, cultura etc..
Embora os serviços públicos estejam à disposição de toda a população,
somente os pobres dependem deles. As classes abastadas não os usam,
porque quase todos eles têm como contraparte serviços análogos prestados
por empresas capitalistas privadas.
O entrechoque de interesses fica flagrante no caso do transporte urbano:
o espaço de circulação é disputado por automóveis de passageiros e
ônibus e outras modalidades de transporte público.
A mesma disputa fica tristemente óbvia quando os porta-vozes da classe
capitalista encenam campanhas contra o tamanho dos impostos, quando
todos sabem que o SUS, o Sistema Único de Saúde do qual dependem os
trabalhadores, carece de meios para curar e salvar vidas porque o
Orçamento do governo federal não dispõe de recursos para tanto.
A luta de classes até o fim do século passado se travava entre liberais
extremados, conhecidos como neoliberais, e partidários de diferentes
socialismos então sendo praticados em diversos países. Atualmente, a
maioria desses socialismos "realmente existentes" não existe mais. A
plataforma dos críticos e adversários do capitalismo hoje é inspirada
tanto no marxismo como em autores profundamente comprometidos com a
democracia como Keynes, Gramsci, Karl Polanyi, Rosa Luxemburgo e Baruch
Spinoza.
O que atualmente surge como alternativa mais significativa ao
capitalismo é a economia solidária, praticada por setores organizados em
movimentos sociais em todos os continentes, geralmente sob a forma do
cooperativismo.
A economia solidária é um modo de produção que surgiu nos alvores da
primeira revolução industrial, no início do século 19, na Grã-Bretanha e
na França, como reação aos salários miseráveis pagos então aos
operários, operárias e crianças nas fábricas por jornadas extenuantes de
15 ou mais horas...
Ocorrendo conflitos com os patrões, os grevistas eram despedidos e, em
reação, formavam suas próprias oficinas, uma vez tendo aprendido os
segredos do ofício.
Desse modo surgiram as primeiras cooperativas de trabalho, empresas
pertencentes aos trabalhadores, que as administravam coletivamente, cada
sócio tendo um voto nas assembleias em que as decisões eram adotadas.
Os ganhos resultantes do trabalho comum eram repartidos por critérios de
justiça distributiva entre os sócios, adotados por maioria ou
unanimidade nas assembleias.
Esse modelo aperfeiçoado pelos Pioneiros de Rochdale, em 1844, continua
sendo praticado, com aprimoramentos de todas as filiadas à Aliança
Internacional de Cooperativas, inclusive as agrárias, de consumo, de
crédito, de moradia e de diversas outras modalidades.
Hoje, 170 anos depois, o cooperativismo surge como um modo de organizar
atividades de produção, comércio justo, poupança e crédito, consumo
consciente e responsável e sob a forma de movimento social dedicado à
luta contra a miséria e naturalmente como alternativa ao modo de
produção dominante --o capitalismo.
Com a difusão da democracia como modelo de normalidade politica, a
economia solidária torna-se cada vez mais atraente para os que almejam
igualdade e justiça para suas comunidades.
Os seus partidários defendem em geral políticas econômicas inspiradas
pelo keynesianismo, cujo objetivo maior é o pleno emprego e a eutanásia
do rentista, o que significa o fim da hegemonia global do capital
financeiro, que é o maior responsável pelas frequentes crises
internacionais, das quais os trabalhadores são as principais vítimas.
O trágico fiasco que precipitou o fim pacífico da maioria dos regimes
ditos comunistas abriu um imenso vazio ideológico, político e, por que
não, ético que o novo papa Francisco começa a preencher em nome da
Igreja Católica.
Por tudo isso, reconhecer a pancadaria ao redor de nossa política
econômica como luta de classes é necessário para que o público que vai
decidir essa parada nas urnas não seja levado a pensar que se trata de
uma contenda entre peritos (experts em inglês) e jovens ingênuos que
pouco entendem do que está em jogo.
Os que reagimos aos excessos do neoliberalismo temos em vista, acima de
tudo, preservar e enriquecer a democracia em nosso país, como garantia
de que a luta por uma sociedade mais justa poderá prosseguir até que
seus frutos possam ser usufruídos por todos.
---------------------------
* PAUL SINGER, 81, é secretário nacional de Economia Solidária do
Ministério do Trabalho e Emprego. Foi secretário municipal do
Planejamento de São Paulo (gestão Luiza Erundina)
Fonte: Folha online, 13/01/2014
Imagem da Internet
Nenhum comentário:
Postar um comentário